“Brasil não pode se dar ao luxo de descartar China”, diz especialista
Pesquisador brasileiro Elias Jabbour analisa o papel do país oriental na geopolítica mundial, a rivalidade com os EUA e a relação comercial com o Brasil.
Publicado 04/08/2020 14:30 | Editado 04/08/2020 16:03
Em 2019, ano que marcou o 70º aniversário da Revolução Chinesa, o canal Futura exibiu uma série de oito programas especiais sobre o avanço tecnológico no país asiático. “Vir à China é quase como olhar para o futuro. O que está acontecendo aqui vai acontecer no resto do mundo daqui a dois, três, quatro anos”, afirmou o apresentador Ronaldo Lemos. O advogado e especialista em tecnologia referia-se às inovações que vêm revolucionando áreas como comércio, trabalho, educação, saúde, lazer, mobilidade urbana, entretenimento, e que fazem com que o “resto do mundo” pareça viver na Idade Média tecnológica.
O investimento sistemático do Estado em tecnologia (com ampla inclusão digital e financeira) foi um dos muitos fatores que contribuíram para que o país asiático se transformasse na segunda maior economia do mundo. O objetivo é tornar-se a primeira até 2049, ano do centenário da revolução que fundou, em 1º de outubro de 1949, a República Popular da China, após a vitória do exército comunista, liderado por Mao Tsé-Tung, sobre os nacionalistas, apoiados pelos Estados Unidos.
Depois da morte do líder comunista em 1976, o país passou por transformações estruturais, que formariam a base da profunda mudança que aconteceria na economia. Ao assumir o poder em 1978, Deng Xiaoping implementou reformas e criou zonas econômicas especiais (ZEEs).
Em um uma delas, na província de Guangdong, foram montadas 1,5 mil fábricas de brinquedos, tornando-se a maior base de produção de brinquedos do mundo. Cidades industriais passaram a ser construídas do zero. A grande oferta de mão de obra barata (mas hoje o salário médio é maior do que em vários países, inclusive o Brasil) atraiu a atenção de milhares de empresas norte-americanas, europeias e japonesas. Como contrapartida, a China exigia parceria com empresas locais, transferência de tecnologia e know-how. Com o desenvolvimento do país, 850 milhões de pessoas saíram da linha da pobreza.
Grande parte de sua população de 1,4 bilhão de habitantes vive em 15 megacidades. Uma delas tem 11 milhões de cidadãos e se chama Wuhan, onde estourou a pandemia do novo coronavírus, que escancarou, em 2020, a dependência global pelos produtos fabricados na China.
Após receber críticas por inicialmente suprimir informações a respeito do problema, o país surpreendeu o mundo ao lidar com o vírus: montou hospitais em tempo recorde (o primeiro, em Wuhan, foi construído em 10 dias), fechou cidades inteiras e usou robôs para monitorar a temperatura, reabastecer e esterilizar hospitais. Para completar, o uso do 5G, rede de altíssima velocidade que pode ser acoplada a objetos (a “internet das coisas”), elevou a capacidade tecnológica da China acima do resto do planeta em diversos setores, como o médico, possibilitando até cirurgias realizadas à distância.
O investimento em tecnologia na medicina integra o programa Made in China 2025, que pretende atingir a liderança em áreas como robótica, nanociência e aviação. O país que inventou a bússola, a pólvora, o papel, o dinheiro em papel e a tipografia quer agora deixar de ser a “fábrica do mundo” para virar o centro tecnológico do mundo.
Enquanto paralelamente se envolve em conflitos territoriais e políticos com a Índia e Hong Kong, a China leva adiante seus megaprojetos, como o plano de infraestrutura regional e global Belt and Road Initiative (Iniciativa do Cinturão e Rota), mais conhecido como a Nova Rota da Seda – em referência ao famoso itinerário comercial que transformou o país em grande centro da economia da Eurásia, mais de 2 mil anos atrás, comercializando, sobretudo, o tecido para diversas nações. A nova iniciativa, apresentada em 2013, ano em que Xi Jinping assumiu o poder, consiste numa série de investimentos, especialmente nas áreas de transporte e infraestrutura, em países da Europa, Ásia, África, América e do Oriente Médio.
Em 2020, em plena pandemia do novo coronavírus, a China é uma exceção nas previsões pessimistas do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional a respeito da recessão global, indicando índices negativos de PIB para vários países. Ao contrário disso, o país asiático aparece com uma projeção positiva neste ano (1,2%) e com uma elevada retomada em 2021 (9,2%). Tudo indica que não será tão fortemente afetado pela crise econômica como os outros, devido à capacidade de planejar, executar e apresentar soluções em curto, médio e longo prazos.
“A China construiu uma economia baseada em instituições e institucionalidades que proveram o Estado de crescente capacidade de planificação e coordenação de sua economia com seu núcleo formado por 97 grandes conglomerados empresariais estatais e uma rede complexa e capilarizada de bancos de desenvolvimento”, explica Elias Jabbour, professor da Faculdade de Ciências Econômicas (FCE) e dos Programas de Pós-Graduação em Ciências Econômicas (PPGCE) e em Relações Internacionais (PPGRI) da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Um dos maiores especialistas em economia chinesa no mundo e autor de quatro livros sobre o assunto, dentre eles China: socialismo e desenvolvimento, sete décadas depois (de 2019, que, neste mês, ganha uma segunda edição ampliada, com análises sobre o pós-pandemia), Jabbour analisa, nesta entrevista à Continente, o papel da China na geopolítica mundial contemporânea, a rivalidade com os Estados Unidos, a relação comercial com o Brasil e os efeitos econômicos da pandemia. O pesquisador avalia, também, como o país asiático conseguiu sair da fome, que matou milhões em meados do século passado, e chegou ao século XXI em um patamar surpreendente de desenvolvimento, confundindo o mundo, que ainda discute se sua política se trata de socialismo ou capitalismo.
Você acredita nessa tese de que o neoliberalismo pode ter começado a ruir diante da evidente necessidade de intervenção do Estado para conter a crise sanitária, econômica e social provocada pelo novo coronavírus? O keynesianismo vai ser resgatado no pós-pandemia?
Não sou tão otimista em relação a isso. Esse mesmo discurso sobre a necessidade de “mais Estado” ocorreu no pós-2008 e nada aconteceu. Existe uma questão de poder, pois fazer políticas industriais ativas demanda regulação do sistema financeiro. Você acredita que o sistema financeiro dos EUA vai admitir um reenquadramento? A União Europeia, por exemplo, teria de acabar com a regra fiscal única para todos os países, regras essas que destruíram a capacidade de fazer políticas fiscais por países como a Itália, Grécia, Portugal etc. Os economistas ortodoxos alemães que controlam os cordéis do Banco Central Europeu permitiriam uma mudança nas regras do jogo? O neoliberalismo pode estar sendo derrotado politicamente, mas o retorno a Keynes é mais difícil e complexo do que nossos desejos.
Há previsões do FMI para os países do G20, que apontam queda de -5,9% para os EUA e de -5,5% para o Brasil em 2020. E crescimento de 1,2% para a China e 1,9% para a Índia. Qual o peso real do PIB para uma análise econômica e social? E qual o impacto do que acontecerá na economia na China e Índia para o resto do mundo?
O PIB é uma variável fundamental para termos uma noção das transformações na base material de um país. Se um país perde PIB durante uma crise, isso significa que sua população empobreceu, que o Estado perdeu capacidade de fazer políticas mais agudas e a capacidade de importar deste país também cai, afetando os países com os quais ele mantém relação. É evidente que a notícia da rápida recuperação da China e da Índia é ótima para quem depende de seus mercados para exportar seus produtos, como o Brasil. Mas a situação econômica internacional é muito complicada ainda. Acredito que os chineses prezam tanto pela estabilidade, que a melhor métrica para perceber se a China está dando conta de suas tarefas, além do próprio PIB, é a taxa de desemprego.
Gostaria que você elencasse os motivos pelos quais essa crise da pandemia não deve afetar a economia chinesa como afetará outros países.
A China construiu uma economia baseada em instituições e institucionalidades que proveram o Estado de crescente capacidade de planificação e coordenação de sua economia com seu núcleo formado por 97 grandes conglomerados empresariais estatais e uma rede complexa e capilarizada de bancos de desenvolvimento. Meus estudos apontam para o surgimento de uma variação de nível superior daquela economia que eu batizo, em homenagem ao economista brasileiro Ignacio Rangel, de “nova economia do projetamento”. Ou seja, uma economia com capacidade imensa de planificar, com ampla soberania monetária e que passa a ser movida por grandes projetos capazes de influir não somente em seu mercado interno, mas também externo. Trata-se de um conceito que tenho tentado construir há alguns anos. Por cima dessa estrutura, duas mega instituições criam amplas condições à abertura de círculos virtuosos entre a dinâmica econômica e a política/institucional: o Estado socialista e o Partido Comunista. Ano que vem, lançarei, junto com o economista italiano Alberto Gabriele, um ousado livro teórico que busca reconstruir alguns conceitos marxistas e lançar o conceito de “nova economia do projetamento”, para compreender a China e as possibilidades do socialismo em um mundo onde o capitalismo financeirizado é hegemônico. O nome do livro será “A China e o socialismo de nosso tempo – A nova economia do projetamento como o estágio superior do socialismo de mercado”.
Você pode adiantar algo a respeito da reconstrução desses conceitos marxistas?
A grande questão é que, no presente momento histórico e à luz tanto das primeiras experiências socialistas, que foram superadas, quanto da presente e exitosa experiência chinesa, a construção de um novo arcabouço teórico e conceitual sobre as possibilidades do socialismo demanda a reconceituação de alguns conceitos marxistas, entre tais os conceitos de modo de produção, formação econômico-social e da lei do valor. Outra constatação nossa reside no fato de, dada a plena dominância do capitalismo no mundo, existirem grandes restrições ao pleno desenvolvimento das experiências socialistas. A China consegue trilhar um caminho muito exitoso, mesmo diante de muitos obstáculos.
Ronaldo Lemos, que viajou à China para fazer matérias televisivas especiais, atribui o sucesso do país asiático no combate ao vírus ao fato de haver um pensamento coletivista. De que modo esse ideal comunitário também influiu no crescimento da economia do país?
Essa forma de organização da sociedade desde as antigas e milenares bases agrárias do país tem sido fundamental no processo de desenvolvimento daquela sociedade. A grande estratégia da governança chinesa é o renascimento, proteção e desenvolvimento de um Estado/civilização milenar. A Revolução de 1949 e o processo de reformas iniciadas em 1978 são capítulos desse processo. Por seu turno, a crença na política e nas instituições do país tem levado o povo chinês a aderir ao que eu chamo de “pacto tácito de adesão”, que permitiu que o país fosse trancado totalmente por 72 dias para superar a primeira onda da pandemia. Ditadura nenhuma conseguiria manter 1,4 bilhão de pessoas trancadas em casa durante esse tempo.
A China surpreendeu o mundo ao ter fechado totalmente cidades e dividido a população entre infectados e sãos. Mas comentaristas políticos apontaram que isso apenas foi possível devido ao autoritarismo vigente no país e que essas medidas restritivas não funcionariam numa democracia. Qual sua opinião sobre isso?
Respondo com uma pergunta. O oposto seria verdadeiro? Ou seja, as democracias ocidentais estão tão obsoletas, frágeis e apodrecidas que viraram instrumento a serviço da morte, como ocorreu na Inglaterra, EUA e no Brasil? Minha opinião sobre isso já expus mais acima. A diferença da China em relação ao Ocidente é que, em um lugar, as pessoas acreditam na política, nas instituições e em seu governo; e, em outro, a política e a própria democracia são objeto de constantes ataques. Dá para imaginar a China governada por um Trump, Bolsonaro ou Boris Johnson? Enfim, apenas acho que essa dicotomia democracia x ditadura é uma questão a ser resolvida por cientistas políticos norte-americanos, pertence a eles essa falsa e pobre dicotomia. Prefiro humildemente fazer juízos de valor sobre sociedades complexas partindo de pontos de vista mais historicizados e de conceitos mais sofisticados, como o de formação econômico-social, digamos assim. Não existe verdade fora da totalidade e a totalidade só é perceptível na análise de processos históricos particulares.
De que forma a pandemia pode impactar a Nova Rota da Seda?
Ainda é difícil fazer uma análise concreta desse impacto, ainda mais diante de uma queda generalizada da atividade econômica.
Segundo o Peterson Institute for International Economics (Washington), 60% dos artigos de proteção individual, máscaras e respiradores usados hoje no mundo vêm da China (no Brasil, são 70%). Após toda a dificuldade que enfrentamos para a compra desse material, é possível que essa dependência dos produtos chineses seja entendida como um problema essencial a ser resolvido e que os países consumidores façam novos investimentos em industrialização?
É evidente, mas veja só: falando do Brasil, somos torturados todos os dias, na grande imprensa e na maioria dos cursos de economia, com as falsas premissas neoliberais pedindo ajuste das contas públicas como pré-requisito ao crescimento econômico. O Brasil virou um terreno fértil em que teses não aplicadas em lugar nenhum do mundo aqui passam a desfilar tranquilamente nas rodas de discussão. Em que lugar do mundo uma figura como Paulo Guedes é levada a sério? A industrialização é uma opção política que se assemelha a uma questão entre ser rico ou pobre. O Brasil foi o melhor aluno do Consenso de Washington e não para de empobrecer. A China foi seu pior aluno e continua a enriquecer. Ou nos reindustrializamos ou o Brasil corre risco de existência enquanto nação. Todo país que se nega a se desenvolver perece e morre.
Donald Trump tenta destruir a imagem da China perante a comunidade internacional, chamando o novo coronavírus de “vírus chinês”. Além de sua política protecionista selvagem, Trump ainda abdicou do papel de líder mundial e mediador que os Estados Unidos vinham desempenhando há mais de 70 anos. Com qual imagem internacional os dois países podem sair dessa crise sanitária?
Trump é um líder selvagem de um Estado que trata de forma selvagem tanto suas minorias internas quanto os países que não seguem suas premissas. Aos que leem, os Estados Unidos sempre serão o país que inspirou a Alemanha nazista e onde o apartheid racial durou quase 200 anos. Entre o final da Guerra Fria e o ano de 2017, ou seja, no auge da pauta da globalização e dos direitos humanos, os EUA fizeram mais intervenções militares do que entre os anos de 1945 e 1991. Trata-se do poder imperial mais sanguinário da história humana. A questão é que Trump rasgou o véu de hipocrisia que ainda escondia um rosto cruel e sanguinário e leva o mundo a termos anteriores ao Tratado de Westfália (1648). Essa é a imagem real dos EUA, mas se trata de uma nação que controla boa parte das informações que circulam no mundo e chegam até nós. Boa parte das classes empresariais, acadêmicas e de formadores de opinião se espelham nos EUA, suas instituições e modo de vida. Na guerra de propaganda, eles podem estar muito à frente da China. A questão é até quando eles continuarão a transformar mil mentiras em verdade. Talvez esse tempo esteja acabando.
Em abril, Pequim começou a testar a moeda digital chinesa, e-RMB, apontada pela Forbes como o “pesadelo do dólar”. A expectativa é que a China, onde a maioria dos pagamentos já ocorre de forma digital, poderá internacionalizar sua moeda e obrigar parceiros comerciais a usá-la. A moeda digital desafiará a supremacia do dólar? É possível que o dólar perca o seu poder na economia mundial, em algum momento da história? O que é necessário para que isso aconteça?
Nada é eterno, inclusive a hegemonia do dólar. Mas creio que essa hegemonia está longe do fim. O lastro do dólar é a economia, as forças armadas e o poder ideológico exercido pelos EUA no mundo. Afora o fato de o dólar ainda ser um porto seguro diante de grandes crises. A China pode estar iniciando agora a formação de um sistema monetário internacional alternativo. São inúmeros os fatores que os chineses deverão superar para sua moeda substituir o dólar como a moeda de referência internacional. Um dos fatores é a aceitação por parte de outros países do yuan como moeda de reserva internacional.
Na guerra entre Estados Unidos e China para liderar a economia mundial, quem tem mais possibilidades de vencer? É possível uma ruptura da hegemonia americana, no futuro? A China seria menos imperialista?
Esta guerra ainda está longe do fim. E o fim dela é imprevisível. Os americanos ainda estão alguns passos à frente da China. Os chineses ainda estão a galgar soberania tecnológica em algumas áreas. O jogo é brutal, com ampla vantagem militar aos EUA. Não acredito em uma China imperialista. Imperialismo é um conceito de análise consagrado pela História e que tem ganho novas determinações ao longo dos tempos. A China não preenche nenhum requisito nesse aspecto. Não vejo a China invadindo um país para depor um governo indesejável. China e EUA são duas formações econômico-sociais muito diferentes e essas diferenças se refletem na forma com que cada um desses países lida com as contradições na arena internacional.
Em que difere a economia da China, do Japão, de Taiwan e da Coreia do Sul?
Na verdade, a China, em 1978, promove a fusão entre seu Estado Revolucionário, fundado em 1949, com o Estado desenvolvimentista que se desenvolvia no Japão, Coreia do Sul e Taiwan. Instituições e combinações entre estatal e privado presentes nas experiências dos citados países inspiraram a China em seu projeto nacional. As diferenças são muitas, entretanto. Japão, Coreia do Sul e Taiwan são países ocupados pelos EUA, diminuindo a margem de manobra desses países. A China fez uma revolução em 1949, que a permite formar e agir sua estratégia fora dos esquemas de poder dos EUA. Por outro lado, a permanência forte da grande propriedade estatal na China é uma diferença fundamental entre ela e seus congêneres asiáticos que foram privatizando ativos estatais ao longo do tempo. Mesmo Taiwan, que foi uma experiência de Estado desenvolvimentista com forte presença da propriedade pública, privatizou seus ativos estatais.
Em quais aspectos políticos e sociais o período pós-Mao foi determinante para o crescimento econômico da China?
Em todos os sentidos. Sem independência política, não existe projeto de desenvolvimento. O período de Mao Tsé-Tung (1949-1976) foi fundamental na construção das bases da China moderna. Implantou-se uma grande base siderúrgica, o analfabetismo foi enfrentado com sucesso e o país voltou a gozar de prestígio e respeito internacional. Não existiria 1978 sem 1949.
Em que medida a implantação do modelo de baixo crescimento demográfico influenciou o crescimento econômico chinês?
Foi necessário para que a China não enfrentasse os desafios sociais quase intransponíveis, que hoje atormentam um grande país como a Índia, por exemplo.
A revolução na medicina integra o Made in China, que tem o objetivo de alcançar até 2025 a liderança em setores como robótica, nanociência e aviação. Gostaria que você explicasse o que significa esse programa para o país asiático e para o mundo.
Na verdade, o projeto é autoexplicável. A própria sobrevivência da Revolução Chinesa enquanto experiência histórica depende de ela alcançar autonomia tecnológica nos mais amplos setores. O país conta com todas as condições políticas, institucionais e financeiras para este fim. Mas não será fácil “chegar lá”. As portas do mundo podem estar se fechando ao desenvolvimento tecnológico da China.
Como você vê a equação entre o importante mercado interno chinês, com o consequente estímulo ao consumo, e a necessidade de diminuir o impacto industrial ao meio ambiente?
O desastre ambiental chinês é visível e muito complicado, pois o país está à beira de alcançar os limites da fronteira tecnológica, mas convivendo com formas e fontes de energia inerentes aos estágios iniciais da Revolução Industrial. Mas existem traços prometeicos nas formas que o país tem enfrentado essa questão. A China já é o maior produtor mundial de todas as tecnologias relacionadas à energia limpa, a começar por carros elétricos.
Nos últimos cinco anos, 7 mil cientistas foram “importados” e 370 mil estudantes chineses receberam auxílios para ingressar em universidades norte-americanas para aplicar o que aprenderam na China. Desde quando vem esse investimento estratégico em educação e profissionais especializados?
Vem desde 1978, quando a governança chinesa decide incorporar a ciência e a tecnologia e os métodos de administração mais avançados existentes no mundo capitalista. A China intenta alcançar o ponto mais alto daquilo que os países capitalistas já atingiram. Só assim estará garantida a sobrevivência e reprodução da civilização chinesa enquanto projeto político estratégico.
Existe uma disparidade muito grande entre a área urbana e a área rural na China? Como descrever a desigualdade social naquele país? E como funciona o agronegócio por lá?
Essa disparidade existe, fruto de opções equivocadas do governo chinês na década de 1990. Sua reversão é algo em andamento. Sua superação necessita de um processo da urbanização e de forte atendimento organizado das demandas da urbanização. Acredito que as soluções encaminhadas desde o início dos anos 2000 tendem a amainar essa questão social latente. A formação de grandes complexos agroindustriais na China é uma realidade, mas ocorre de forma planificada, tendo em vista a existência de cerca de 500 milhões de camponeses no país. Este processo de transição para uma agricultura de larga escala envolve muita ciência e muita arte por parte dos planejadores estatais chineses.
Na China, há 56 etnias, sendo 55 minorias. Dentre as quais, os uigures, que foram detidos no começo deste ano. Há perseguição a outras minorias ou especificamente a esse povo? E por quê?
Existe um combate interno ao terrorismo que demanda força e inteligência. Desde 2003, a China tem sido sacudida por ataques terroristas por filiais da Al-Qaeda e do Estado Islâmico em seu território, e o país precisa dar uma resposta a isso. Imagine um país de 1,4 bilhão de habitantes sendo ameaçado por alguns milhares de terroristas dispostos a explodir os pontos mais sensíveis do país. Como proceder sem ter de invadir outros países, mesmo sabendo que muito do financiamento desses grupos vem de países como a Arábia Saudita (leia-se EUA), Kuwait, Emirados Árabes etc.?
Em 2019, foram marcados os 70 anos da Revolução Chinesa e os 30 anos dos protestos na Praça da Paz Celestial, que culminaram com mortes de civis. A China de hoje melhorou com relação ao tratamento dado a manifestações e dissidentes, como também no que se refere à liberdade de imprensa, internet e redes sociais?
A China tem leis contra determinadas formas de manifestações muito semelhantes a países como o Brasil e os EUA. Somente recentemente, os EUA assumiram que alguns poucos civis foram realmente mortos na rebelião contrarrevolucionária de maio e junho de 1989. O julgamento daqueles lamentáveis fatos só pode ser feito à luz da História. A imprensa chinesa é controlada pelo Estado, que não se arvora do direito de defender seu sistema do resto mundo. Ou não é verdade que a liberdade de imprensa defendida pelos EUA não é a liberdade de algumas famílias bilionárias escolherem o que eu ou você devemos saber de verdade? Internet e redes sociais na China são livres, com exceção de Facebook, WhatsApp e outras formas de interação que têm servido a torto e a direito ao fomento de guerras híbridas, como a que tomou de assalto o Brasil desde 2013 e que levou a um governo de extrema-direita ao poder. Os chineses estão exercendo o direito de defesa de sua nação e seus valores em um mundo hostil e perigoso.
Como a corrupção é fiscalizada e julgada na China?
A depender do caso, pena de morte.
No documentário vencedor do Oscar 2020, Indústria americana, a fábrica Fuyao, que é instalada em Dayton (Ohio), contrata os antigos desempregados da General Motors, mas impõe as seguintes regras: disciplina rígida, baixos salários, longas jornada de trabalho, poucas folgas mensais, condições de segurança precária, falta de negociação do trabalhador com a gerência, proibição de sindicato, doutrinação para a aceitação dessa conjuntura, através de palestras. Isso reflete, de uma forma geral, a realidade das empresas na China? O mesmo se pode esperar que aconteça em outros países, daqui por diante?
Me desculpe, mas esse filme não passa de uma peça na guerra ideológica e cultural empreendida pelos EUA contra a China. Povo nenhum se deixaria render a uma situação generalizada de condições de trabalho como as descritas nesse filme. Eu negaria que existe esse tipo de situação na China? Não, mas se trata cada vez mais de exceção do que regra. Do ponto de vista dos objetivos estratégicos do país, esse tipo de situação tem altos custos. O país precisa que o povo aumente sua capacidade de consumo, ainda mais em uma situação de mudança nos mercados externos.
Para complementar a pergunta anterior, o país ganhou uma péssima reputação, por conta da existência do trabalho análogo à escravidão. Como está essa questão hoje?
Nunca houve trabalho análogo à escravidão na China. Nos setores exportadores e na construção civil podem ter ocorrências de trabalho precário, sem dúvidas. Mas é algo cada vez mais distante da realidade do mundo do trabalho na China. Os preços dos produtos vindos da China não têm relação com o baixo preço de sua mão de obra, mas da escala de produção no país. Desde 2010, os salários crescem acima da produtividade. Aliás, segundo o último relatório da Organização Internacional do Trabalho (OIT), os salários no mundo só continuam a crescer por conta dos aumentos dos salários na China.
O aumento da automação pode provocar o crescimento do desemprego na China?
Sempre pode, mas eles têm uma capacidade de planificar capaz de perceber os limites entre os interesses do Estado (catching up tecnológico) e os da sociedade (pleno emprego). Nesta Nova Economia do Projetamento, o papel do economista ou do engenheiro de projetos é exatamente o de precisar e combinar esses dois graus de interesse.
Há uma ideia de que os Estados Unidos sejam um país muito autocentrado, que o americano médio não conhece e não se importa com o resto do mundo. Você diria o mesmo da China? É um país autocentrado?
Trata-se de um país que se percebe enquanto um chamado “Império do Meio”, mas não imperialista. O horizonte espiritual do ser humano e da burocracia estatal chinesa é iluminado por filosofias de caráter civilizatórias e tolerantes como o Taoísmo e o Confucionismo. O oposto dos Estados Unidos, onde o horizonte deles é formado a partir de filosofias reacionárias surgidas no Mediterrâneo Oriental, como a ideia de “Nova Canaã” e “Destino Manifesto”.
As pessoas realmente não sabem dizer se a China é capitalista ou socialista. Qual seria a resposta mais próxima da realidade?
Não é da tradição marxista responder a essas questões nestes termos, se um país é “A” ou “B”. A China é um Estado socialista, conforme diz sua própria constituição, e suas instituições políticas são completamente diferentes das existentes nas democracias liberais. Na China, há capitalistas, mas eles não comandam a política do país, e o setor privado, apesar de maior e mais numeroso, é dependente dos efeitos de encadeamento gerados pelos grandes conglomerados empresariais estatais e do crédito vindo do setor bancário estatal do país. O Partido Comunista controla de forma direta ou indireta todos os canais vitais da economia do país. Em outro patamar de análise, vejo a China como uma formação econômico-social onde convivem – em unidade de contrários – diferentes modos de produção. O socialista é o dominante. Existe um grande setor capitalista. Grandes empresas coletivas existem, como a Huawei e cerca de 500 milhões de camponeses ainda ocupados no que Marx chamaria de pequena produção mercantil. No conjunto, o socialismo, apesar de já se apresentar como a engenharia social mais avançada de nosso tempo, ainda é algo muito embrionário, primitivo, em fase de testes. O socialismo na China e no mundo ainda está em sua infância, com uma longa estrada a percorrer.
Qual a sua avaliação sobre o mais recente conflito entre China e Índia, pelo domínio do território da LAC (Line of Actual Control)? Esse conflito pode ganhar dimensões maiores? E o que ele simboliza na relação da China com os outros países asiáticos?
É muito ruim, dado ao fato de ser o primeiro incidente militar em décadas. Existem questões que envolvem construções de infraestruturas das duas partes muito próximas de uma chamada “Linha Real de Controle”, que os dois países reconheceram formalmente em 1993, mas que é de difícil visualização, dada a topografia da região. A Índia hoje tem um governo ultranacionalista sensível a essas questões de fronteira com a China e, por outro lado, a China tem no Paquistão um histórico e estratégico parceiro. Acredito que ambos os países deverão voltar à mesa de negociações e encerrar por hora esse conflito. Mas o mesmo deve ser visto dentro de uma ótica de grandes dificuldades que a China deverá começar a enfrentar no curto prazo na relação com seus vizinhos.
No dia 1o de julho, mais de 300 manifestantes de Hong Kong foram presos, já sob a nova lei de segurança nacional, imposta pela China. A ONU se pronunciou contra. O Reino Unido ofereceu asilo e o senado americano assinou um projeto de lei para punir bancos e executivos que apoiem as medidas chinesas. A China, por sua vez, ameaçou os EUA com “fortes medidas de represália”. Qual a sua avaliação sobre essa situação?
A China está exercendo seu poder político sobre um território que não pertence mais à Inglaterra, nem tampouco aos EUA. É muito evidente que Hong Kong tem se transformado em um posto avançado da guerra híbrida empreendida pelos EUA. Os rebeldes de Hong Kong ostentam bandeiras dos EUA em suas manifestações e são recebidos em gabinetes de congressistas norte-americanos. O único futuro possível para Hong Kong é ser parte de um grande projeto, já apresentado por Pequim, de transformação da cidade em um grande polo de produção de ciência e tecnologia na região da Baía do Rio das Pérolas. Por que não tem maior destaque na imprensa a brutal repressão da polícia francesa aos protestos dos coletes amarelos? O uso da violência estatal francesa contra essas manifestações ultrapassa, em muito, o que está ocorrendo em Hong Kong, sendo, o primeiro, uma manifestação contra o neoliberalismo e, o segundo, uma sedição financiada e apoiada por uma potência estrangeira se intrometendo em assuntos internos de outro país. A punição de Trump é uma piada. O Reino Unido trata-se de uma monarquia corrupta que deveria explicar às pessoas as razões de ter sido a maior traficante de drogas no mundo, e que foi através de uma guerra para legalizar o tráfico de ópio (1839-1842) que ela tirou Hong Kong do território chinês. Sobre as relações comerciais entre os dois países, acredito que tudo se normalizará após as eleições dos EUA. Trump precisa da China como bode expiatório para enfrentar os democratas em novembro.
Para você, qual é a tendência do que acontecerá no bloco europeu no pós-pandemia e em meio a essa disputa internacional entre Estados Unidos, China e Rússia? A zona do euro corre o risco de diluir-se?
Depende do papel que a Alemanha vai decidir tomar. Ou ela toma para si o papel de, por exemplo, reconstruir as infraestruturas europeias e gerar emprego nos países mais vulneráveis do bloco ou a união monetária corre sérios riscos. Acho a União Europeia uma ótima ideia política e uma péssima ideia econômica.
O fechamento de 70 mil salas de cinemas na China causou um impacto de bilhões na indústria cinematográfica norte-americana. Inclusive, houve o adiamento do lançamento do filme em live-action Mulan, produzido com o intuito de alcançar o mercado chinês, maior do mundo em termos de bilheteria. Visto que a China lançou seu próprio smartphone para competir com o iPhone, você acredita que possa haver um movimento semelhante no setor do entretenimento, que o país decida não apenas consumir internamente, mas também exportar sua cultura?
Acredito que sim. Os chineses farão sentir seu soft power também no campo da cultura, sem dúvidas.
O governo Xi Jinping planeja fazer da China o país mais avançado do mundo até 2049, ano do centenário da Revolução. Quais são os entraves internos e externos para isso?
Os entraves internos não são de grande magnitude, dada a flexibilidade do Estado em se adaptar a novas situações e contradições. Externamente, a China já se depara com um cenário muito diferente de anos atrás. O mundo está desconfiado da China e os EUA estão dispostos a barrar todas as possibilidades de a China alcançar seus objetivos. O mundo está muito perigoso, e isso não é bom aos chineses.
Durante os anos da presidência do PT, foram realizadas ações para desenvolver a América do Sul como um bloco econômico coeso. Desde 2016, o Brasil perdeu essa liderança e essa ligação com os países vizinhos. Essa distância foi agravada com o governo Bolsonaro. Como você enxerga a situação do continente sul-americano hoje? Está à própria sorte, na rota de uma disputa internacional?
A abstenção brasileira em liderar os destinos do continente, ao lado de uma crescente luta pela hegemonia global entre China e Estados Unidos, colocou a América do Sul em uma situação… Vejam, a situação da Venezuela trouxe para nosso continente: todo arsenal político, econômico e militar de três grandes potências externas, os EUA, China e Rússia, tendo o Brasil uma situação de plena submissão aos interesses dos EUA na própria América do Sul. Um acordo militar foi assinado em Miami entre Brasil e EUA, algo secreto, mas que já se sabe envolver repasse de grande quantidade de armas ao Brasil, no sentido de formar um cinturão de isolamento à Venezuela. A situação da América do Sul é triste, com seu principal país alinhado de forma subalterna e colonial a uma potência estrangeira; e um país como a Venezuela sendo condenado por um bloqueio econômico e naval que ceifa a capacidade do país em dar conta de seus próprios desafios. Isso, sem falar da situação da Bolívia etc.
A China é o maior parceiro comercial do Brasil, é o país para o qual mais exportamos e o segundo de quem mais importamos, atrás apenas dos EUA. As relações comerciais entre os dois países realmente correm um risco diante do protecionismo de Trump e da falta de competência do governo Bolsonaro para lidar com a política externa e o comércio internacional?
Os chineses têm uma visão de longo prazo do Brasil que nos beneficia. Eles sabem que Bolsonaro é um agente estranho à tradição política e diplomática brasileira e que um dia ele vai embora. Nos últimos três meses, a China aumentou nossas importações de soja, por exemplo. Apesar de Bolsonaro, nossas relações com a China não correm perigo de descarrilamento. As pressões do agronegócio brasileiro não são pequenas e o país não pode se dar ao luxo de descartar a China. Até porque esse descarte é quase impossível hoje.
Fonte: Revista Continente
Ótima entrevista! Parabéns Elias Jabour!!!
Extremamente esclarecedora, ótima entrevista!