Classe média, Brasil e EUA, por Nelson Barbosa
Nos EUA e no Brasil houve compressão da classe média entre 2001 e 2014, mas de modo diferenciado
Publicado 31/01/2020 10:34 | Editado 31/01/2020 16:03
Quase todo colunista já usou a frase de Tolstói, no livro Anna Karenina: “Todas as famílias felizes são parecidas. Cada família infeliz é infeliz da sua própria maneira”. Chegou minha vez e recorro ao escritor russo para falar da classe média no Brasil e nos Estados Unidos.
Como demonstrado por vários estudos, houve queda na participação da classe média na renda dos dois países em anos recentes. Porém, a queda foi diferente em cada economia, influenciada pelo tipo de política econômica adotada lá e cá.
Mais formalmente, a World Inequality Database (WID) apresenta a distribuição de renda pessoal antes dos impostos em vários países. No Brasil, os dados começam em 2001, e a observação mais recente disponível é de 2015. Nos Estados Unidos, os dados começam bem antes, no início do século 20, mas a última observação é de 2014 (coloquei os números no Blog da FGV Ibre).
Considerando o intervalo comum de 2001-14, verificamos aumento da parcela da renda apropriada pelos 10% mais ricos nos dois países. Nos Estados Unidos, o aumento foi de 42,8% para 47%, no Brasil, de 54,3% para 54,6%.
Traduzindo do economês, ainda somos bem mais desiguais do que os Estados Unidos quando consideramos a participação dos 10% mais ricos no total da renda. Mas a expansão da parcela apropriada pelo topo da distribuição de renda foi bem menor aqui do que lá, durante a maior parte dos “anos petistas”.
A diferença entre EUA e Brasil aumenta quando consideramos os 50% mais pobres. Nos EUA, a metade inferior da distribuição de renda perdeu participação entre 2001 e 2014: de 15% para 12,5%. No Brasil, houve simplesmente o contrário: aumento de 12,6% para 14,3% no mesmo período. Certamente salário mínimo e ampliação de empregos formais no auge dos “anos Lula e Dilma” explicam parte da diferença.
Os dois países se aproximam quando analisamos a “classe média”, isto é, o grupo entre os 50% mais pobres e os 10% mais ricos. Nos dois casos houve perda de participação na renda: de 42,3% para 40,4% nos EUA e de 33,1% para 31,1% no Brasil. Essa queda comum de quase dois pontos ajuda a entender parte da insatisfação e guinada para o populismo de direita aqui e nos Estados Unidos.
A situação volta a divergir quando analisamos os “quase muito ricos”, isto é, aqueles entre os 90% mais pobres e o 1% mais rico. Houve aumento da participação desse grupo na renda dos EUA, de 25,5% para 26,8%, mas redução no Brasil, de 28,1% para 27,1%. A perda de um ponto no Brasil também ajuda a entender a revolta da alta classe média por aqui.
E o 1% mais rico? Houve aumento da participação na renda nos dois países, pois esse grupo tem mais meios de se proteger em qualquer situação. Nos EUA, o crescimento foi de 17,3% para 20,2%. No Brasil, de 26,2% para 27,5%. A redistribuição para cima foi muito maior lá do que aqui, mas houve redistribuição para cima nos dois casos.
Volto a Tolstói. Nos EUA e no Brasil houve compressão da classe média entre 2001 e 2014, mas de modo diferenciado. Por lá, os 90% mais pobres perderam participação para os 10% mais ricos. Por aqui, os 50% mais pobres e o 1% mais rico ganharam participação e, consequentemente, os 49% do meio (a classe média e os quase ricos) perderam.
E depois de 2014? Os dados de 2015 indicam nova concentração de renda no Brasil, mas agora seguindo o padrão dos Estados Unidos: os 90% de baixo perderam enquanto os 10% no topo ganharam. Só saberemos se isso é a nova tendência ou efeito temporário da recessão de 2015 quando tivermos dados mais recentes.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo