Burguesia bastarda

 

Nelson W. Sodré (1911-1999), nosso historiador gigante, advertira há muito: a vasta servidão no campo brasileiro apresentava-se modernamente como um “espetáculo”: tinha raízes na colonização. A formação da burguesia forjou-se no longo desenvolvimento econômico-social, ampliou sua dominação e plasmou-se “entravando o processo ascensional do capitalismo em nosso país”. O general-historiador escrevera isso em 1964, em “História da burguesia brasileira”, onde a antiga contradição entre burguesia e latifúndio conviveria, em grande medida, com suas origens do “ventre do latifúndio”. [1]

Em 1932, a burguesia paulista financiou no estado a guerra civil contra os rumos da revolução de 1930, liderada por G. Vargas. A contrarrevolução opõe-se, inclusive, ao caráter industrializante do governo getulista! Na sequência, o golpe antigetulista em 1945, e a intensa campanha ultrarreacionária que levou Vargas ao suicidou, em 1954. Outro golpe, em 1964, derruba João Goulart, [2] com a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) novamente financiando e organizando a empreitada que levou a um regime militar fascista.

No indispensável livro “1932. A história invertida”, de F. Quartim de Moraes (Anita Garibaldi, 2018), o autor recorda que a diferença notável entre os três golpes e o de 1932 é a presença dos militares a favor de Vargas contra o levante paulista – somente aí. Lembra que a Folha de S. Paulo saudou em editorial a “revolução de 1964” como sendo o sepultamento do ciclo varguista; [3] e o “Estado de S. Paulo”, imediatamente histriônico trombeteou: “São Paulo repete 1932”.

Na sexta-feira, o jornal “Valor Econômico” (29/11/2019) descreve, na matéria “Afinidade de ideias aproxima empresas de governo Bolsonaro”: P. Skaf, presidente da FIESP – comprovado organizador “premium” da derrubada de D. Rousseff -, declara haver “apoio empresarial ao governo Bolsonaro”; que há “uma melhora da economia”. A. Secconato (Fecomercio-SP) diz que a “convergência de ideias cria agenda positiva…facilita muito a nossa” que “sempre foi liberal”. Para E. Gouvêa Vieira (Federação das Indústrias-RJ), esse governo “é o sonho dourado” para a liberdade empresarial, agora com o Estado “protegido da corrupção e do jeitinho”. [4]

Inacreditável cinismo! [5] Projeta-se no Brasil um PIB (Produto Interno Bruto) de menos de 1%, neste ano, e cerca de 2% em 2020. Quando Joseph Stiglitz, Nobel norte-americano de Economia e ex-vice-presidente do Banco Mundial acaba de repetir: “PIB é ilusão perversa” (“Alternatives Économiques”, 26-09-2019). Stiglitz alerta para as explosivas desigualdades sociais do capitalismo hoje.

Bastarda, golpista e corruptora, a grande burguesia brasileira [6] alegra-se em ser a mesma de sempre.

NOTAS

[1] Como bem explica João Quartim de Moraes, nas ideias-forças de Sodré a agricultura escravista produzia para o mercado europeu, vinculando o monopólio da terra à dominação estrangeira e aí se encontrando a determinação estrutural do atraso brasileiro. Ver: “O Programa Nacional-Democrático: fundamentos e permanência”, “História do marxismo no Brasil”, Unicamp, 2000, pp. 160-1.

[2] Bom sempre lembrar que o “Correio da Manhã”, o “Jornal do Brasil”, o “Última Hora”, “A Noite”, o “Correio Brasiliense” e o “Zero Hora” – opinaram, então, contra o veto dos ministros militares que pretendia impedir a ascensão de Goulart à presidência. Na outra ponta, “O Estado de S. Paulo” e “O Globo” se opuseram à posse constitucional com a renúncia de Jânio Quadros. O “Estadão” chegou mesmo a se manifestar a favor da convocação das Forças Armadas para impedir que "as forças subversivas" chegassem ao poder – relata Alzira Alves de Abreu, na análise do CEDOC/FGV. Aqui:

[3] Em J. Gorender, a interpretação esquemática e reducionista acerca da burguesia brasileira simplesmente omite a contrarrevolução de 1932, embora ele mesmo aponte que o “Centro das Indústrias do Estado de São Paulo” já data de 1928. É que para esse autor, “Getúlio Vargas e sua equipe ministerial não possuíam qualquer projeto de incentivo especial à industrialização”; evidentemente, porque 1930 foi “uma revolução que não houve” (em: “A burguesia brasileira”, J. Gorender, Brasiliense, 1990, pp. 63 e 62, respectivamente, 8ªedição). Estudos de Sodré, de Sonia Draibe, de Pedro Dutra da Fonseca, por exemplos, demonstram amplamente a falsidade dessas ideias de Gorender.

[4] E segue a procissão de bastardos: C. Abijaodi (diretor da Confederação Nacional da Indústria) diz quo governo “agora está disposto a fazer essas reformas estruturantes”, “vamos ganhar competitividade”. Segundo o presidente da “Associação brasileira da Indústria Têxtil e de Confecção”, F. Pimentel, “A relação melhorou à medida em que os interlocutores se conheceram”. Conforme o presidente-executivo da (conhecida) Abimaq J. Velloso, “A gente entende que esse governo não é daqule que tínhamos no passado que atendiam pleitos individuais, de empresas ou de setores. Um governo liberal olha para um todo” (“Valor Econômico”, idem).

[5] Igualmente inacreditável é a atualidade de “Capitalismo tardio e sociabilidade moderna”, de J. M. Cardoso de Mello e F. Novais, um libelo, escrito em 1998 e nos escombros da assunção do que denomino 1ª ciclo do neoliberalismo no Brasil:

“O cosmopolitismo das elites globalizadas, isto é, seu americanismo, chega ao paroxismo, transmitindo-se à nova classe média, que alimenta a expectativa de combinar o consumo ‘superior’ e os serviçais que barateiam seu custo de vida. O colapso efetivo dos serviços públicos aparece à consciência social como resultado à improbidade e do desperdício, e não da pilhagem doestado pelos grandes interesses” (Unesp/FACAMP, 2009, p. 101, 2ª edição).



[6] A adesão dessa fração de classe, espécie de amálgama escravocrata, ao bolsonarismo entreguista e ultrarreacionário assegura o abandono definitivo qualquer projeto de nação democrático e a serviço do povo brasileiro.
 
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