Por 26 anos, Chico Buarque visitou a casa de Clídio, bebeu, comeu, conversou, cochilou depois de muitas, e saiu de lá quase como entrou, oculto em uma máscara de palhaço
Publicado 20/02/2020 10:00 | Editado 20/02/2020 01:36
Há cinco anos, publiquei um texto sobre o compositor do frevo mais popular de Olinda. Com atualizações, agora o retomo.
Da primeira vez em que escrevi sobre Clídio Nigro, inspirado autor de Olinda, Quero Cantar, verdadeiro hino do carnaval da cidade, eu não sabia ainda que ele era amigo de Chico Buarque. Mas há uma semana fui informado por Dôra, filha de Clídio, sobre essa amizade. Antes, devo notar um traço arretado nas pessoas de Olinda que fazem política, são políticas, mas sem arroubo, pose ou exibição do valor que possuem. Não se anunciam como tais. Quando a gente menos espera, recebe o clarão da sua pessoa de esquerda.
A amizade de Clído Nigro com Chico Buarque vai pelo menos de 1969, depois do terror contra a peça Roda-Viva, até a campanha de Miguel Arraes para governador de Pernambuco em 1994. Por 26 anos, Chico visitou a casa de Clídio, bebeu, comeu, conversou, cochilou depois de muitas, e saiu de lá quase como entrou, oculto em uma máscara de palhaço. Assim ele se fantasiava para evitar assédio, que mesmo as jovens pernambucanas, no seu natural discreto, não deixavam de lhe fazer. Da última vez, passou a noite do fim de ano de 1994 com Marieta Severo e filhas na Ladeira da Misericórdia.
Dôra conta que Chico pedia sempre cachaça de cabeça, uma especial de alto teor alcoolico, que faz o bebedor soprar fogo como um dragão. Mas de leve, sem entornar de vez, que Chico não era bobo, e Clídio lhe pedia cuidado. Depois, entrava pelo uísque, saía pela cerveja, voltava ao uísque. Então eu perguntei a Dôra se Chico bebia até ficar bêbado, embriagado. Ao que ela me respondeu:
– De modo nenhum. Nunca ficou bêbado. Ele era um rapaz muito educado.
Ao que eu, sabedor assim da minha falta de educação, perguntei mais por maldade: “Mas ele não ficava nem assim, meio relaxado?”. Bem, aí sim, “ele ficava”, ela me responde. E de tal modo que ia pra janela, esquecido de que era Chico Buarque, de Hollanda, e lá ficava sem a máscara de palhaço. Então as moças discretas de Olinda saltavam-lhe em cima, e lhe pediam autógrafos, toques de passagem.
Numa dessas vezes, aconteceu o mais importante: Chico viu o povo cantar em massa, emocionado, uníssono, a letra de Olinda, Quero Cantar. Então ele, o compositor visitante, um músico de sucesso, não se conteve:
– Clídio, isso é que é o verdadeiro compositor popular. O povo canta!
Ao que Clídio, a sorrir, respondeu:
– Nada, o povo é que gosta das besteiras que faço.
E aqui termina a atualização do texto sobre Clídio Nigro, com a presença de Chico Buarque no carnaval de Olinda. E continuo a seguir com o que escrevi antes.
*
Para saber quem foi Clídio Nigro, o mais popular compositor de frevos de Olinda, em dois domingos conversei com os filhos Cleonice Nigro, Fernando Nigro e, por telefone, com Cláudia Nigro. A essas conversas acrescentei uma com o esposo de Cleonice, Jairo Correia Peixoto.
Entrevistar, ou melhor dizendo, conversar, é também muito aprender. E neste caso particular, para mim foi somente aprender. Espero que vocês tenham também descobertas semelhantes às que eu tive, como por exemplo: a existência de um Senado em Olinda, com direito à foto histórica dos senadores; o valor espantoso dos direitos autorais do frevo mais cantado em toda história, pois multidões de jovens gritam nas ladeiras e pulam de felicidade ao som de Olinda, Quero Cantar. E mais a cômica origem do frevo Bando de Conde.
Por último, mas já no começo, saibam deste fenômeno inédito, intrigante e curioso: um frevo criado por um compositor depois de falecido. Como é ?! Se duvidam, mantenham pelo menos a curiosidade em um minuto de dúvida.
Urariano – Cleonice, quem foi Clídio Nigro?
Cleonice – Clídio Nigro era um homem simples, músico, tocava vários instrumentos. Ele tocava piano, tocava bandolim, tocava violão, cavaquinho, pistom também tocava. Mas era um pai de família simples, escrivão do cartório de Olinda. Gostava muito de sentar ali, onde hoje é o Bar de Peneira, no Senado, que ele chamava O Senado de Olinda. Ele e os amigos dele para ficarem ali conversando. Olinda na época, na cidade alta, todos nos conhecíamos, porque eram famílias que nasceram ali, foram criadas ali, no sítio histórico. O miolo de Olinda era ali. Mas em época de carnaval, os amigos ficavam distanciados, porque uns pertenciam ao bloco do Guaiamum, outros ao Bloco de Batutas. Então eles eram amigos, mas no carnaval ficava cada um na sua.
Urariano – Então os grandes blocos do carnaval de Olinda não eram nem Elefante, nem Pitombeira.
Cleonice – Não. Eram Guaiamum na Vara, Batutas e Donzelinhos. Os três grandes clubes de Olinda, da época do meu pai. Todos os amigos do Senado, quando chegava o carnaval, se separavam.
Urariano – Amigos do Senado? O que é isso, o Senado?
Cleonice – Conhece não? E o Senado não é lá na calçada de Peneira?!
Fernando – Da calçada onde hoje está o Bar de Peneira tem uma foto histórica, tem uma foto da calçada com os Senadores, que ficavam lá sentados. Essa foto tem na Bodega do Véio, com todos eles que participavam.
Cleonice – Ali, aquela calçada, era considerada por eles como o Senado de Olinda. Eles se reuniam pra conversar, trocar ideias, dizer as coisas deles e da cidade. Mas na época de carnaval ia cada um pros seus blocos.
Urariano – Quando é que Clídio Nigro nasceu pro carnaval?
Cleonice – Quando ele começou a compor pro carnaval? Para os blocos ele já compunha, porque tem, ó, Banho de Conde, que é da época do Guaiamum, do Batutas, ele já tinha muita música, já, da época do Bloco Guaiamum na Vara. Tem outras também com Lídio Macacão, que ele compunha. Ele tinha parceiros, Wilson Wanderley, que era advogado muito famoso, tanto que Banho de Conde é dele e de Wilson. Vieira.
Para quem melhor leitura, acompanhem:
Banho de Conde
Vou formar a turma
Prá tomar banho na beira do mar
Vou ficar molhado
Eu vou dar água pelo carnaval
Vem padroeiro fiché
Que eu acendi o painel
Não mergulhei, mas me afoguei
Um banho de maré tomei.
Urariano – Como nasceu Banho de Conde? E o “padroeiro Fiché”, quem era?
A esta altura, devemos chamar Jairo Correia Peixoto para esclarecer.
Jairo – “Banho de Conde” é uma expressão antiga. Significava “o que deu errado”. Batutas era feito por amigos de seu Clídio: Otoniel Mendes, o irmão dele, Evilásio Mendes… E tinha na cabeça de Batutas um senhor, que era inglês, que veio para o Brasil, e que comandava a Great Western, a antiga Rede Ferroviária Federal. Então inventaram um banho à fantasia, no Carmo, aqui em Olinda. O Carmo era uma balaustrada bem alta, o mar quebrava bravo, não tinha essa calmaria que tem hoje, com o dique, construído na década de 60. Então Batutas programou um “banho à fantasia”, e saiu de lá dos Milagres com a nau. Fizeram uma nauzinha, só que ao chegar na altura dos Milagres naufragou. Aí Wilson Wanderley olhou para aquilo e disse “olha só, Clídio, o banho à fantasia de Batutas em que deu…”. E Clídio respondeu “nada, vamos escrever uma letra pra esses meninos”.
Urariano – Mas o que era o “banho à fantasia”?
Jairo – Você se fantasiava com papel, botava uma orquestra pra tocar frevo, e depois ia- se embora tomar banho na praia. Pulava com fantasia e tudo. Era banho à fantasia mesmo… E nesse dia não teve banho à fantasia, porque o barco virou, afundou lá nos Milagres, não chegou no Carmo pro banho. Aí eles escreveram: “Vou formar a turma pra tomar banho na beira do mar. Vou ficar molhado, mas vou dar água em pleno carnaval…”. “Dar água” era outra expressão que significava que falhou. “Vem, padroeiro Fiché”
Urariano – E o Fiché era…?
Jairo – O Fiché era o que comandava a Great Western. É seu Fisher, o inglês. Mas fizeram a corruptela para Fiché. “Vem, padroeiro Fiché”. Por que padroeiro Fiché? Pelo seguinte: Batutas, numa das festas de São João, quis fazer uma homenagem a Fisher. Você sabe que tem o São João do carneirinho, não tem? Pois bem, imitaram a lapinha de fim de ano, mas na hora em que caiu a lapinha, em vez de aparecer a imagem de São João, apareceu a foto de Fisher. Trocaram o santo pelo poderoso da ocasião. Aí Wilson Wanderley e seu Clídio botaram “vem poderoso Fiché”, por causa disso. Muita gente canta sem saber por quê.
Urariano – Você se lembra das circunstâncias em que foi criado o Olinda, Quero Cantar?
Jairo – Ah, Elefante tinha um hino que não era um hino, era um desdouro. (Cantarola) “É-lé-fante, é-lé-fante, é, é grande, é o maior da nossa geração…”. Isso era o hino de Elefante. Cláudio Mirula, filho mais velho de Clídio, disse a ele: “Pai, faz um hino pra Elefante”. Pitombeira já tinha o dele, “bate-bate com doce eu também quero…”. Clídio tinha composto na época uma música sobre Olinda, Olinda Número1, que era a que cantava a Pitombeira: “Olinda, estou de novo com você…”. Aí já tinha a letra pronta. Chamou Clóvis Vieira e disse: “Clovis, o meu filho tá pedindo um hino pra Elefante. Vamos fazer umas modificações nessa música”. Pronto. Aí modificaram aquela música que era para Olinda, e fizeram o Hino de Elefante.
Urariano – Me situe por favor. Qual era “aquela música” que ele modificou?
Jairo – Não existe mais. Ele modificou pra fazer o Hino de Elefante. E a outra esqueceu. Deixou pra lá. Surgiu no lugar o Hino de Elefante:
Ao som dos clarins de Momo
O povo aclama com todo ardor
O Elefante exaltando as suas tradições
E também seu esplendor
Olinda, este meu canto
Foi inspirado em teu louvor
Entre confetes e serpentinas
Venho te oferecer
Com alegria o meu amor
Olinda! Quero cantar a ti esta canção
Teus coqueirais, o teu sol, o teu mar
Faz vibrar meu coração, de amor a sonhar
Em Olinda sem igual
Salve o teu Carnaval!
Urariano – Mas foi de imediato um sucesso?
Jairo – O sucesso foi sendo construído ao longo do tempo. Porque o sucesso da época era o Hino de Pitombeira. Não devemos esquecer que Elefante nasceu de uma dissidência de Pitombeira.
Mas voltemos a Cleonice Nigro.
Urariano – Eu soube de uma história muito interessante: quando Olinda recebeu o título de Patrimônio Cultural da Humanidade, o que houve com a senhora?
Cleonice – Logo depois que Olinda recebeu o título de Patrimônio da Humanidade, na época do carnaval, chegando o carnaval, eu tava em casa e aquilo sempre fazia assim: “pega o papel e lápis”. Aí eu peguei papel e lápis. Aí ele mandou.
Cleonice começa a cantar, boa cantora que é, um frevo-canção póstumo de Clídio Nigro, que teria guiado sua mão em fevereiro de 1983:
A saudade dói, a saudade dói
Neste clima quente
Olinda que mexe com a gente
E o tempo não destrói.
O carnaval vai chegando
O povo se balançando
Festejando sua vitória
Festejando sua vitória
No seu festival de glória.
E solfeja os acordes finais do que seria o frevo póstumo: “pararará parantantan, pararará parantantan, pararan, parará, parará. Pan…”.
E retoma:
Cleonice – Vem assim, ó, vem assim na mente. Música e letra ao mesmo tempo.
Urariano – A senhora tem isso como uma mensagem dele?
Cleonice – Claro, ele mandou. Foi a primeira.
Urariano – E a senhora compõe fora disso, sem mensagem?
Cleonice – Não, não. Foi só através dele mesmo. Porque a minha sintonia com meu pai era muito grandiosa. Tanto que ele gostava de música e eu gosto. Eu canto. Cantar é amor, é isso que eu faço.
Urariano – Qual o título desse frevo que ele mandou?
Cleonice – Exaltação a Olinda. Ele botou título e tudo. Aí o maestro Nunes, por intuição dele, eu fui lá e ele fez o arranjo. Eu tenho o arranjo desse frevo em casa. Mas jamais gravei, preciso até registrar ele. Eu vou ter que registrar em cartório essa música.
Urariano – Pode ser o primeiro frevo póstumo de Olinda… Mas Clídio Nigro compunha em que instrumento? Ao piano, violão, ou bandolim?.
Cleonice – Não, não, não. Ele compunha como eu componho. Com um papel e um lápis. Ele tinha a música na alma. Tudo de ouvido. Quem passava, quem fazia a partitura era o maestro Nunes, todinha. Mas o meu pai entendia, porque cantava no coral, mas o que eu disse pra você, “papel e lápis!”, eu via ele também fazer isso. Em qualquer papel, o que estivesse no alcance na hora. E vinha me mostrar. “Oi, mas tá muito boa”, eu dizia, entendeu? E como eu tinha com ele essa conexão, eu não esquecia nadinha.
Urariano – Eu quero agora destacar: o esquecimento que parece existir hoje em torno da pessoa e do compositor Clídio Nigro; os momentos marcantes da sua vida como carnavalesco, que dizem até que ele era carnavalesco sem ser folião…
Cleonice – Isso é verdade. Ele estava presente em todos os blocos. Saísse Pitombeira, ele tava lá. Saísse Elefante, tava lá. Mas não vivia pulando no carnaval não. Mas como ele mesmo se retratou, em uma mensagem que ele mandou pra mim, depois de falecido: “Tudo não passou de um sonho o meu caminhar na vida. Caminhos tão serenos, numa existência tão querida. Encontro a realidade e vivo novos sonhos, sublimes e tão lindos, quem me dera nova vida”. Então ele retratou a vida dele assim, dessa forma.
Urariano – Então, a que se deve este esquecimento de Clídio Nigro hoje? O seu frevo máximo aparece, mas ele não.
Cleonice – Olha, é a preservação cultural, que não existe em Olinda. As pessoas esquecem (ouve-se um canto de pássaro no jardim) muito quem realmente contribuiu para abrilhantar (de novo, o canto do pássaro) a beleza cultural da cidade. (O pássaro, novamente, cresce um concerto no jardim.) Esquecem.
Urariano – Quais são os principais frevos de Clídio Nigro, além de Banho de Conde e Olinda Número 2, que é o hino de Elefante?
Cleonice – Ele tem Vassourinhas, Regresso, também o Regresso do Elefante, que é muito bonito e pouco se toca, e outras que no momento eu não estou assim me recordando. Mas sei que essas existem e ficam à parte, que não foram tocadas. As que mais se evidenciam são estas: Olinda Número 1, Olinda Número 2 e Banho de Conde. E tem a de Marim dos Caetés também, esqueci de falar. Marim dos Caetés também foi uma dissidência da Pitombeira. Ele também tinha uma música referente a Olinda, com Marim dos Caetés.
Urariano – Eu estava pesquisando e vi que no Hino de Elefante, o Olinda, Quero Cantar, Clídio Nigro compôs em parceria com Clóvis Vieira. Mas Clóvis Vieira era surdo. Como é que foi essa história?
Cleonice – Mas existe algum obstáculo? Existe não. Vem na mente. Ele escreve… o corpo físico não ouve, mas o espírito ouve, tá ali.
Urariano – Mas me diga uma coisa: nesse frevo hino de Olinda, a melodia é de Nigro, ou é a letra, ou é misturado?
Cleonice – Não, a letra foi de pai, a letra é de pai. Agora, a melodia é dos dois juntos. Clóvis era surdo, mas não era totalmente surdo não. Ele não era surdo de tudo, tudo não. Ele tinha dificuldade de audição. Mas não era surdo total, entendeu? Mas pra isso não é obstáculo não, viu?
Urariano – Clídio Nigro é um compositor de sucesso, porque o sucesso é isto: todos os anos ele é tocado e cantado. O que foi que rendeu de direitos autorais?
Cleonice – Os direitos autorais são um negócio muito complicado, porque não tem como fiscalizar. Mas ele tinha, e tanto que nos deixou essa herança. Ele é cadastrado como compositor e nós, depois que ele morreu, nós temos na Ordem dos Músicos do Brasil, nós recebemos, depois do carnaval. Sai um dinheirinho, dividido por 10… Para o que toca em Olinda, nas ladeiras, em todo Pernambuco, é fraco, fraco. A música do meu pai não só toca no carnaval não.
Urariano – A senhora pode dizer o valor do último direito autoral?
Cleonice – Dois mil e setecentos reais para 1 ano. 270 pra cada um dos filhos. É ridículo, mediante o que se toca. (Valores de 2014)
Fernando – Pra gente mesmo, o que mais gratifica a gente é ver tocar a música dele.
Urariano – Ele era reconhecido pelos blocos?
Cleonice – Ah, era, reconhecido e reverenciado por todos os blocos. Todo o mundo passava lá, na frente da casa da gente, nos Quatro Cantos. E quando ele esteve doente, em 82, quando já estava perto dele partir, e os blocos todos passaram lá, e reverenciaram ele. Sabiam que ele estava doente, todos os blocos passavam. Ele ficava na janela e os blocos passavam, estandarte, cumprimentavam, chega as lágrimas corriam dos olhos dele.