Os números e a força de Bacurau, o melhor filme de 2019
Longa de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles fala de força social e justiça popular, leva mais de 730 mil pessoas aos cinemas e é prova viva de um diálogo real com seus espectadores
Publicado 09/01/2020 11:14 | Editado 09/01/2020 14:29
Imagine um governante tão perigoso – e que representasse a sua própria gente tão pouco, ou menos que nada – que precisasse ser destituído para a sobrevivência geral da Nação. Imagine esse governante diante da força deste povo. Imagine que esta força pudesse lhe despir de todas as suas mentiras e bravatas e fake news. Imagine agora que as próprias mentiras do governante o amarrassem e o carregassem pra bem longe…
Em parte, é sobre isso que se trata o filme Bacurau, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, sobre uma cidadezinha homônima que vira alvo de forças externas que gostariam de fazê-la desaparecer do mapa, talvez por medo de insurreição popular ou para facilitar o acesso estrangeiro às suas riquezas naturais. Estamos falando de força social e justiça popular.
Em meio a acusações recentes do governo na tentativa de detratar e desarmar o nosso cinema brasileiro em seu maior clímax histórico de inúmeros prêmios e competições internacionais, as salas lotadas de Bacurau foram prova viva de um diálogo real com seus espectadores. Sem falar que gerou 800 empregos diretos e indiretos, levou mais de 730 mil pessoas aos cinemas e teve uma renda de mais de R$ 11,2 milhões, de acordo com a distribuidora Vitrine Filmes.
Um sucesso inserido no mesmo setor de cultura brasileira que equivale a 2,5% do PIB, em torno de R$ 170 bilhões, empregando cerca de 5 milhões de pessoas, entre formais e informais, ou quase 6% de toda a mão de obra brasileira. Mas isto não se deu apenas por ganhar dez prêmios internacionais, incluindo o Prêmio do Júri no Festival de Cannes 2019. Nem por se pronunciar politicamente no contexto da trama ficcional.
Seja pelas micropolíticas afirmativas de gênero, raça, sexualidade, classe e territorialidade, bastante presentes aqui, ou pela tenebrosa necropolítica atual, mais do que nunca, precisamos vencer o velho estigma de que nossa cultura é “vira-lata” perante o pedigree do que vem de fora, como já defendiam nomes como Glauber Rocha e Paulo Emílio Salles Gomes.
Há aqui um poderoso acervo de influências do nosso próprio Cinema Novo, como de O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, de Glauber Rocha, na utilização de plano-sequência em visões panorâmicas da beleza natural do cangaço como gênero de luta, calcado em Lampião, Maria Bonita, Corisco e Dadá (todos presentes em Lunga, de Silvero Pereira).
Bacurau experimenta também com ares high-tech e sci-fi, com signos de O Bandido da Luz Vermelha, de Rogerio Sganzerla, e O Quinto Poder, de Alberto Piarelisi, falando sobre manipulação de massas e mensagens subliminares pelas mídias de comunicação. Além de toques de fantástico, como de Hitler 3° Mundo, de José Agrippino de Paula, Feminino e Plural, de Vera de Figueiredo, e Orgia ou o Homem que Deu Cria, de João Silvério Trevisan. Ou até remissões diretas ao terror e ao horror psicológico, como nos filmes de Zé do Caixão e Ivan Cardoso.
O sangue excessivo, neste caso, não era para assustar – e, sim, purificar, para unir; um sangue brasileiro, cujo valor só lembra no dia a dia quem tem o seu próprio derramado também. Um sangue de cinema social.
Ótimo exemplo aqui é a antológica cena dos personagens sudestinos (Karine Teles e Antonio Sabioa, marcantes) que se aliam aos estrangeiros contra os cidadãos nordestinos – numa grande desconstrução crítica da branquitude como visão hierárquica por default, como se “brancos” fossem a regra e outras raças, a exceção, logo num país onde a maioria da população é negra e assassinada por violência policial.
Isto porque não é apenas nosso cinema brasileiro que está lutando contra o fascismo dentro e fora das telas, mas, sim, todos os cidadãos. A linguagem do cinema pode unir os filmes numa grande família imortal, contudo, são seus espectadores, a cada geração, que interligam a catarse coletiva que uma obra pode ou não gerar.
Publicado originalmente na CartaCapital