Identidades ideológicas – e semiologia do anticomunismo

Uma crítica ao livro Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária, de Antonio Risério

Bem diferente do importante estudo A Utopia Brasileira e os Movimentos Negros (1), o livro recente de Antonio Risério, Sobre o Relativismo Pós-Moderno e a Fantasia Fascista da Esquerda Identitária (Topbooks, 2019) sofre de falência ideológica múltipla (do uno). A assombração comunista espanca a esmo sua narrativa antropológica sofisticada.

Nele, Risério até que desfila uma taxonomia convincente – e adjetivada – sobre a “tipologia” (a la Weber) do caráter maníaco do identitarismo (“construtos deliriosos”; “empenhado em destruir reputações”; “cracolândia mental”; “o inimigo [agora] é o outro”, etc.). Mas, intelectual de vasta cultura, ainda não aprendeu a distinguir o que é ser reacionário – mesmo ultrarreacionário –, ser intolerante, ser autoritário, do que é que é mesmo o “fascismo” (2) – ser fascista. Logo no começo, ele abre a barraca para vender seu peixe ideológico. Qual?

“Quanto a mim, não só abomino qualquer espécie de fascismo, venha historicamente do stalinismo ou do nazismo, por exemplo, ou se expresse, em nossa penúria conjuntural, nos extremos do ‘petismo’, do ‘identitarismo’ ou do ‘bolsonarismo’” (p. 13).

Ora, quem adentra faceiro à seara da literatura política comete um desatino fugidio ao omitir ou desconhecer – numa matéria tão cheia de tensões e enormes tragédias humanas – as Lições sobre o Fascismo (1935), do eminente intelectual e político italiano Palmiro Togliatti. Um ano antes, Togliatti dissertara, de maneira ainda mais clara e direta, acerca do conceito de fascismo:

“(…) o fascismo é a forma aberta da ditadura dos grupos mais reacionários da burguesia, nas condições históricas atuais (…). [o fascismo] defende manter o poder da burguesia por meio da violência aberta e do terror, desencadeando uma ofensiva desapiedada contras condições de existência dos trabalhadores, destruindo toda a possibilidade de organização autônoma do movimento operário e das grandes massas, amordaçando a opinião pública”. (3)

Risério escorrega, assim, ao esgoto velho e fedido do anticomunismo, disfarçado de “esquerda democrática” (p. 13).

Empolando sua verborragia de retórica, condena o “doentio sentimentalismo indentitário” apologeta dos “aspectos desagradáveis da vida e dos seres humanos” (deformidades, invalidez, etc., p.38); diz ser a “agitação indentitária” uma soma de “contracultura de relativismo, subjetivismo e movimentos sociais” (p. 40); que uma esquerda pós-moderna, que rebatizou “o pluralismo de multiculturalismo”, deu “roupagem nova” ao que a direita americana sempre quis que ela assumisse (p. 41).

Em sua fúria anti-pós-modernista, Risério esculhamba o niilismo de cátedra inspirado pelo filósofo Foucault, lembrando o estudo de Guilherme Merquior; arrasa com as (imensas) debilidades da historiadora Lilia Schwarcz – Lima Barreto era “afrodescendente, por origem, por opção e forma literária”, inventara Schwarcz (p. 108); detona o ator Wagner Moura, que considerou Carlos Mariguella “um herói negro”, para o autor símbolo do “capachismo mental de um ativismo tão racialista tão colonizado quanto semiletrado”; “Mariguella definia-se orgulhosamente como mestiço tropical brasileiro”, afirma Risério (p. 110).

Embora possa ter razões no conteúdo crítico particular, Risério, assim, mete no mesmo balaio (de sua peixaria ideológica) formulações de distintas origens e níveis de abstrações autorais, como nos exemplos que dei. Um suposto teórico-ideológico fundamental dele: projetos revolucionários totalizantes ficaram para trás – “restou apenas a vocação para o totalitarismo”, sentencia (p. 41). Ora, há 20 anos, acerca das origens do conceito de totalitarismo, o cientista político Luis Fernandes demonstrou brilhantemente:

“A principal é a de que o conceito [de totalitarismo] foi gerado e nutrido pela ideologia e propaganda anticomunista no contexto da Guerra Fria, tendo se transformado tanto em instrumento quanto em visão de mundo dos setores mais agressivos e belicosos do establishment norte-americano” (O Enigma do Socialismo Real. Um Balanço Crítico das Principais Teorias Marxistas e Ocidentais, Maud, 2000, p. 31. Ver especialmente: “Teorias do totalitarismo. As origens intelectuais do conceito”, pp. 24-35).

Risério repete sobre uma “esquerda identitária” de pensamento “binário” (p. 18), da “violência à esquerda e à direita” e da “truculência identitária” – que “equiparam-se, em suas intervenções culturais, à da extrema-direita bolsonarista. Tudo sob o signo do fascismo” (pp. 22-23). Mas ele mesmo é “bipolar” e “binário” quando iguala “o furor dos stalinistas que levaram Maiakovski ao suicídio” como sendo “monstruosamente idêntico ao furor dos nazistas que levaram Walter Benjamin ao suicídio” (p. 24).

Reducionismo e simplificações grosseiras:   

1) Em seu último poema (carta de despedida), escreveu o grande esteta e revolucionário russo: “A todos / De minha morte não acuso ninguém e, por favor, não façam fofocas. O defunto odiava isso”. Como disse o biógrafo Aleksandr Mikhailov, “a pessoa que deixa voluntariamente a vida leva consigo o mistério de sua decisão. Nenhuma explicação (inclusive as de Maiakóvski) penetra na essência real da atitude tomada” (Maiakovski — O Poeta da Revolução”, Record, 2008). Restou então a Risério ter sido o confidente de Maiakosvski – uma mentira descarada!

2) A história do suicídio de W. Benjamin tampouco pode ser falsificada como deseja: “No período mais difícil da Segunda Guerra Mundial, o escritor judeu estava na França à espera de um visto de entrada nos Estados Unidos. Junto com um grupo de fugitivos, tentava entrar na Espanha ilegalmente, mas foi parado pela polícia do país, por não ter o visto de saída da França. Em Portbou, não quis esperar o desfecho sobre o seu destino e resolveu se matar, com morfina. No dia seguinte, as autoridades espanholas não deportaram o grupo, que pôde prosseguir em sua viagem para longe dos horrores da escalada do fascismo” (Walter Benjamin – Uma Biografia, de Bernd Witte, Autêntica, 2017. Reproduzo resenha (correta) de P. Henrique Silva).

Mas a fraude de Risério, neste caso, é muito mais grosseira: Witte enfatiza as tendências suicidas de Walter Benjamim bem antes do nazismo se materializar efetivamente na assunção de Hitler (30 janeiro de 1933). Consumidor de haxixe para devaneios, sob controle médico, desde 1927, Benjamin fala “numa crescente disposição para o suicídio” (1931); “A profunda ânsia de morte que se mostra reencontra nas anotações do diário que Benjamin faz em maio e junho do mesmo ano” (1931). Mais trágico ainda: outras anotações em Diário de Sete de Agosto de Mil, Novecentos e Trinta e Um até o Dia da Morte”, discorre Benjamin:

“Este diário promete não ser muito longo. Hoje chegou a resposta negativa de Kippenberg (…), e com isso meu plano ganha toda atualidade que apenas a situação sem saída pode lhe dar. (…) Mas se algo pode dar aumentar ainda a determinação, a paz na qual eu penso na minha intenção, então se trata do uso inteligente, digno, dos últimos dias ou semanas” (Witte, idem, pp. 100-103).

Ou seja, Risério pôs sinal de igualdade em dois suicídios para, binariamente, acusar diretamente comunistas e nazistas de tê-los provocados por uma mesma conduta ideológica. Bastava o culto antropólogo se perguntar, sem vergonha – e honestamente –, por que mesmo os soviéticos da época de Stálin deram 27 milhões de vidas para esmagar os nazistas!

Domenico Losurdo, também repetidas vezes, denunciou a transmutação de Hannah Arendt, desde a Guerra Fria, para difundir a categoria de “totalitarismo” psicologizante e psicopatológica: “lê as grandes crises históricas como explosão de loucuras”; onde a capitulação ideológica do “marxismo ocidental” é o recalque da relação “colonialismo-nazismo”. Onde a teoria do totalitarismo “colocava no mesmo plano Terceiro Reich e a União Soviética” (O Marxismo Ocidental. Como Nasceu, como Morreu e como Pode Renascer, Boitempo. 2018, pp. 122-142, 160).

Risério faz mais: escreve que a esquerda francesa “sempre gostou de posar de civilizada” na – diz ele – “polarização” entre civilização e barbárie, “apesar de tudo o que sempre soube sobre a Rússia, Coreia do Norte, a China, o Cambodja de Pol Pot e do Khmer Vermelho e mesmo Cuba” (p. 25). Mas, apesar dessa mistura suja, de alhos com veneno, não adianta o leitor procurar uma frase contra a linguagem do império americano (Losurdo) porque não vai encontrar!

O livro de Risério é uma neurótica mania de combater, insistentemente, a esquerda marxista e comunista, adornado com uma crítica ultrassectária de um problema mundial, candente e real: as desventuras do identitarismo, filho do multiculturalismo e inimigo da questão nacional. O que fracassará, como todas as tentativas de liquidação do Estado-nação, também uma invencionice da ideologia da hegemonia imperialista americana.

E seu “lugar de fala”, que se diz da “esquerda democrática”, está longe de ser honesto, como o do assumido liberal Mark Lila, em O Progressista de Ontem e o do Amanhã (Companhia das Letras, 2018) (4), uma crítica contundente às raízes do multiculturalismo norte-americano e sua outra cria, a pós-verdade.      

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NOTAS

(1) Editora 34, 2012, 2ª edição [2004]. Nele, Risério identifica uma “contra-história” recente no Brasil, que “foi se gravar nos próprios Parâmetros Curriculares Nacionais do Ministério da Educação, durante o governo Fernando Henrique”; onde professores “celebram irrestritamente, no plural e sem qualquer senso crítico, negros e índios. Nenhuma palavra de paz, nenhum discurso pacifista, acerca da cultura agressiva de tupinambás e tupiniquins, por exemplo, que educavam seus filhos homens, desde a primeira infância, para matar – inclusive, com as cunhãs embebendo os bicis dos peitos no sangue de prisioneiros sacrificados em ritual antropofágico, afim de que os bebês provassem o gosto do inimigo morto” (pp.389-90). Dezesseis anos após, ele passa de uma argumentação muito sólida ao panfletarismo ideologizado.

(2) O renomado Dicionário de Política (Norberto Bobbio et alii, Editora Unb, 1998 p. 269-274, 11ª edição) assim sintetiza o fascismo: “uma ditadura aberta da burguesia, totalitarismo, modernização autoritária e revolta da pequena burguesia”. Segundo o teórico marxista e ex-presidente da Bulgária Georg Dimitrov, o fascismo é “a ditadura abertamente terrorista dos elementos mais reacionários, mais chauvinistas e mais imperialistas do capital financeiro” (Jorge Dimitrov, Obras Escolhidas, v. 3, Editorial Estampa, p. 10).

(3) Ver: “Onde está a força do fascismo italiano?”, P. Togliatti, em: L’internationale Comuniste, 5 de outubro de 1934; apud: Togliatti, op. cit., Lições sobre o Fascismo, Livraria Editora Ciências Humanas, 1977, p.117.

(4) “O liberalismo indenitário deixou de ser um projeto político e se metamorfoseou num projeto de evangelização. A diferença é a seguinte: evangelizar é dizer verdades ao poder. Fazer política é conquistar o poder para defender a verdade” (Lilla, op. cit., p. 18).

Autor

Um comentario para "Identidades ideológicas – e semiologia do anticomunismo"

  1. Mario disse:

    Muito legal mas onde que está a crítica? Foi apontada a única imprecisão quanto ao suicídio do Maiakoviski mas sabemos que o livro trata de muito mais do que isso. Além do mais definição de fascismo do Palmiro Togliatti? Uma definição que abre o leque para classificar como fascismo tudo que não seja a ditadura do proletariado, aliás a cortina de ferro era chamado de muro anti fascista não é mesmo? Então para os comunistas todos que não são comunistas são fascistas. Boa tentativa mas falhou miseravelmente, a boa e velha ladainha marxista que refuta sem refutar. Melhor sorte na próxima vez.

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