Olival Freire “Temos que nos insurgir em defesa do CNPq”
O professor Olival Freire, pró-reitor de Pesquisa, Criação e Inovação da Universidade Federal da Bahia (UFBA), convocou os estudantes e a comunidade científica a cerrarem fileiras em defesa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Cientifico e Tecnológico (CNPq), ameaçado de extinção pelo governo obscurantista de Jair Bolsonaro.
Por Avesnaldo Santos
Publicado 29/08/2019 20:45
“É nesse quadro, portanto, de desmonte financeiro, institucional, e o desmonte quanto aos valores maiores que são o desenvolvimento científico e tecnológico. É esse desmonte que nós temos que nos insurgir quanto a isso”, disse o professor. “Nós temos que nos insurgir”, reiterou o cientista.
“Essa possibilidade de extinção, que vem sendo aventada, é admitida mesmo por dirigentes do CNPq. O órgão tem um simbolismo para a comunidade científica brasileira que é sem limites. Daí a importância de cerrarmos fileiras na defesa do orçamento das universidades, na defesa do CNPq, na defesa da autonomia política das universidades, na defesa da Finep (Financiadora de Estudos e Projetos). Nesse conjunto, a defesa do CNPQ é uma batalha que nós temos que dizer: ‘daqui não passarão’”.
Confirmando a advertência do professor Olival Freire, o ministro da Ciência e Tecnologia, Marcos Pontes, informou na terça-feira (27 de agosto) que a pasta só tem recursos para pagar bolsas do CNPq até o próximo sábado (31). Em entrevista ao programa Em Foco, da GloboNews, o ministro acrescentou que “se não houver orçamento, não terá como repassar os pagamentos”. Ver “Recursos para pagamento de bolsas do CNPq acabam no próximo sábado, dia 31”.
Olival Freire é um renomado cientista brasileiro, professor de física e historiador de física brasileiro. Em 2004 recebeu uma bolsa sênior do Instituto Dibner de História da Ciência e Tecnologia, MIT, EUA. Em 2011, foi um dos vencedores do Prêmio Jabuti em ciências exatas pelo seu livro A Teoria Quântica: estudos históricos e implicações culturais. É autor de 77 artigos em periódicos especializados, 3 livros, 5 coletâneas e 50 capítulos de livros.
“Fui treinado em física”, descreve, “sou professor do Instituto de Física da Universidade Federal da Bahia e toda a minha formação de pesquisa posterior à graduação foi na área de humanidades. Eu optei por trabalhar em história e filosofia da ciência. Fiz o doutorado em História na USP e toda minha experiência como pesquisador é eminentemente na área de história e filosofia da ciência”.
É versado na história da ciência que o cientista nos conta a importância e o desenvolvimento das agências de fomento à pesquisa e apoio à ciência no Brasil, hoje maltratadas pelo governo Bolsonaro, assim como o meio ambiente, a cultura e a educação.
“A formação de instituições científicas e tecnológicas do Brasil no século 20 foi marcada por certos pontos cruciais. Fala-se muito em 1934, que foi a criação da USP. Fala-se muito no início do século, quando foi criado o instituto Oswaldo Cruz. Mas certamente o momento crucial do desenvolvimento dessas instituições no Brasil ocorreu no início da década de 50, no segundo governo [Getúlio] Vargas. Por quê? Nesta época foram criadas a Petrobrás, o BNDES e foram criados a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior) e o CNPq. Foram criados o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o Instituto de Física Teórica em São Paulo, o Centro Brasileiro de Pesquisa Física do Rio de Janeiro e foi criado e fortalecido o Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), iniciativa do brigadeiro Montenegro [Casimiro Montenegro Filho]”.
“Se olhamos para estas instituições, elas formam a espinha dorsal das instituições que sustentam ainda hoje a ciência e tecnologia do Brasil”, enfatizou Olival Freire. “Depois dessas tivemos algumas poucas instituições que foram criadas e que são importantes. Tivemos a consolidação da FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo), criada nos anos 50, mas efetivamente implementada na década de 60”.
“Tivemos a criação da Unicamp, que é uma grande universidade. A criação da UnB. Tivemos na década de 70 a unificação dos institutos de pesquisas da área agronômica na criação da Embrapa. Mas se olhamos no conjunto do século 20, aquele período do segundo governo Vargas foi crucial na formação dessas instituições que alavancaram o desenvolvimento da ciência e tecnologia do Brasil”, assinalou o cientista.
“Eu estou dizendo tudo para alertar que há, nesse cerco que estamos sofrendo no Brasil, uma tentativa de desmonte dessas instituições, tanto as do campo educacional, como as universidades, como das agências de fomento”, denunciou. Para o pró-reitor de pesquisa da UFBA, o CNPq “é mais do que um orçamento importante”. “Até porque o orçamento dele já vinha sendo enfraquecido nos últimos anos, mesmo no governo Dilma e mais ainda no governo Temer”, comentou.
Olival Freire destaca que o CNPq “tem um simbolismo muito grande. O CNPq é para o pesquisador brasileiro… vou dar um exemplo: quando o CNPq lançou o e-mail, em que se colocava o seu nome ‘pesquisador do CNPQ’, muitos de nós passamos a usar esse e-mail e não mais o e-mail das universidades. Porque ficávamos orgulhosos de se relacionar com colegas do exterior mostrando que estávamos associados ao CNPq. Então, até no simbolismo… Hoje esse e-mail está praticamente desativado porque o CNPq não tem recursos financeiros para manter essa plataforma de e-mails”, lamenta o professor e historiador de física.
O professor Olival Freire expõe o que ele classifica como “cruzada contra a educação” por parte desse governo. Para ele, o governo Bolsonaro representa um retrocesso sem precedentes. Um obscurantismo dos mais antigos. “O resultado das eleições de 2018 foi um resultado no qual não só a esquerda foi derrotada. O centro, a esquerda tradicional, o MDB, PSDB, DEM, todos eles também foram derrotados”, comentou. “E ascendeu”, aponta Olival Freire, “uma força de extrema-direita, liderada pelo presidente Bolsonaro, uma força que é um conglomerado de interesses. Esse conglomerado de interesses tem uma vertente neoliberal que quer privatizar todas estatais, praticamente liquidar com o serviço público e coisas desse tipo”.
E tem outras vertentes, chama a atenção o cientista. “Uma das vertentes é que essa corrente é obscurantista. É uma corrente que no limite quer um retrocesso às sociedades do período anterior ao Iluminismo. Não é à toa que alguns desses elementos não só são contra avanços científicos recentes, contra as vacinas, a situação do aquecimento global. Alguns deles chegam a flertar com coisas, como pôr em questão a teoria do Darwin e mesmo pôr em questão a esfericidade da terra. A questão da esfericidade da terra, é preciso lembrar, a civilização identificou que a terra é esférica lá em 2.400 anos atrás. Ou seja, no tempo do século 4 antes de Cristo”.
“Então estamos vivendo hoje literalmente um período de retrocesso. Essa corrente que está no governo tem a característica de promover um retrocesso civilizatório. A batalha que a gente trava no Brasil hoje não é só uma batalha pela democracia, pela soberania nacional. É também uma batalha em defesa da Civilização. Nós só temos paralelo nessa situação com o exemplo do nazismo na Alemanha nas décadas de 30, 40”.
A seguir, mais alguns trechos da entrevista com o cientista Olival Freire. Esta parte foi gravada em conjunto, a pedido do professor, com a equipe de TV da Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG).
“Estamos vivendo atualmente, no marco do governo Bolsonaro, uma verdadeira operação de desmonte do parque de ciência e tecnologia que a nação brasileira foi capaz de forjar ao longo das últimas décadas”.
“Tivemos um ataque ao orçamento das universidades. Esse orçamento das universidades federais e dos institutos federais está com 30% de bloqueio, de modo que estas instituições não poderão continuar existindo tal qual existem hoje com esse patamar de corte. Estamos presenciando vários cortes no âmbito da Capes, no âmbito do CNPq, e mais recentemente, para nossa consternação, a própria possibilidade de extinção do CNPq tem sido cogitada, inclusive, por dirigentes do governo”.
“O CNPq, mais do que pelo peso do seu orçamento, é um símbolo do esforço da nação brasileira de constituir um projeto de nação independente, com desenvolvimento científico e tecnológico. O CNPq foi criado no segundo governo Vargas. Foi uma iniciativa dos cientistas e militares nacionalistas brasileiros. Seu primeiro presidente foi o almirante Álvaro Alberto, químico, de profundas convicções nacionalistas”.
“E mais importante do que isso: o CNPq tem um verdadeiro papel simbólico. Os cientistas brasileiros valorizam imensamente a relação com o CNPq, porque sempre foi uma espécie de símbolo de qualidade. É como se fosse o selo de qualidade. O que você faz financiado pelo CNPq é sinal de boa qualidade. É essa instituição hoje que está ameaçada de extinção”.
“Ao lado desses bloqueios orçamentários em cima das diversas agências – Capes, Finep, CNPq –, estamos também presenciando uma verdadeira cruzada obscurantista contra as universidades brasileiras. Essa cruzada se expressa muitas vezes em pelo menosprezo às ciências humanas e ciências sociais, na contramão do que acontece no mundo. Porque o mundo hoje, mesmo o mais avançado desenvolvimento científico e tecnológico, precisa do apoio, do concurso das ciências sociais e humanas para melhor pensar a forma desse desenvolvimento científico e tecnológico ser incorporado na sociedade”.
“É contra esse desmonte que temos que nos insurgir. Temos que nos insurgir. Temos presenciado as manifestações de rua, manifestações da sociedade científica, temos tido a solidariedade de colegas cientistas do mundo inteiro. É uma grande batalha que devemos e precisamos travar para o futuro da nação brasileira. Não é possível imaginar que tenhamos uma nação independente, uma nação soberana, uma nação com a redução das desigualdades sociais, sem, em paralelo, termos um desenvolvimento científico”.
“Eu quero me dirigir especialmente àqueles que estão fazendo pós-graduação, alunos de mestrado e alunos de doutorado. Aqueles que certamente vivem as maiores incertezas que estão frequentes hoje em todo o campo científico e tecnológico brasileiro. Eu digo para vocês, jovens cientistas em formação: a história do Brasil nos ensina que, para ser cientista no Brasil, é preciso, ao mesmo tempo em que se tem a melhor competência técnica, desenvolver a consciência e ter uma atitude de luta em defesa da ciência, da educação, da democracia”.
“Se você olhar para a nossa história, nossos grandes cientistas – Carlos Chagas, César Lates, Paulo Freire – todos eles, estiveram engajados, em uma ou outra medida, em lutas políticas em defesa da nossa ciência, da nossa tecnologia, da nossa universidade. Perseverem na sua formação técnica e científica; perseverem na atitude política que vocês têm tido nos últimos meses: a participação ativa nas manifestações contra o desmonte das universidades”.
“Digo em particular que se associem, filiem-se e reforcem essa associação que é extremamente importante para o futuro da ciência do Brasil, que é a Associação Nacional de Pós-Graduandos (ANPG)”.