Lições da imprensa italiana na cobertura sobre o coronavírus
A covid-19 está desafiando como jornalistas lidam tanto com a desinformação quanto com as informações científicas
Publicado 07/04/2020 20:35 | Editado 07/04/2020 21:04
Leia a tradução do artigo do Nieman Reports
É estranho como por esses dias meu feed do Twitter parece exatamente com o meu feed do Twitter de 12 dias atrás. Dicas de ensino doméstico. Pessoas fazendo coisas nas sacadas. Animais vagando por cidades vazias. Metáforas de guerra. Zoom. Camus.
Eu já vi tudo isso antes. Só que desta vez o conteúdo é majoritariamente em inglês, enquanto na onda anterior era em italiano, minha língua materna. Em 19 de março, a Itália se tornou o país com o maior número reportado de vítimas de covid-19 passando o total de mortes na China, que no mesmo dia anunciou pela primeira vez que não tinha novos casos domésticos.
Conforme o epicentro da doença vai para o ocidente, vejo o passado recente acontecendo de novo por meio dos olhos dos norte-americanos. Mas, junto com memes e piadas que se autorreplicam –a maior parte inconsequente–, essa nova onda está trazendo de volta à tona os muitos desafios que jornalistas encaram quando cobrem essas circunstâncias sem precedentes.
A mídia na era do coronavírus tem que lidar com um pico de desinformação, boatos e fake news de todo tipo. O ecossistema altamente emocional e pautado pelo medo que a pandemia gerou é o ambiente ideal para um surto de desinformação. Essas tendências são algumas vezes reforçadas por líderes políticos, e os suspeitos de sempre não estão perdendo a oportunidade de semear pânico entre países rivais.
Mas os jornalistas que lutam contra a desinformação ocasionalmente contribuem com ela, também. Um caso recente envolvendo cotonetes para testes exportados para os EUA por uma empresa italiana serve para ilustrar.
Em 18 de março, o jornal on-line Defense One publicou que a força aérea norte-americana transportava 500 mil cotonetes para kits de teste para a covid-19 da Itália para Memphis, no Tennessee. Os suprimentos eram parte de um acordo com a Copan Diagnostics Inc., uma companhia sediada em Brescia, na Lombardia –região fortemente atingida pela epidemia. O tradicional jornal La Repubblica, uma das publicações de maior circulação do país, deu à história uma virada radicalmente diferente.
Em um artigo amplamente debatido, o jornal levantava a questão de que a Copan Diagnostics vendeu os componentes de teste para os EUA em vez de servir aos estabelecimentos de saúde locais, que precisavam desesperadamente deles. “Nós tínhamos um estoque colossal de kits de diagnóstico disponível a apenas algumas milhas do epicentro da covid-19. Essas são ferramentas que a nossa região está buscando de todas as formas possíveis, para frear o contágio, mas não é possível encontrar”, escreveu o La Repubblica, deixando implícito que a decisão de exportar os cotonetes impediu que os italianos tivessem a assistência vital de que precisavam. Uma acusação perturbadora, dada a dramática emergência na Lombardia. A reportagem serviu à velha metáfora da guerra, ao insistir que o comércio com os EUA provava que nesse conflito “cada nação age por si, usando todos os meios para conseguir as armas certas contra o vírus.”
Nas redes sociais, a reação foi furiosa –mas quase nada no artigo era verdade.
A Copan Diagnostics pode produzir 720 mil cotonetes por dia, e recentemente vendeu quase um milhão deles para hospitais na Itália –o que corresponde a cerca de 5 vezes mais do que o total de testes feitos no país até agora. O que torna a testagem lenta são as análises laboratoriais, e não a disponibilidade dos suprimentos, como a Copan Diagnostics explicou em um comunicado de imprensa. A companhia tem a capacidade de tanto atender às demandas domésticas quanto vender para outros mercados onde há falta de cotonetes. São boas notícias para todos os envolvidos, mas não corrobora a narrativa do “todos-contra-todos” que alguns veículos consideram tão atraente.
A desinformação é só uma dimensão do desafio que a mídia encara. Outro aspecto relevante diz respeito a como os jornalistas lidam com cientistas.
O novo coronavírus forçou quase todo repórter em todas as editorias a depender de muitos pesquisadores e acadêmicos. Na Itália, durante o início do surto, a mídia estava saturada de entrevistas com virologistas, epidemiologistas, e especialistas em doenças infecciosas de todo tipo. À luz da alegada morte da competência e do recente crescimento de instintos anti-intelectuais, isso é reconfortante.
Mas rapidamente os leitores descobriram que especialistas discordam uns dos outros –às vezes muito. Eles têm discussões furiosas no Twitter, também. Alguns deles estavam menosprezando a ameaça; outros estavam sugerindo desde cedo medidas agressivas de distanciamento social e isolamento. Nas discussões, tanto os alarmistas quanto quem subestimativa a pandemia tinham seus times de especialistas a quem recorrer.
O caso envolvendo Maria Rita Gismondo, uma pesquisadora credenciada e reconhecida, que chefia o laboratório de microbiologia no hospital Sacco em Milão, é particularmente impressionante. Uma publicação em seu Facebook do fim de fevereiro viralizou; depois ela apagou: “Me parece loucura! Nós transformamos uma infecção só um pouco mais séria do que a gripe em uma pandemia letal. Não é assim. Olhe os números. Não é uma pandemia! Na semana passada, a gripe matou 217 pessoas; o coronavírus, só uma.”
Dra. Gismondo se tornou a especialista de referência dos negacionistas e de quem menosprezava a situação. Mesmo depois que a visão dela foi refutada pela Organização Mundial da Saúde– e até de forma mais contundente pelo que aconteceu na China, Coreia do Sul, Japão, Irã, e eventualmente pelo total de mortes devastador na Itália– veículos de imprensa continuaram entrevistando-a.
Esta pandemia está revelando um conceito equivocado sobre “especialistas” que é muito difundido na mídia –em menor grau entre os jornalistas de ciência, que, infelizmente, estão quase extintos na Itália. Especialistas geralmente são considerados a fonte definitiva de evidências inquestionáveis e, ao mesmo tempo, simples e redutíveis a pequenas falas; mas o debate científico é, por definição, complicado, tem nuances e é até bagunçado –uma disputa entre hipóteses concorrentes que precisam ser verificadas com muito trabalho e tempo.
Isso também se aplica aos dados, que podem parecer a medida mais objetiva e universal para entender a realidade. Na era da pandemia, todos somos jornalistas de dados.
Exceto que não somos.
Exércitos de cientistas de dados estão trabalhando em diferentes modelos para entender, por exemplo, porque a taxa de mortalidade da covid-19 na Itália ou na Espanha é muito maior do que na Coreia do Sul, e difere também dos números da Alemanha e dos EUA. Esses esforços são absolutamente cruciais, mas têm que ser balançados com uma grande dose de cuidado –e talvez, também, com a arte perdida de admitir que há coisas que nós realmente não sabemos.
No caso da Itália, por exemplo, nós nem sabemos o verdadeiro número de vítimas. Pessoas morrem todos os dias em suas casas ou em asilos, às vezes com sintomas compatíveis com a covid-19. No entanto, por não estarem hospitalizadas, não fazem o teste para a doença. Enrico Bucci, um biólogo na Universidade Temple, na Filadélfia, explicou em uma longa entrevista que “os números vindos da Lombardia, nesse momento, não significam nada” porque a saturação do sistema de saúde acaba com a confiabilidade dos dados.
Esses são apenas alguns exemplos de aspectos dessa história global e com várias camadas que precisará de uma reflexão mais profunda conforme a pandemia se desdobra. Há muitas coisas que não sabemos, e, como jornalistas, deveríamos nos esforçar para entendê-las. Mas alguns dos erros e imprecisões do início da pandemia que aconteceram em meu próprio país sugerem que, enquanto apuramos as reportagens, devemos questionar algumas de nossas suposições e sermos muito cuidadosos ao traçar reflexões preliminares.
Em tempos normais, jornalistas são elogiados por sua coragem –merecidamente. Mas nestes tempos extraordinários, talvez a virtude mais louvável seja a prudência.
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*Mattia Ferraresi é jornalista e bolsista do Nieman. É repórter do jornal italiano Il Foglio.
O texto foi traduzido por Pedro Olivero. Leia o texto original em inglês.
Tradução publicada em O Poder360, que tem uma parceria com duas divisões da Fundação Nieman, de Harvard: o Nieman Journalism Lab e o Nieman Reports.