Venda de armas de fogo aumenta 200% no 1º semestre
Registros aumentam significativamente a cada ano, mas o aumento deste ano é inédito, saltando de menos de 25 mil para mais de 74 mil. Até 2011, o número era inferior a dez mil.
Publicado 14/07/2020 18:02
A venda de armas de fogo controladas pela Polícia Federal (PF) subiu de 24.663 unidades, no primeiro semestre do ano passado, para 73.985, em igual período de 2020, um aumento de quase 200%. Entram na conta da PF as armas compradas por cidadãos em geral, empresas de segurança privada, além das categorias profissionais previstas no Decreto nº 9.847, como servidores da área da segurança pública, magistrados e membros do Ministério Público.
Os dados do Sistema Nacional de Armas (Sinarm) não incluem nem os armamentos adquiridos por órgãos militares estaduais de segurança pública (polícias militares e corpos de bombeiros), nem pelas Forças Armadas e pelos chamados CACs (colecionadores, atiradores e caçadores), cujo controle é da responsabilidade do Exército.
Para a PF, as flexibilizações das regras de posse e porte de arma de fogo a partir do início de 2019 contribuíram para o incremento das vendas. Além disso, mudanças no Sinarm, como a digitalização dos processos, facilitaram e agilizaram o trâmite dos pedidos. A PF também informou que há “outros fatores para o aumento de demanda, subjetivos e ainda não dimensionados pela instituição”.
Os dados divulgados pela Polícia Federal mostram que, desde 2017, as vendas no primeiro semestre vêm superando as do mesmo período do ano anterior, mas não na proporção destes últimos seis meses. Comparando, por exemplo, o resultado dos seis primeiros meses de 2019 (24.663 armas compradas) com os do mesmo período de 2018 (23.564), constata-se uma diferença de 1.099 armas.
Repercussões
Para a coordenadora de Projetos da organização não governamental (ONG) Instituto Sou da Paz, Natália Pollachi, o resultado já era, de certa forma esperado. “Estávamos contando com que o real impacto das alterações [legais] feitas em 2019 fossem sentidas este ano. No ano passado, alguns decretos foram publicados e, depois, revogados, o que eu acho que causou uma certa insegurança jurídica para as pessoas que já tinham interesse em adquirir armas.”
Natália também considera a hipótese do total de novas armas vendidas ser um reflexo das mudanças das regras de controle. “As flexibilizações normativas não só ampliaram o acesso às armas para mais pessoas, como também possibilitaram que cada uma destas pessoas possa comprar uma maior quantidade [de armamentos]”, comentou a coordenadora, que discorda da ideia de que mais armas nas mãos de cidadãos comuns seria uma forma de combater a violência e tornar a sociedade mais segura.
“Vemos com bastante receio a disseminação deste discurso, que tem um impacto real nas escolhas práticas das pessoas. Diversos estudos brasileiros e internacionais demonstram que isto não é verdade, que a maior circulação de armas traz consigo um aumento do número de homicídios. Tanto porque as pessoa estão sujeitas a momentos de descontrole, quanto porque estas armas podem ser desviadas para o mercado ilegal. Há várias pesquisas documentando que a maioria das armas apreendidas no cometimento de crimes tem origem legal.”, acrescentou Natália.
“Em longo prazo, isso pode ser desastroso”, disse Natália. Para ela, essa cultura que começa a se disseminar no Brasil forma um grupo consistente e influente de usuários, que não havia antes, e que passa a defender o uso de armas de forma militante e com apoio econômico e político, tornando mais difícil voltar ao patamar anterior de controle de armas.
A enxurrada de novas armas nos lares brasileiros torna a violência doméstica mais letal, facilitando o feminicídio, transforma os confrontos comuns em ocorrências fatais e turbina um mercado paralelo que já está prosperando, segundo Natália.
O presidente da ONG Movimento Viva Brasil, o advogado Bene Barbosa, que defende a flexibilização das armas, também disse que o aumento nas vendas já era esperado. “Exatamente por conta da mudança na política nacional. Vínhamos de sucessivos governos que tinham como política nacional uma restrição às armas e um desestímulo à compra legal, e passamos a uma visão completamente diferente”, comentou Barbosa.
Ele avalia que, apesar da recente flexibilização das antigas normas, a legislação brasileira segue “impeditiva”. “É uma legislação muito burocrática, que acaba por encarecer e elitizar o direito do cidadão a adquirir uma arma de fogo para se defender”, afirmou.
Ao contrário de Natália, ele refuta a ideia de que mais armas nas ruas contribuem para o aumento da violência. “Não há nenhum estudo conclusivo que aponte para isto. O que nós assistimos aqui mesmo, no Brasil, foi o aumento significativo da criminalidade violenta, em especial dos homicídios, apesar de todas as restrições que agora começam a ser revistas. Já a partir do ano passado, quando houve um crescimento significativo da venda de armas, tivemos uma redução nas taxas de criminalidade violenta. O que, para mim, demonstra não haver uma correlação entre mais armas e mais crimes”, disse.
Ele destaca que, em diversos estados, incluindo alguns dos mais violentos, a taxa de crimes já vinha caindo há pelo menos quatro anos, “resultado de políticas regionais, estaduais, e não das restrições armamentistas.”
Um projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso no ano passado, já aprovado pela Câmara, prevê entre outros pontos, o aumento da lista das categorias profissionais com direito ao porte de armas. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado. O projeto também tira a obrigatoriedade de marcação das armas das forças de segurança.
Para Michele dos Ramos, assessora especial do Instituto Igarapé, entidade que monitora dados da área de segurança, o projeto é “grave” porque, entre outros pontos, facilita o desvio de armas e munição. Ele destaca que nenhuma das medidas legais levaram a mais controle e rastreamento das armas.
“Isso é muito grave, porque os nossos esforços são exatamente de melhorar os mecanismos de marcação dessas munições pra que a gente amplie nossa capacidade de investigação, de crimes violentos e de enfrentamento ao tráfico ilícito. Na medida em que além de eu não avançar nessas medidas de aperfeiçoamento, eu tiro a marcação das munições das forças de segurança pública, estou facilitando o desvio dessas munições e prejudicando a investigação”, afirmou.
O líder da oposição na Câmara, André Figueiredo (PDT-CE), disse que o projeto não foi discutido como deveria. Passou apenas pelo plenário, e não foi analisado em comissões. Ele defende que é preciso que os senadores tenham cuidado para não ocorrer mais afrouxamento na lei.
“Nós queremos que o Senado discuta exaustivamente essa matéria para que, inclusive, possa voltar para a Câmara, onde a discussão se deu apenas em plenário. E nós possamos aperfeiçoar e evitar justamente a proliferação indesejada de arma de fogo no nosso país”, disse o deputado.
Total geral de armas novas – 1º semestre | Total geral de armas novas – anual | Total geral de registros expedidos | |
2020 | 73.985 | 100.053 | |
2019 | 24.663 | 94.064 | 83.843 |
2018 | 23.564 | 51.027 | 112.885 |
2017 | 22.160 | 45.485 | 113.572 |
2016 | 22.689 | 44.912 | 92.557 |
2015 | 23.157 | 49.885 | 42.305 |
2014 | 15.581 | 39.943 | 41.239 |
2013 | 16.107 | 34.454 | 33.674 |
2012 | 13.222 | 37.114 | 26.190 |
2011 | 9.665 | 26.486 | 80.756 |
2010 | 9.541 | 22.534 | 454.752 |
2009 | 7.623 | 18.967 | 231.601 |
Das 73.985 armas comercializadas entre janeiro e junho deste ano, quase 62%, ou seja, 45.733, foram compradas por cidadãos. Órgãos públicos não militares compraram 17.111 armamentos (23% do total). Já servidores públicos autorizados a portar armas pessoais devido ao risco inerente ao exercício da função, como procuradores, promotores e juízes, adquiriram 8.707 do total (11%).
Armas novas em 2020 por categoria
Categoria | jan | fev | mar | abr | mai | jun | total |
Caçadores de subsistência | 37 | 32 | 12 | 8 | 14 | 23 | 126 |
Cidadãos | 6.857 | 6.774 | 7.612 | 7.020 | 7.813 | 9.657 | 45.733 |
Servidores públicos | 1.535 | 1.418 | 1.402 | 1.069 | 1.356 | 1.927 | 8.707 |
Empresa de segurança | 0 | 2 | 2 | 5 | 10 | 0 | 19 |
Empresa comercial | 6 | 4 | 40 | 15 | 22 | 86 | 173 |
Empresa de segurança privada | 306 | 188 | 574 | 363 | 349 | 334 | 2.114 |
Fabricante/importador | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Órgão público com taxa | 46 | 111 | 47 | 210 | 5 | 96 | 515 |
Órgão público sem taxa | 1.933 | 660 | 9.127 | 861 | 1.150 | 2.865 | 16.596 |
Outras categorias | 2 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 2 |
Revendedores | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 | 0 |
Nº de armas novas | 10.722 | 9.189 | 18.816 | 9.551 | 10.719 | 14.988 | 73.985 |
Em abril de 2019, a PF adotou uma nova forma de registrar os armamentos que pessoas físicas e jurídicas compram dos fabricantes, importadores e revendedores. Além de separar as vendas para caçadores de subsistência dos demais compradores antes incluídos em uma única categoria (“pessoa física”), a instituição criou outras classificações. Desta forma, as seis categorias existentes até então se tornaram 11, conforme a tabela acima.
A mudança inviabiliza a comparação direta entre os resultados deste primeiro semestre e o dos seis primeiros meses de 2019. Ainda assim, a título de observação, no segundo semestre de 2019, quando a nova sistemática já estava em vigor, os chamados cidadãos adquiriram 35.641 novas armas – cerca de 22% a menos do que as 45.733 adquiridas de janeiro a junho deste ano. O comportamento das vendas semestrais se reflete nos resultados anuais, como mostra a tabela abaixo.
Registros
O total de certificados de Registro de Arma de Fogo (Craf) expedidos pela PF durante o primeiro semestre deste ano também aumentou em comparação aos seis primeiros meses do ano passado. Obrigatório e válido por dez anos, o documento serve de comprovante de que o proprietário da arma está autorizado a mantê-la exclusivamente no interior de sua residência ou local de trabalho caso seja ele o responsável legal pelo estabelecimento ou empresa.
No último período foi registrada, renovada ou transferida a titularidade de 100.053 armas. Embora seja superior aos 83.843 registros expedidos durante o primeiro semestre de 2019, o resultado é inferior aos registrados em igual período de 2018 (112.885) e de 2017 (113.572). Além disso, são inferiores aos de 2009 e 2010, anos cujos resultados, segundo a PF, foram influenciados pelo fim do prazo para regularização de armas definido pelo Estatuto do Desarmamento (Lei nº 10.826/03).
Medidas de flexibilização
Desde o início do mandato, o presidente Jair Bolsonaro vem tomando medidas para facilitar a obtenção e o registro de armas de fogo e munição, uma de suas promessas de campanha.
Entre as alterações feitas via decretos e portarias, estão as que atingem colecionadores, atiradores e caçadores . Foi permitido a eles circularem com a arma municiada, pronta pra atirar. O que, na prática, seria o porte da arma. Também foi liberado o acesso a armas de maior potencial de fogo – um fuzil semiautomático, que antes não era permitido, passou a ser permitido para os CACs.
Bolsonaro também assinou uma portaria que aumenta a quantidade de munição que pode ser comprada por civis que têm direito ao porte e à posse de arma. De 200 unidades por ano para 550 por mês.
Por determinação do presidente, o Exército revogou portarias sobre rastreamento de armas e munições. Na prática, sem as portarias, o rastreamento fica mais difícil. O Ministério Público Federal (MPF) pediu informações ao Exército sobre as revogações.
Além disso, um projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso no ano passado, já aprovado pela Câmara, prevê entre outros pontos, o aumento da lista das categorias profissionais com direito ao porte de armas. O texto ainda precisa ser aprovado pelo Senado. O projeto também tira a obrigatoriedade de marcação das armas das forças de segurança.
Com informações da Agência Brasil