Senzala Brasil: Uma releitura de Gilberto Freyre
Para compreendermos a formação histórica e o caráter predatório da elite brasileira, um livro é fundamental: Casa-Grande & Senzala, do grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre.
Publicado 13/12/2019 19:51
Casa-Grande & Senzala, livro clássico de Gilberto Freyre publicado pela primeira vez em 1933, é obra essencial para entendermos a construção da sociedade brasileira, que desde as capitanias hereditárias até os dias de hoje mantém preconceitos arcaicos contra mulheres, índios, negros e pobres e não é capaz de avançar para um estágio civilizacional mais avançado, pelo compromisso da burguesia nacional com a preservação do latifúndio e pela sua submissão ao grande capital internacional.
A sociedade brasileira sempre esteve dividida entre a Casa-Grande e a Senzala. Vivemos em um país que impôs a exclusão social, os preconceitos racial, religioso, de classe, de orientação sexual e de gênero desde o início da colonização portuguesa, no século 16, até os dias atuais. Para compreendermos a tragédia brasileira, portanto, é necessário estudarmos as nossas raízes coloniais, e em particular a formação da elite brasileira, que nasceu com as capitanias hereditárias, os engenhos de cana-de-açúcar, a imposição do cristianismo, o trabalho escravo, a submissão da mulher e a dependência política, econômica e cultural em relação à metrópole.
Nunca nos emancipamos do colonialismo e do imperialismo – primeiro o português, depois o inglês e o norte-americano; sempre fomos uma imensa feitoria, fornecedora de matérias-primas e mão-de-obra barata para as potências capitalistas hegemônicas, além de oferecermos um mercado de dimensões continentais para as mercadorias e capitais excedentes das nações ricas, sem desenvolvermos um projeto autônomo de civilização.
A burguesia brasileira renunciou ao seu papel histórico de promover uma revolução democrática que criasse um estado laico com verdadeiras instituições republicanas, promovesse os direitos básicos de cidadania, eliminasse a fome, a miséria, o analfabetismo, o atraso cultural e permitisse o desenvolvimento em larga escala das forças produtivas. A elite industrial da Terra de Santa Cruz abdicou de qualquer vocação democrática ou progressista e preferiu manter a sua aliança com o latifúndio – rebatizado de “agronegócio” –, o capital financeiro internacional e a dominação imperialista para a exploração brutal da classe trabalhadora, em vez de investir na construção de um país moderno, democrático e soberano.
Podemos comprovar essa afirmação com facilidade, pelo simples exame dos fatos recentes da política brasileira após o golpe de estado de 2016, como o apoio do empresariado urbano, e em particular da Confederação Nacional da Indústria (CNI) e da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (Fiesp), à flexibilização do conceito de trabalho escravo no campo, implementada pelo governo ilegítimo de Michel Temer (MDB), e o posterior apoio dessas entidades patronais à eleição do neofascista Jair Bolsonaro, em 2018.
Outros exemplos poderiam ser apresentados em defesa de nossa tese, como o apoio empresarial à liquidação dos direitos trabalhistas e previdenciários, ao congelamento dos investimentos públicos em saúde e educação por 20 anos, aprovado no Congresso Nacional, à privatização de usinas hidroelétricas, serviços públicos e empresas estatais rentáveis, em benefício de investidores internacionais, sem falarmos dos leilões dos campos de pré-sal a preço vil e da venda de ações dos bancos públicos a grupos privados, numa operação de completa destruição do país, que supera as desgraças anteriores de nossa história recente, e em particular a ditadura militar implantada em 1964, que perdurou até 1985, e o período neoliberal seguinte, que atingiu o seu apogeu nos governos de Fernando I (Collor de Mello) a Fernando II (Henrique Cardoso).
A ausência de um projeto civilizacional autônomo, soberano e de longo prazo por parte da elite brasileira, que se contenta com o papel de capitão-do-mato do grande capital internacional, é a raiz de todo o nosso infortúnio. Para compreendermos a formação histórica e o caráter predatório dessa elite, um livro é fundamental: Casa-Grande & Senzala, do grande sociólogo pernambucano Gilberto Freyre, que comentaremos a seguir neste artigo.
Publicado pela primeira vez em 1933, Casa-Grande & Senzala apresenta um retrato da sociedade aristocrática, patriarcal, branca, cristã e escravocrata do período colonial brasileiro, entre os séculos 16 e 19. Neste livro notável, Gilberto Freyre faz uma descrição minuciosa da alimentação, vestuário, higiene, saúde, arquitetura, mobiliário, vida cotidiana, sexualidade, religiosidade, meio ambiente, comércio e outros aspectos da vida colonial brasileira, e em especial da miscigenação entre europeus, negros e índios, um dos temas centrais da obra, em um estilo de grande beleza literária; o que nos interessa no presente artigo, no entanto, é o estudo realizado pelo autor sobre a economia colonial e os hábitos e práticas da elite dirigente.
Já no prefácio de sua obra, o autor caracteriza a atividade econômica desenvolvida no Brasil na época das capitanias hereditárias de “monocultura latifundiária” que “exigia uma enorme massa de escravos” e que teve como consequências a concentração da terra “numa grande extensão em volta aos engenhos de cana”, onde não se praticava a policultura, nem a pecuária. “Na zona agrária desenvolveu-se, com a monocultura absorvente, uma sociedade semifeudal – uma minoria de brancos e brancarões dominando patriarcais, polígamos, do alto das casas grandes de pedra e cal, não só os escravos criados aos magotes nas senzalas como os lavradores de partido, os agregados, moradores de casas de taipa e de palha, vassalos das casas-grandes em todo o rigor da expressão”.
Freyre critica a monocultura latifundiária, concentrada nos engenhos de cana-de-açúcar, apontando os seus “males profundos, que têm comprometido, através de gerações, a robustez e a eficiência da população brasileira”, comprometendo a sua saúde, além de prejudicarem o solo. “Entre outros males, o mau suprimento de víveres frescos, obrigando grande parte da população ao regime de deficiência alimentar caracterizado pelo abuso do peixe seco e de farinha de mandioca (a que depois se juntou a carne de charque); ou então ao incompleto perigoso, de gêneros importados em condições péssimas de transporte, tais como as que precederam a navegação a vapor e o uso, recentíssimo, de câmaras frigoríficas nos vapores”.
Compreenda-se: na economia de monocultura açucareira voltada para a exportação à metrópole, não havia espaço para o cultivo de verduras, legumes, árvores frutíferas, nem a criação de gado doméstico para a alimentação de casa. Frutas e carnes eram importadas da Europa, em caravelas, e pela ausência de recursos de conservação artificial e tempo da viagem, os alimentos chegavam aqui muitas vezes estragados. Do mesmo modo, importava-se quase tudo da metrópole, desde vestuário, joias, peças de decoração e armas até ferramentas de trabalho.
Toda a atenção de nossos incipientes capitalistas estava concentrada no cultivo e exportação do açúcar e no lucro imediato oferecido por esse negócio, sem nenhuma preocupação com a criação de outras atividades econômicas, mesmo para a sobrevivência imediata. A alimentação inadequada, tanto dos senhores quanto dos escravos, resultava na “diminuição da estatura, do peso e do perímetro torácico; deformações esqueléticas; descalcificação dos dentes; insuficiências tiróidea, hipofisária e gonodial provocadoras de velhice prematura, fertilidade em geral pobre, apatia, não raro infecundidade”.
As empresas coloniais não estavam preocupadas com a construção de uma nação próspera, de economia diversificada, mas simplesmente com a exploração intensiva da terra, com o uso do trabalho escravo, para a obtenção de lucros rápidos nas exportações para a metrópole – lucros que seriam usados, posteriormente, para a importação de manufaturas dessa mesma metrópole, num círculo vicioso de dependência.
No centro desse sistema perverso estava a casa-grande, “completada pela senzala”, que representava “todo um sistema econômico, social, político: de produção (a monocultura latifundiária); de trabalho (a escravidão); de transporte (o carro de boi, o banguê, a rede, o cavalo); de religião (o catolicismo de família, com capelão subordinado ao pater famílias, culto dos mortos etc.); de vida sexual e de família (o patriarcalismo polígamo); de higiene do corpo e da casa”, escreve Freyre.
Senhores absolutos nesse sistema, os grandes proprietários rurais dispunham a seu bel-prazer da vida e integridade moral e física dos africanos e índios escravizados, de suas mulheres e filhos, todos tratados como se fossem animais ou coisas, destinados ao prazer e ao lucro de seus senhores. Dispunham até mesmo dos corpos de escravos ou familiares mortos, enterrados dentro da casa grande, numa suposta continuidade das relações de controle e posse, mesmo após a morte física.
Conforme escreve o autor pernambucano: “Conta-se que o Visconde de Suaçuna, na sua casa grande de Pombal, mandou enterrar no jardim mais de um negro supliciado por ordem de sua justiça patriarcal. Não é de admirar. Eram senhores, os das casas grandes, que mandavam matar os próprios filhos. Um desses patriarcas, Pedro Vieira, já avô, por descobrir que o filho mantinha relações com a mucama de sua predileção, mandou matá-lo pelo irmão mais velho”.
Freyre descreve ainda, em detalhes, as sevícias sofridas pelos meninos negros, tratados como animais de estimação, objetos sexuais ou alvos de humilhação e de tortura por parte das crianças brancas; o estupro das escravas pelos senhores de engenho, e posterior castigo das negras pelas esposas brancas, que as mandavam torturar das mais sádicas maneiras, desde a extração de todos os dentes das pobres diabas pelo capataz até a morte no tronco, sob a tortura ininterrupta do açoite.
O espaço deste artigo, com certeza, é insuficiente para analisarmos em profundidade todos os temas desenvolvidos por Freyre em sua obra-prima, mas o que expusemos até aqui acreditamos ser suficiente para despertamos o interesse do leitor disponível para a leitura integral desse grande livro. Claro: o autor pernambucano possui limitações: Casa Grande & Senzala peca pela ausência de informação sobre o trabalho escravo na lavoura (o autor concentra a sua atenção nos escravos domésticos que trabalhavam na Casa Grande), a miscigenação é apresentada de uma forma idealizada, a luta de classes nunca aparece (a resistência dos quilombos, por exemplo), como se não existisse, e os conceitos de raça utilizados por Freyre, comuns nas primeiras décadas do século 20, estão hoje completamente ultrapassados.
Apesar de todas as críticas que podem ser feitas ao livro – que data de 1933 –, é impossível resistirmos à sua prosa elegante e saborosa. Casa-Grande & Senzala é um dos livros basilares para compreendermos a nossa formação nacional, ao lado de outras obras clássicas, como O Povo Brasileiro, de Darcy Ribeiro, Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Hollanda, História Econômica do Brasil, de Caio Prado Jr., e Os Sertões, de Euclides da Cunha, que nos ajudam a compreender porque até hoje fomos incapazes de criarmos uma civilização.