Terra de nômades em busca de alguma esperança
O filme “Nomadland”, vencedor do Oscar de Melhor Filme, apresenta os reflexos do gélido capitalismo nos EUA. Análise pode conter spoiler
Publicado 14/06/2021 16:48
Vinhas da Ira, best-seller de John Steinbeck (1939), depois tornado filme com Henry Fonda à frente – sobre os duríssimos anos de Depressão da década de 30 nos EUA depois do crash da Bolsa de 1929 –, ecoa ao fundo de Nomadland. Em Vinhas da Ira, com a quebradeira geral de empresas e também falência de propriedades rurais, famílias migram através dos EUA em busca de novas chances de sobrevivência, como o pequeno agricultor Tom Joad (Henry Fonda), que sai com toda a família do interior em direção ao suposto paraíso da Califórnia – jornada acidentada, pontuada de problemas nas vidas das pessoas.
Nomadland, dirigido pela cineasta chinesa-americana Chloé Zhao, com sua fotografia cinzenta e melancólica, faz também lembrar de Terra Fria (que resenhamos na semana passada), até porque a atriz Frances McDormand premiada com o Oscar, desfila sua qualidade dramatúrgica em ambas as películas. Chloé foi premiada como melhor diretora, editora e roteirista, aliás, a segunda mulher da história da Academia de Hollywood a vencer na categoria, a primeira não-branca.
Em 2007-08, os EUA, assim como importantes centros do capitalismo europeu foram abalados por mais uma severa agudização da crise crônica mundial do sistema. Bancos e empresas desses dois polos do capitalismo se viram a com a ameaça de falências iminentes, a piora da miséria e o crescimento de população “homeless” (sem-teto).
Nos EUA, a isso se seguiu um significativo deslocamento de pessoas através desse país continental, que se despegaram de seus lares e cidades, um movimento verdadeiramente nômade a bordo das casas sobre rodas. Segundo dados da Associação da Indústria de Veículos Recreativos, esse contingente incluiria cerca de um milhão de pessoas.
Baseado no livro de não-ficção, de 2017, intitulado Nomadland: surviving America in the XXI Century (Nomadolândia: sobrevivendo à América no Século XXI), da jornalista norte-americana Jessica Bruder, que relata trajetórias de milhares dessas pessoas que passaram a viver de forma nômade, vagando pelas rodovias, em busca de variados tipos de empregos temporários como forma de subsistência.
A diretora roteirista Chloé põe em destaque a comovente história de resistência da personagem Fern (Frances McDormand), uma mulher viúva e sem filhos, professora, proveniente da pacata cidade de Empire, no interior dos EUA, cidadezinha que se apoiava por oito décadas numa fábrica que, com a crise econômica, encerra suas atividades, quase desaparecendo do mapa. Fern recorda sua cidade, as belas paisagens, porém, quando a ela retorna, encontra somente restos de civilização.
Fern, como que repetindo o movimento em direção ao “longínquo oeste” do século XIX, dirige-se a essa região dos EUA, com sua van adaptada com cama e demais utensílios que façam o veículo parecer uma casa simples. Nessas jornadas, encontra outras pessoas na mesma condição, algumas com mais significado e identidade, mas todas sem um local fixo, sem um lar de moradia, todos utilizando seus carros como residência. Aliás, no filme há autênticos e reais nômades, que fazem o papel deles mesmos. Ela e tantos outros sobrevivem de empregos temporários. Em muitos momentos, os nômades se encontram em local já demarcado para trocar suas vivências, dividindo sonhos e desilusões, conquistas e desventuras, mas essencialmente são encontros de fortalecimento, de trocas, o que, entretanto, não elimina fortes sentimentos de perdas, de vazio.
O filme é muito perspicaz ao mostrar de forma nítida os reflexos do gélido capitalismo do país imperialista. Os EUA não são, definitivamente, exemplo de regulação do trabalho, ao contrário, o sofrimento da falta de perspectiva, do trabalho precário, insalubre, sem acesso à saúde e educação pública, a perda da casa e mesmo de possibilidades de esperança, é marcante. Todo esse cenário de trabalho precarizado e crise imobiliária parece ser em menor ou maior grau assimilado pelas pessoas, a grande maioria com mais de sessenta anos. Pegam a estrada para encontrarem-se de tempos em tempos, tanto para se lembrarem das que tinham como para se fortalecerem uns com os outros, já que estão na mesma situação, sem casa e muitos sem os seus amores, sejam companheiros (as), filhos ou pais.
François Chesnais, economista francês, em um de seus artigos publicados no portal A l’encontre, atualiza sua compreensão dos impasses atuais do capitalismo globalizado, ao citar frase de um filósofo francês muito conhecido por seus trabalhos seminais em sociologia da ciência. Assinala Chesnais: “numa perspectiva diferente, compartilho o julgamento de Bruno Latour segundo o qual as classes dominantes já não pretendem governar, mas apenas se protegerem do mundo”. Pois, diante das perspectivas para manter o modo de vida dominante, chegaram à conclusão paradoxal – e que permanece amplamente tácita – de que “não há mais lugar na Terra para eles e para o resto dos habitantes do mundo”. Essa talvez seja uma mensagem sombria e fulminante que a diretora do filme consegue evidenciar através da notável personagem vivida por Frances McDormand.
Duas mulheres fortes e de profundos sentimentos, a personagem central do filme e sua diretora, marcam intensamente Nomadland. Um misto de realidade com uma forte dose de desesperança no futuro das pessoas retratadas no filme e de toda a humanidade pelas consequências do capitalismo. Retornamos a Chesnais, quando afirma que o sistema capitalista emparedou a si mesmo, ao esgotar o planeta, eliminar o trabalho em massa e financeirizar-se, com super-exploração, ataque frontal aos direitos sociais e dos trabalhadores, com frequentes iniciativas de agressão à democracia, e neste momento tudo agravado com a pandemia da COVID-19. A patologia causada pelo novo coronavírus tem aprofundado as adversidades e aflições das famílias em todo o mundo, em particular no Brasil, oprimido por um governo aliado do imperialismo, inimigo da Ciência e de seu próprio povo. Mais do que nunca é preciso difundir as teses da liberdade, da democracia, do apreço pela Ciência, contra as opressões, unir as mulheres e todo o povo para lutar por um mundo de igualdade a todas e todos.
Gênero: Drama
Duração: 1h48min
Direção e Roteiro: Chloé Zhao
Elenco: Frances McDormand, Davi Strathaim, Gay DeForest
Referências
https://outraspalavras.net/desigualdades-mundo/francois-chesnais-os-impasses-do-capitalismo/ (Acesso realizado em 08 de junho de 2021)
https://www.correiobraziliense.com.br/diversao-e-arte/2021/04/4916395-nomadland-como-e-a-vida-de-milhares-de-pessoas-que-vivem-e-viajam-em-trailers-nos-eua.html (Acesso em 08 de junho de 2021).