Institutos de pesquisa e universidades públicas no combate à Covid-19
Exemplos de contribuições da ciência ao combate à pandemia em meio ao obscurantismo e negacionismo científico
Publicado 29/07/2020 01:00
A pandemia da Covid-19 no Brasil vem escancarando as desigualdades sociais e as mazelas de nossa sociedade, trazendo um cenário de incertezas que exige união em defesa da preservação da vida.
Antes da pandemia, já era grande o desprezo pela ciência, pelo conhecimento científico e pelas universidades. Ações do atual governo federal tem amplamente fortalecido essa tendência quando tentam interferir na autonomia das nossas universidades, violando um preceito constitucional. Nós convivemos com cortes em bolsas de pesquisas para nossos estudantes e cortes em financiamento para pesquisas. Nosso presidente, contando com o apoio de grupos empresariais e líderes de igrejas neopentecostais, questiona as medidas de isolamento social indicadas pela Organização Mundial da Saúde (OMS), adotadas por quase todos os países e defende o uso de medicamentos sem comprovação científica no combate à Covid-19.
Fazendo o uso desta estratégia como instrumento político, vemos várias prefeituras adotando protocolos de tratamento e distribuindo kits de medicamentos para uso off label, sem comprovação científica de suporte. É um pesadelo e uma grande irresponsabilidade, principalmente frente à uma sociedade vítima da desinformação. O combate a essa prática de afronta à saúde pública é dever e um desafio para o Ministério Público, dada sua responsabilidade na defesa dos direitos da população. No entanto, é também dever de todos nós cientistas proteger a população de atos populistas e de tomada de decisões sem fundamento científico.
Nosso posicionamento contrário às inverdades e em favor do esclarecimento da população se torna ainda mais importante nesse momento dado o crescimento da percepção pública sobre a importância da ciência. A sociedade não precisa daqueles que negam a ciência, os pseudocientistas, mas sim dos cientistas para responder perguntas importantes sobre medicamentos, tratamentos, vacinas e questionamentos que vão muito além das áreas relacionadas diretamente à saúde e que cobrem um amplo espectro que abrangem desde as ciências humanas, físicas, às tecnológicas.
Felizmente, a população brasileira conta com o apoio das universidades públicas e seus hospitais universitários, das faculdades e dos institutos e centros de pesquisas brasileiros para combater essa pandemia. E conta também com o nosso combalido, mas fantástico, Sistema Único de Saúde (SUS), que vem salvando milhares de vidas e que precisa ser valorizado e fortalecido.
Temos uma enorme força-tarefa das universidades públicas e institutos de pesquisa em benefício da sociedade brasileira e em defesa de todas as pessoas e populações vulneráveis neste país, que demonstram e reafirmam nosso valor, competência e nossa postura solidária quando no enfrentamento à Covid-19. Grupos de estudantes e professores produziram respiradores mecânicos, aventais, álcool em gel, álcool glicerinado, antissépticos para superfícies e ambientes, máscaras e equipamentos de proteção individual para os profissionais da área de saúde.
Através da aplicação de modelos matemáticos, pesquisadores das áreas de exatas e humanas desenvolvem ferramentas para monitorar em tempo real, o avanço da pandemia em várias cidades, avaliando também o impacto econômico e social da doença. Outras equipes utilizam inteligência artificial para prever curvas de crescimento e aceleração da Covid-19 no País. Epidemiologistas e virologistas estudam e compartilham dados quanto a real propagação da Covid-19. Somados, esses estudos têm papel fundamental no monitoramento da progressão da pandemia e na previsão de cenários, auxiliando os profissionais da saúde e agentes públicos na tomada de decisões quanto às formas de tratamento e de medidas de isolamento e distanciamento social.
Nossos pesquisadores também estão envolvidos no desenvolvimento de testes de diagnósticos, testes sorológicos e testes baseados na técnica RT-PCR. Nesse aspecto, houve também uma intensa atividade na estruturação de infraestrutura e capacitação de profissionais para a realização de testes rápidos para detectar a presença do vírus.
Tomógrafos por impedância elétrica para monitoramento da distribuição de oxigênio nos pulmões de pacientes em tratamento intensivo que necessitam de ventilação artificial estão sendo desenvolvidos nas nossas universidades em parceria com startups (que nasceram em universidades públicas).
A Embrapa, uma empresa pública de pesquisa, tem fornecido orientações aos agricultores e pecuaristas quanto a forma de prevenção ao novo coronavírus, garantindo a própria saúde, a de seus familiares e o abastecimento da população. A Embrapa também está fornecendo dados estatísticos e colocando sua estrutura de equipamentos, produtos e pessoal para ajudar na realização de testes laboratoriais para identificação da Covid-19.
Outros importantes aspectos da doença também têm sido investigados por nossos pesquisadores, como a possibilidade de transmissão do vírus pela gravidez, avaliação das alterações de olfato e gustação nos pacientes infectados e criação de marcadores de gravidade nos pacientes com síndrome respiratória aguda grave. Outras investigações envolvem a análise de presença do Sars-CoV-2 em materiais biológicos como sangue, saliva, urina, fezes, tanto durante a fase aguda como na fase de convalescença da infecção, além de estudos sobre a Covid-19 em pacientes com câncer, transplantados e com doença reumatológica (imunodeprimidos). Cientistas brasileiros buscam também entender por que pessoas com diabetes são mais suscetíveis a Covid-19, qual o papel da coagulação na doença e como o novo coronavírus pode infectar neurônios humanos.
Pesquisadores do Instituto de Ciências Biomédicas da Universidade de São Paulo (ICB-USP) isolaram e cultivaram o Sars-CoV-2 em laboratório, a partir de amostras obtidas dos dois primeiros pacientes brasileiros diagnosticados com a doença no Hospital Albert Einstein. Os vírus foram distribuídos para grupos de pesquisa e laboratórios clínicos públicos e privados do país permitindo ampliar a capacidade de realização de testes diagnósticos e iniciar os estudos sobre como a doença é causada e como se propaga.
O sequenciamento do genoma do primeiro paciente brasileiro infectado com Covid-19, importantíssimo para mapear mutações que podem estar relacionadas ao processo de evolução viral e adaptabilidade a hospedeiros e ao ambiente, foi realizado por pesquisadoras brasileiras. Grupos do Instituto Adolfo Lutz e do Instituto de Medicina Tropical da USP (laboratórios públicos de pesquisa e vigilância epidemiológica), em colaboração com colegas do Reino Unido, sequenciaram o genoma do vírus em apenas 48 horas após o primeiro caso detectado em São Paulo. Estes grupos continuam investigando as possíveis mutações no Sars-CoV-2 e a existência de diferentes cepas circulantes no País.
Cientistas estão trabalhando na triagem fenotípica para reposicionamento de fármacos, em laboratórios com alto nível de segurança biológica. Esse estudo pode contribuir para a validação de alvos e o desenvolvimento de novas entidades químicas para combater o Sars-CoV-2 e outros coronavírus que possam surgir no futuro.
A Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), maior instituição de ciência e tecnologia brasileira na área da saúde, que comemorou seus 120 anos em 2020, contribuiu para a produção de kits de diagnóstico e agora vai contribuir para a produção de uma possível primeira vacina no Brasil em colaboração com a Universidade de Oxford e o laboratório AstraZeneca. Esta vacina será testada na Universidade Federal de São Paulo, a UNIFESP. A Fiocruz também coordena no Brasil o estudo Solidarity, da OMS, que investiga o reposicionamento de fármacos e envolve a participação de vários hospitais no País. Em seu vídeo institucional a Fiocruz afirma: “Você pode não saber, mas você carrega a Fiocruz dentro de você”. Pura verdade. A Fiocruz produz a maioria de nossas vacinas e realiza um trabalho fantástico para a saúde brasileira e sul-americana, sendo uma referência internacional de pesquisa, ensino e inovação na área de saúde.
O Instituto Butantan, destacado centro de pesquisas biológicas, fechou uma parceria com a farmacêutica chinesa Sinovac Biotec para testar uma vacina contra a Covid-19. A Coronavac será testada em nove mil voluntários a partir de julho em centros de pesquisas que incluem a USP, UNICAMP, UnB, UFMG e UFPR. Caso a eficácia seja atestada, o Butantan deve receber a transferência de tecnologia para produzir nacionalmente a vacina. Existem também vários outros exemplos de pesquisa em desenvolvimento de vacinas realizados no país. Fatores como a eficácia da vacina e o número de pessoas a serem vacinadas sugerem que talvez tenhamos uma imunização parcial da população. No entanto, essa imunização terá um papel crucial tanto para minimizar substancialmente o número de contaminações, sendo extremamente útil para que possamos voltar a pensar em medidas conscientes de flexibilização e relaxamento do isolamento social. Nós não vamos acabar com a infecção, vamos proteger contra a doença.
As universidades brasileiras também investigam os efeitos da pandemia sob o aspecto social e das condições de vida das pessoas e das cidades, avaliando o impacto do distanciamento social, das novas formas de trabalho remoto e realizando mapeamentos sobre a mobilidade das pessoas. Há frentes que envolvem estudos relacionados à geração de renda, ao impacto do novo coronavírus em populações vulneráveis, às estratégias de segurança no trabalho e ao efeito do teletrabalho e seus impactos psicológicos.
Nossos cientistas têm também participado ativamente de ações para esclarecimento da população em geral. De forma inspiradora, professores, pesquisadores, alunos de graduação e de pós-graduação têm se voluntariado para orientar a população sobre cuidados com alimentação, o uso máscaras e protetores faciais, sobre a importância de manter as atividades físicas e exercícios de relaxamento, sobre como manusear e limpar alimentos, a casa e as compras, os cuidados com animais domésticos, sobre como proceder em casos de sentir os sintomas da Covid-19 e como proceder nos casos de confirmação da infecção por algum familiar. Cientistas e pesquisadores do país inteiro estão compartilhando dados, resultados de pesquisas, vídeos, aulas e materiais diversos divulgados nas mídias sociais com informações precisas e relevantes para a sociedade. Algumas universidades criaram canais de atendimento à comunidade com o objetivo de prestar esclarecimentos sobre os procedimentos a serem adotados no combate ao novo coronavírus. Outras instituições criaram grupos em redes sociais para disponibilizar informações na forma de vídeos para pessoas surdas, com tradutores e intérpretes em Libras.
Estamos presenciando uma atividade intensa de cientistas ligados à Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), à Academia Brasileira de Ciências (ABC), Academia Nacional de Medicina (ANM), Academia de Ciências do Estado de São Paulo (ACIESP), várias sociedades científicas e à iniciativas como a do Cientistas Engajados, em várias ações sociais, organizando webinários para esclarecimento da sociedade nos vários aspectos desde o entendimento da doença até estratégias de combate à pandemia.
Esse trabalho de esclarecimento da população é ainda mais importante porque enfrentamos esse cenário devastador de disseminação de fake news. Na luta contra essa complexa rede de disseminação de mentiras e ódio, contamos com participação intensa e muito bem-vinda de divulgadores científicos esclarecendo a sociedade sobre a pandemia, espalhamento de vírus e alertando para os riscos no uso de medicamentos sem comprovação de eficácia e sem evidências científicas robustas, no tratamento da Covid-19. Estes divulgadores científicos são cientistas, alguns ligados a universidades e institutos de pesquisas e foram todos formados em nossas instituições públicas de ensino superior. Nessa luta, também há uma participação intensa e valiosa de diversos jornalistas científicos, evidenciando ser fundamental que tenhamos cada vez mais jornalistas com formação em ciências para nos ajudar nesta enorme e difícil tarefa de levar informações corretas para a população e auxiliar na luta para que as políticas públicas sejam baseadas em evidências científicas sólidas.
Mas não são somente através de ações relacionadas ao combate da Covid-19 que as Universidades públicas contribuem para a sociedade nesse momento. A Universidade Pública não parou. Estamos mantendo nossas atividades didáticas em nível de graduação e de pós-graduação de forma remota, pois temos responsabilidade com a sociedade, com a educação e com as futuras gerações. As atividades administrativas e de pesquisa também foram adaptadas para a forma home office de forma a respeitar as medidas de isolamento social e minimizar a propagação do vírus. Seguimos participando de reuniões agora através de diferentes plataformas online, adaptadas à emergência imposta pela realidade atual, atendendo videoconferências e envolvidos nas atividades de ensino, cultura e extensão universitária, que constituem o tripé da universidade pública. Estamos em um momento em que precisamos discutir também, novas diretrizes para a educação brasileira em todos os níveis, desde a educação básica.
É importante também citar as muitas redes de solidariedade criadas pelas universidades públicas para ajudar em campanhas de captação de alimentos, roupas, artigos de higiene e limpeza, para distribuição para as populações mais vulneráveis. E dentre tantas ações, vale lembrar o trabalho das instituições e universidades públicas brasileiras somados ao trabalho voluntário de alguns médicos e ONGs, na promoção de ações para proteger os povos indígenas que se encontram em situação de alta vulnerabilidade. Infelizmente, essas ações ainda estão muito aquém do necessário frente a precária situação dos povos indígenas como os Yanomamis e Xavantes, que enfrentam situação ainda mais grave, que não se restringe a disseminação da Covid-19, mas que continuam enfrentando as crescentes invasões e grilagens de terras indígenas. Não há fiscalização eficiente, não há vontade política. Os povos indígenas estão há 520 anos sozinhos em sua luta, mas nunca a situação de abandono foi tão crítica.
Mesmo com toda essa intensa atividade da ciência brasileira, ações governamentais articuladas são imprescindíveis para conscientizar e educar a população para sua proteção e combate a propagação do Covid-19 e novas pandemias que ainda estão por vir. No Brasil, nós nunca tivemos uma ação governamental coordenada, com estratégias de combate à Covid-19 e com transparência nas informações sobre a doença. A pandemia certamente não será vencida com as fake News, com as promessas de curas milagrosas sem evidências científicas que atestem sua eficácia e nem com ataques à ciência e aos cientistas e pesquisadores. E nós, cientistas, precisamos produzir ciência de qualidade para dar a resposta necessária para a sociedade.
Esse texto cita apenas uma pequena parcela da produção das universidades e institutos de pesquisas públicos no enfrentamento dessa crise social. No entanto, evidencia o papel essencial da ciência para a solução dessa crise e a importância em se valorizar as universidades e os institutos de pesquisa para o desenvolvimento do País, para a proteção e segurança do povo brasileiro e para a soberania nacional.
Cientistas e pesquisadores de universidades e instituições de pesquisa no País precisam ser ouvidos e apoiados para produzir novos conhecimentos sobre os mais diferentes aspectos da ciência. Precisamos de um sistema de financiamento estável, contínuo e de recursos para bolsas de pesquisas para que possamos formar a geração de pesquisadores do futuro. A universidade pública brasileira precisa de estabilidade para poder planejar suas ações, e avançar na construção do conhecimento, criando capacidade futura para enfrentar situações como esta. Nós precisamos de uma política de estado, de financiamento contínuo de longo prazo, pois um país precisa de tempo para construir capacidade e experiência em pesquisas científicas para poder enfrentar problemas e desafios. Mas ao contrário de toda razão e necessidade, a ciência brasileira tem hoje o menor orçamento dos últimos 25 anos e sofre as agressões de um governo que odeia a ciência e os cientistas, que despreza nossas universidades e centros de pesquisas públicos.
As universidades e as instituições públicas brasileiras devem ser consideradas motivo de orgulho para todos os brasileiros e neste momento absolutamente sem precedentes em nossa história moderna, estão mostrando seu valor.
Vemos que em momentos de pandemia, a confiança na ciência aumenta e a Covid-19 está mostrando que não há um mundo seguro sem ciência.
Luiz Carlos Dias é Professor Titular do Instituto de Química da Unicamp, membro titular da Academia Brasileira de Ciências (ABC), Comendador da Ordem Nacional do Mérito Científico e membro da Força-Tarefa da UNICAMP no combate à Covid-19.
Publicado no Jornal da Unicamp