A queda de Queiroz ou como derrotar o Bolsonarismo?

Contribuições a um programa de ação após a prisão de Queiroz


Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana*

Reproduzido dos Jornalistas Livres

A cidade de Atibaia está novamente no centro dos escândalos da República. Um ano e meio depois a pergunta foi respondida: onde está o Queiroz? Será que agora responderemos a uma outra: quem mandou matar Marielle? A queda de Queiroz é simbólica e real. Ele estava sendo protegido por pessoas que frequentam o salão do Palácio do Planalto. Mas, do ponto de vista simbólico ela representa uma esperança para pensarmos sobre a seguinte questão: como derrotar o bolsonarismo?

Pesquisa divulgada essa semana, pelo Instituto Democracia e pelo jornal Valor, coordenada, entre outros, pelo cientista político Leonardo Avritzer, aponta que diminuiu o apoio às ideias golpistas. Ainda assim, o número de apoiadores ao atual governo e a uma possível intervenção militar chama a atenção. Das pessoas entrevistadas, 29% acham que um golpe militar se justificaria em caso de muita corrupção.

A boa notícia é que quase metade dos eleitores de Bolsonaro não avalia o governo como ótimo e bom.

Um dos aspectos que merece destaque, mencionado por Avritzer, é o fato de que 94% dos que apoiam o governo não confiam na Rede Globo. Acreditamos que esse número não seria muito diferente se a pergunta fosse em relação à Folha de São Paulo. Tomando a Globo como uma metáfora da grande imprensa, isto é, da curadoria jornalística de empresas familiares e com interesses do grande capital, devemos nos perguntar: em quais veículos de comunicação os apoiadores do governo confiam? Seria apenas nos canais de rádios e pastores que apoiam Bolsonaro e receberam mais de 30 milhões de reais em repasses? É certo que no ambiente de TV aberta canais como Record, SBT e RedeTV têm funcionado, em maior ou menor grau, como vitrines governistas.

Essas vitrines não agem apenas omitindo ou distorcendo a realidade para reforçar as narrativas que interessam ao governo. De modo mais grave, esses canais promovem valores antidemocráticos em uma variedade de programas que misturam notícias, marketing e entretenimento atualista sem qualquer responsabilidade pela qualidade jornalística das informações. Do programa do Ratinho, no SBT, ao de Sikera Jr., na RedeTV, os setores populares são entretidos por uma teia formada por violência, preconceito, exploração religiosa e mentiras. A recente aprovação pelo Congresso Nacional para que esses canais possam novamente promover jogatinas disfarçadas de sorteios é a cereja do bolo.      

Considerando que para cerca de 25% a 35% da população brasileira a produção de realidades paralelas, isto é, de fake news, é a principal fonte de notícias, podemos afirmar que uma significativa parcela da sociedade constrói suas opiniões e toma decisões fundadas em desinformação.

Essas notícias simuladas são replicantes, no sentido de que uma vez liberadas na websfera sua disseminação é descontrolada. Promovidas em diversas frentes, desde as mídias tradicionais até as diversas plataformas da Internet que democratizaram e tornaram imersivas a produção e distribuição da desinformação em tempo real e sem interrupções, as notícias simuladas e replicantes acabam por tornar muito caro e ineficaz a sua eliminação. Claro que tudo isso ocorre por nossa incapacidade coletiva em criar barreiras institucionais à sua disseminação, ao contrário, socialmente não paramos de premiar e remunerar seus veículos. 

Assim, as chamadas fake news são muito mais do que mentiras ou simulações pontuais. Ao contrário, elas são a produção de todo um pacote, um ambiente, um sistema alternativo, onde você pode viver. É o ambiente da desinformação. Um lugar e uma comunidade onde as coisas são simuladas sem compromisso com o regime de verdade que é a base das democracias modernas, desde sua invenção no século XVIII.

Afinal, uma característica da fake é que ela é uma mentira que funciona, simulando, confundindo e substituindo a notícia real e seus contextos. Ainda que o termo desinformação seja mais preciso, é a ideia de fake news que hoje é partilhada e vivida por todos e todas. É a ideia que exprime um dos nossos dramas. E como superá-lo? O que fazer frente esse dado de nossa realidade, isto é, as fake news? Associado a isso, como derrotar esse projeto de barbárie baseado em fake news?

Em nossas reflexões, temos chamado a atenção para o necessário reconhecimento da força do bolsonarismo como fenômeno político e social no Brasil contemporâneo. E, por isso mesmo, precisamos nos perguntar também como derrotá-lo.

A resposta passa pelo fortalecimento dos democratas que vivem em nosso país nas suas mais diversas matizes ideológicas, em especial, no centro, na centro-esquerda e na esquerda brasileira. Em outras palavras: como fortalecer a esquerda, a centro-esquerda e o centro, bem como as frentes amplas que vêm se formando?

Como ponto de partida achamos que isso deve ser feito a partir do que disse essa semana a jornalista Tereza Cruvinel, quando afirma que não é o momento de julgarmos o papel do judiciário e do STF em sua conivência, para dizer o mínimo, com o lava-jatismo e com o Golpe de 2016: “Se formos acertar contas pelo retrovisor, deixando que trucidem o Judiciário, seremos levados todos juntos pelo vagalhão autoritário”.

O pacto que forjou a permanência da Lei da Anistia mostra o quão perigoso pode ser essa perspectiva. Mas, em momentos de emergência, é preciso acordos amplos e provisórios. No entanto, eles não podem apagar e silenciar o passado, mas ser possibilidade de construir outros futuros, repensando, inclusive, o modelo de conciliação que fracassou. Precisamos assumir a responsabilidade de viver em um tempo verdadeiramente paradoxal e agitado, isto é, atualista. Porém, sem um mínimo comum será muito difícil construirmos uma um país mais justo.

E como fazer isso? Uma possibilidade passa por formas concretas de equilibrar a assimetria de forças que hoje existe entre a máquina de comunicação bolsonarista e as estruturas competitivas, organizadas por forças partidárias, movimentos sociais e setores da mídia tradicional.

Esse equilíbrio de forças, na luta pela comunicação, passa por, pelo menos, duas frentes de luta. A primeira é um esforço de compreender e combater as formas e estratégias ilegais, mobilizadas pela máquina bolsonarista, ou seja, a sua identificação, punição e regulação.

Nessa frente é preciso cobrar, expor e combater tanto as empresas que se beneficiam da máquina de fake news, quanto os diversos sujeitos políticos e sociais que usam do poder econômico para movimentar essa máquina e esses recursos. O STF não vai fazer tudo. Ele por si só é incapaz de defender a nossa democracia. Precisamos discutir e tornar essa luta um programa de ação com reivindicações concretas e bem definidas.

Por exemplo, as grandes empresas precisam ser reguladas na forma como usam suas verbas de publicidade para promover ideologias e visões políticas particulares. Assim como fazemos um esforço legal permanente para controlar o abuso do poder econômico nas eleições, precisamos pensar em formas concretas de regulá-lo também na guerra cultural permanente que vivemos.

Nessa frente de combate temos muito a aprender com o ativismo digital, renovado a partir de uma agenda progressista que denuncie e combata empresas e empresários. Isso, além de cobrar das autoridades constituídas a criação e a execução de leis que regulamentem esses abusos.

Como segunda frente, é preciso admitir que os setores emancipatórios ainda não conseguiram se apropriar das ferramentas legítimas e legais, abertas por esse momento de avanço tecnológico nas formas de comunicação.

É preciso reconhecer, em primeiro lugar, que tanto os partidos políticos quanto as associações da sociedade civil, no campo emancipatório, ainda não foram capazes de se apropriar integralmente das novas ferramentas de comunicação digital. Portanto, é urgente compreender as causas que levam a essa dificuldade, mas, antes disso, reconhecê-la.

Em outras palavras, não é só atribuir o sucesso e/ou certa estabilidade do bolsonarismo apenas à manipulação das fakes news e ao uso de robôs. É preciso reconhecer que houve um intenso trabalho de formação de um exército de ativistas digitais, assim como o engajamento de pessoas comuns que se politizaram a partir dessa nova forma de fazer política controlada pelo bolsonarismo. Essa formação articulou de modo eficiente espaços sociais analógicos e digitais, desde a loja maçônica das pequenas cidades até os grupos de WhatsApp organizados com disciplina e tecnologia.

Tudo isso está intimamente articulado com as atuais transformações do capitalismo contemporâneo, em especial, com as transformações do mundo do trabalho que vem produzindo centenas de trabalhadores informais (precariado?) e desempregados. Partes desses órfãos vivem às margens do Estado e da proteção social. Alguns, inclusive, consideram-se empreendedores. Como afirma Guy Standing: “No modelo neoliberal, o desemprego tornou-se uma questão de responsabilidade individual, tornando-o quase “voluntário”. As pessoas passaram a ser consideradas como mais ou menos “empregáveis” e a resposta foi torná-las mais aptas para o trabalho, atualizando suas “habilidades” ou reformando seus “hábitos” e “atitudes””.

Incorporar parte dessas pessoas ao campo progressista é um desafio necessário. Nessa direção, num terceiro plano de possibilidades o campo emancipatório precisa construir pontes, assumindo de antemão seu compromisso antirracista e antipatriarcal, entre as diversas agendas e demandas que atendem à política da diversidade, em torno de uma efetiva agenda para a maioria, o que deve passar pelo necessário viés interseccional, ou seja, considerar as dimensões de classe, raça e gênero que estruturam as opressões. Hoje, em grande medida, é a direita e a extrema-direita que monopolizam o discurso da maioria. São elas que se colocam como representantes da voz da maioria do povo brasileiro.

Ao lado disso, é preciso rever a relação do campo progressista com a nação, com os símbolos nacionais e com a história nacional, o que pode implicar na proposição de uma agenda positiva em relação à nação, no sentido de se criar novos heróis, heroínas e símbolos, por exemplo. Em outras palavras, precisamos de novas formas de celebrar a nossa história comum. Do contrário, a direita e a extrema direita continuarão a monopolizar os símbolos de solidariedade, como vêm fazendo com a camisa da seleção brasileira, e ao construir suas histórias paralelas.

Ainda no plano regulatório, mesmo que reconhecendo as dificuldades políticas da sua execução, é preciso, também, enfrentar o problema do abuso de poder por parte dos conglomerados de mídia, de grandes grupos corporativos e empresariais, e das corporações religiosas, que hoje exercem, no Brasil, um poder econômico, político e cultural com regulação fraca e obsoleta. Por outro lado, é preciso algum tipo de aliança com parte desses setores com vistas à produção de um país menos desigual e combativo em relação à produção viral de realidades paralelas.

Sem renovar e atualizar as regras do jogo político, para restaurar algum tipo de equilíbrio e paridade de forças, essas corporações, nacionais e internacionais, continuarão no seu trabalho de destruição das estruturas do Estado liberal, já que o Estado tornou-se o grande adversário para a continuidade de seu projeto de acúmulo de poder corporativo. Sem nenhum tipo de recomposição de forças esses setores continuarão a enfraquecer e a saquear a riqueza coletiva acumulada, ao longo dos séculos, nos estados nacionais.

De algum modo, o campo progressista, os grandes conglomerados de comunicação e o Judiciário e parte do Legislativo têm, agora, um inimigo comum: as fake news. Não sem razão, muitos têm celebrado algumas edições do Jornal Nacional.

Não custa retomar: o sucesso das fake news se explica, em grande parte, por elas serem um substituto funcional da verdade. Um substituto funcional que imita a verdade, imita seus efeitos e pode ser usado como plataforma para avançar agendas que distorcem o interesse coletivo. As fake news funcionam, isto é, entregam para as pessoas aquilo que geralmente elas esperam de uma informação verdadeira. Ao mesmo tempo, grupos de interesse trabalham nas suas sombras para avançar agendas particulares. Certamente a turma de Paulo Guedes não toma decisões baseadas na guerra cultural do bolsonarismo, mas a utiliza como agitação e distração, como bem ficou demonstrado pelo amplo apoio popular à última reforma da previdência.

Portanto, sem abdicar da necessidade de uma política de segmentação e atendimento de direitos de vários grupos sociais, o campo emancipatório precisa reunir essas demandas em uma nova forma de representar, falar e formar maiorias, o que inclui, também, nesse momento, em construir acordos provisórias com certos setores dominantes e parte da classe média que havia abandonado a agenda progressista. Também envolve ter um programa de ação que atenda às novas configurações de classe, ao precariado, ao pequeno empresário, ao trabalhador precarizado, que pode ser branco ou negro, que hoje tem sido capturado pelo populismo de direita para pautas regressivas. Esse alargamento da agenda é uma das formas de dar consequência à demanda interseccional.

Sem algum tipo de aliança, dada a urgência do momento que vivemos, o combate ao universo paralelo do bolsonarismo ficará sempre fragilizado. E ele se atualiza a todo instante. Nós somos os obsoletos nessa guerra de trincheira digital. Nessa direção, é preciso reconstruir, no discurso e na prática política, o lugar do Estado e das políticas públicas, em  nome de projetos de futuro que superem e atendam as demandas sociais concretas que hoje se multiplicam.

Esperamos que a simbólica prisão de Fabrício Queiroz nos motive a enfrentar o positivo e necessário processo de repactuação para que a vida democrática, assentada nos valores da Constituição de 1988, permaneçam vivos e atualizados.

(*) Autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem.

Esse artigo contou com a colaboração de Mayra Marques, doutoranda em História pela UFOP