Coronavírus: Estado forte e unidade para vencer a crise
Exemplo da China mostra que é hora de afirmar a solidariedade, a união e somar esforços contra a pandemia
Publicado 23/03/2020 12:29 | Editado 23/03/2020 14:48
30 de dezembro de 2019: médicos chineses identificaram, na próspera província de Hubei, o aparecimento de uma doença desconhecida. Tal fato foi informado oficialmente à Organização Mundial da Saúde (OMS) no dia 31 de dezembro. O novo coronavírus, ou Covid-19, como foi denominado pela OMS, espalhou-se rapidamente entre a população da cidade de Wuhan, atingindo posteriormente todas as províncias chinesas.
Devido à rapidez da transmissão da doença, o presidente Xi Jinping declarou uma “Guerra do Povo” contra o vírus e tomou medidas drásticas para conter a epidemia e reverter a situação. Dentre elas, para conter a propagação, foram canceladas as comemorações do Ano-Novo Chinês, a maior festa popular do país, e decretado o isolamento de Wuhan e Hubei. As aulas nas escolas foram canceladas e as pessoas foram orientadas a ficar em casa, em quarentena. Já para o tratamento dos pacientes, foram construídos dois hospitais em apenas dez dias, fato que chamou a atenção de todo o mundo.
Províncias inteiras paralisaram suas fábricas. Os profissionais de saúde tiveram sua jornada aumentada e todos os setores do país se uniram em função da prioridade nacional: salvar a vida da população e evitar a propagação do novo coronavírus. Além disso, a empresa chinesa que produz carros elétricos, a BYD, adaptou uma de suas fábricas para a produção de máscaras descartáveis, tornando-se, em menos de um mês, a maior produtora mundial do utensílio. Em poucos dias, a China também desenvolveu kits para testes rápidos para o coronavírus, que agora estão sendo distribuídos para dezenas de outros países. Em menos de três meses, uma vacina está em fase de testes no país.
Em janeiro, as medidas chinesas eram tachadas no Ocidente como “radicais” e “ditatoriais”, uma vez que um governo não poderia impedir as pessoas de circularem, “trancando-as” em casa. Um mês depois, a partir das experiências na Ásia, os governos estavam convencidos de que o isolamento é a forma mais eficiente de reduzir a velocidade da propagação da doença, reconhecendo o acerto das medidas tomadas por Pequim.
Em fevereiro, a China vivia o ápice da pandemia enquanto o vírus já se fazia presente em todos os continentes. Nos primeiros dias de março, a China começava a reverter a curva do Covid-19, com o número de curados maior do que de infectados e, em 17 de março, depois de mais de 80 mil infectados registrados e 3 mil óbitos, todos os novos casos registrados na China eram de estrangeiros que haviam contraído a doença no exterior. No dia 18 do mesmo mês, a Itália ultrapassava a China em número de óbitos. No mundo todo, mais de 250 milhões de crianças e jovens estavam com as atividades escolares paralisadas.
Durante todo esse dramático período, o governo chinês manteve diálogo permanente com a OMS, atualizando os dados e alertando quanto a possibilidade de uma nova pandemia, tendo em vista a facilidade e velocidade da sua transmissão. Colaborou também com outros governos nacionais buscando retirar os estrangeiros de Wuhan e levá-los de volta aos seus países, como aconteceu com os brasileiros no final de janeiro de 2020.
O que mais chamou atenção no enfrentamento chinês à crise sanitária foi a capacidade de mobilizar todos os esforços nacionais em função do problema. O mercado foi enquadrado a partir das necessidades sanitárias do país. Isso não é fruto da crise em si, mas de uma lógica de governança. Ou seja, se traduz a partir de um projeto nacional de desenvolvimento que tem uma visão holística e transversal entre as diferentes áreas e que considera qualquer vulnerabilidade como problema de segurança nacional.
Por isso, o chamado “socialismo de mercado com características chinesas” é muito mais do que um projeto econômico – mas algo bem mais amplo, que incorpora todos os setores estratégicos da sociedade. Dentro dessa visão, optou-se por um freio na produção chinesa, com toda a capacidade estatal direcionada para salvar vidas e conter o avanço da pandemia. Por isso, a China conseguiu controlar o vírus de forma rápida, se considerarmos a população chinesa e a velocidade de transmissão da doença.
Aqui no Brasil, o primeiro caso foi confirmado no dia 26 de fevereiro, na cidade mais populosa do país, São Paulo, quase dois meses depois da confirmação do primeiro caso chinês. Como nos outros países, a velocidade de propagação é alarmante. Diferente da Europa, as medidas de isolamento foram anunciadas aqui pelos primeiros estados afetados já no dia em que foi constatada a transmissão comunitária. Essa, por enquanto, é a principal lição que aprendemos com a “experiência” na Ásia: o isolamento é a medida mais recomendável para evitar um pico da doença que o sistema de saúde brasileiro não seria capaz de absorver.
A outra lição, às vezes esquecida, é que o Estado tem um papel fundamental. Essa percepção tornou-se lugar-comum, mesmo entre os liberais mais radicais, que agora exigem medidas estatais para conter o novo coronavírus no Brasil. No entanto, elas serão insuficientes se o Estado Nacional não estiver devidamente preparado. Em outras palavras, a atual crise sanitária mais uma vez prova a necessidade de um Estado forte, que tenha um projeto nacional de desenvolvimento capaz de defender a população em tempos de paz e em tempos de guerra contra todas as possíveis vulnerabilidades. Um projeto nacional amplo, que inclua no seu escopo de forma permanente e integrada, ao tratar de segurança nacional, além da defesa em si, o tema da economia, da saúde, da produção de alimentos, do desenvolvimento científico e tecnológico.
Nesse sentido, o desafio do Brasil é ainda maior que o chinês: o país enfrenta uma depressão econômica desde meados da segunda década deste século. Além do baixo crescimento, temos assistido a uma perda do número de empregos formais e ao aumento da informalidade, além da diminuição da renda dos trabalhadores. Essa situação será agravada pela crise sanitária e pela paralisação das atividades. O setor informal ficará absolutamente sem renda, muitos trabalhadores perderão seus empregos e a demanda nacional sofrerá uma queda abrupta. Ao que tudo indica, essa será uma crise de grandes proporções aqui e no mundo.
Para piorar o cenário, as desigualdades sociais do Brasil não permitem aos mais pobres as mesmas condições sanitárias que as da classe média e alta. De acordo com o IBGE, 37% dos brasileiros vivem em moradias nas quais falta saneamento básico. Mais de 5% dormem em cômodos com mais de três pessoas. Enquanto alguns brigam para conseguir comprar álcool em gel, muitas comunidades não têm acesso à água para suas necessidades básicas, sobretudo lavar as mãos. Tais condições podem agravar o contágio no País, colocando os idosos e as pessoas mais pobres em perigo ainda maior.
Diante de tal gravidade, salta aos olhos a importância de, a exemplo do que fez a China, reunir todas as forças para enfrentar o problema. Isso significa colocar o sistema de Saúde e o Estado a serviço das vidas e dos empregos dos brasileiros. O orçamento público deve estar comprometido com amplos investimentos em saúde, saneamento, programas de ajuda aos mais pobres, a fim de diminuir os efeitos da crise sanitária. O Estado brasileiro deve também liderar, junto ao setor produtivo, o enfrentamento à crise econômica, fazendo com que qualquer injeção de recurso público para salvar empresas esteja a serviço dos empregos, dos salários e das necessidades da população e da economia brasileira no longo prazo.
Por tudo isso, é inadmissível que o presidente da República siga promovendo a divisão, a polarização e aja de maneira criminosa ao subestimar os efeitos da pandemia, seja não seguindo as recomendações adotadas em todo o planeta, ou referindo-se à crise como “uma chuvinha”. São igualmente graves os ataques verborrágicos à China, desferidos pelo clã Bolsonaro, assim como o incidente diplomático produzido pelo ministro das Relações Exteriores do Brasil contra a China.
Para agradar aos Estados Unidos, o governo federal cria cisões com o principal parceiro comercial do Brasil, sem considerar os interesses do povo brasileiro. A China é o país que tem as melhores condições de ajudar o Brasil neste momento, tanto pelo know-how adquirido no enfrentamento ao novo coronavírus quanto pelas condições materiais. O atual momento demanda uma postura altiva e ativa do Estado, e não o contrário.
As caixas com doações de máscaras e respiradores que a China enviou à Itália traziam escritas um antigo verso latino: somos ondas do mesmo mar. É hora de afirmar a solidariedade, a união e somar esforços, dentro e fora do país, para vencer a guerra contra a pandemia.
A autora e os autores são diretores do Instituto Sul Global