Nelson Sargento: A história do bom samba
Poesia, literatura, pintura e principalmente música são as especialidades desse talento que retrata a vida do povo. Criado nos morros do Rio de Janeiro, histórias não faltam a esse compositor, mestre da verdadeira música popular.
Publicado 27/05/2021 21:18
Nelson Mattos, o Sargento, tem esse apelido por sua breve passagem pelo Exército. Viveu parte de sua infância no morro do Salgueiro. Nessa época sua mãe trabalhava como empregada doméstica para uma família de portugueses e só o levava ao morro nos fins de semana. Ao mudar-se para a Mangueira aprendeu a tocar violão, dando seus primeiros passos na carreira de músico. Por quase 40 anos trabalhou como operário da construção civil, mesmo assim escreveu livros, poesias, pintou centenas de quadros, participou de filmes, e com mais de 400 músicas compostas, ajudou a imortalizar esse importante estilo da nossa música: o samba.
Mangueira
Filho de criação de Alfredo Português — letrista e um dos fundadores da Estação Primeira de Mangueira — Nelson, depois que se mudou para Mangueira, passou a conviver com renomados sambistas como Cartola e Nelson Cavaquinho.
“A minha relação com a Mangueira veio desde criança. Eu tinha de 13 para 14 anos quando fui para lá. Alfredo Português não sabia fazer música, mas era um ótimo letrista. Ele juntava todo mundo em casa, aos sábados e domingos e fazia um pagode, que naquela época era o que tinha música. Samba, tango, jazz, rock, não importava, se tivesse música era pagode. Então, Alfredo Português foi levado por Carlos Cachaça para uma escola de samba que havia na época chamada Unidos de Mangueira. Eu tinha de 16 para 17 anos, e quando ele ia ao samba e eu ia junto, lógico. Na década de 40, não existia o quesito samba enredo nas escolas de samba. No concurso não valia ponto. Só valia a harmonia do samba, até que em 1948, Alfredo Português fez um samba e deu o enredo. Ele fez a letra e eu musiquei. A partir daí, o pessoal gostou e começou a fazer samba sempre com enredo, que mais tarde acabou virando quesito”, lembra Nelson.
Nelson teve também importante participação no espetáculo Rosa de Ouro em 1965, juntamente com Clementina de Jesus, Paulinho da Viola, Aracy Cortes, entre outros. Logo em seguida, gravou o disco Casa de Samba II, com o grupo A Voz do Morro.
“Zé Ketti, Bigode, Paulinho, se encontravam muito. Certa vez, em uma noitada no Estudantina, na presença de um representante de gravadora, eles cantavam um samba, batendo na mesa e em caixas de fósforos. O representante gostou e os convidou para gravar o primeiro disco da Voz do morro”, conta o sambista.
Agoniza, mas não morre
Das mais de 400 músicas escritas por Nelson Sargento, uma delas fez muito sucesso quando, em 1978, foi gravada por Beth Carvalho: “Agoniza, mas não Morre” que se transformou em uma das músicas que melhor representaram a resistência cultural do samba carioca.
Entre as históricas dificuldades de se fazer samba, Nelson falou um pouco da invasão dos sons estrangeiros, que nos anos 60 e 70 começaram a sufocar as manifestações de música e cultura popular brasileira, entre elas o samba.
“A juventude estava influenciada pelo “yê, yê, yê!”. Que seria mais tarde o embrião do rock brasileiro. Mas o Martinho fez o samba Casa de Bamba, que acabou dando uma reacendida no samba que estava desgastado. E para combater essa invasão de música estrangeira, apareceu também o baião, com Luiz Gonzaga. Foi uma época em que a música brasileira se projetou muito. Naquela época, as gravadoras preferiam receber fitas do exterior, prensar e vender, ao invés de gravar disco de música brasileira. As novelas também contribuíam para isso. Elas tinham trilha sonora nacional e internacional. A nacional tocava em 20 capítulos e a internacional tocava em 100 capítulos. Mas os sambistas seguiram lutando, Noel Rosa, Ismael Silva, Ataulfo Alves, Sinval Silva, Zé com Fome, Geraldo Pereira. Essa turma que tocava o samba para a frente. E os que vieram depois também. Eu, Monarco, Ney Lopes, a turma da Portela. Eu me preocupo porque hoje não existe mais esse time de gente tentando manter o samba. O Fundo de Quintal, Zeca Pagodinho, Dudu Nobre, Almir Guineto, Jorge Aragão, são poucos. Dizer que o samba está bem porque o Zeca vende 1 milhão de cópias não é correto. Depois de tanto tempo o samba está sendo tombado”, desabafa Nelson.
Samba do operário
Outro samba marcante cantado por Nelson Sargento é o Samba do Operário, escrito por seu pai de criação Alfredo Português, que viera de Portugal para o Brasil, perseguido.
“Esse samba foi feito da seguinte maneira: era 1º de maio e o Cartola estava lá em casa. Conversa vai, conversa vem, ele e o Alfredo começaram papear sobre a situação do operário. Ai o Alfredo falou: ‘Vamos fazer um samba?’ e o Cartola respondeu: ‘Manda a letra’. Ele pegou e fez a primeira parte. Mas não cogitaram de fazer a segunda parte. Depois que o Alfredo fez a segunda parte do samba eu terminei, ao invés do Cartola”, conta Nelson.
E não é à toa que Nelson gravou o Samba do Operário, ele conhece muito bem o valor do trabalho.
“Eu sabia que samba era um negócio de valor, mas não sabia o quanto. Babau da Mangueira (1914-1993) uma vez escreveu: ‘Trabalho, não tenho nada e não saio do miserê’. Foi durante a ditadura militar que esse movimento ganhou mais força. Chico Buarque, Geraldo Vandré, entre outros, foram os grandes inimigos da ditadura. O Vandré fez músicas de arrepiar, embalou aqueles estudantes engajados na luta contra a ditadura e fez muito eco”, registra o sambista.
Como pintor de paredes Nelson, acidentalmente despertou interesse pela arte e começou a pintar quadros primitivistas. Quando mostrou algumas pinturas ao jornalista Sérgio Cabral (o pai), foi elogiado e incentivado a continuar pintando, o que faz até hoje.
“Eu gosto de pintar os morros, as escolas de samba, os ritmistas, as baianas. Esse é o tema da minha pintura”, diz.
Pensamentos e parceria
Em seu livro Pensamentos, editado pelo cantor e compositor Agenor de Oliveira, Nelson enfatiza os ditados populares, aprofundando seus significados através de breves reflexões.
“Por exemplo, o que é jogo de cintura? É livrar-se com sabedoria de alguma coisa que te incomoda — explica bem humorado. “O livro foi lançado em 2005 e o editor é o Agenor, um compositor, que é o meu parceiro atual e tem uma gravadora chamada Olho do Tempo, inclusive eu farei meu próximo disco com ele. Essas grandes editoras não querem publicar o trabalho de alguém desconhecido, então ele me ajudou e a gente editou o livro. Fizemos apenas 3 mil cópias. O meu outro livro de poesias eu mesmo juntei dinheiro e publiquei. Todos os meus trabalhos são independentes: quadros, livros e sambas. Porém, o independente de hoje em dia depende de tudo e de todos”, desabafa o velho sambista.
Publicado orginalmente no site Nova Democracia, em março de 2008