Luiz Gonzaga Belluzzo: Sergio Moro, Albert Camus e os ratos
Rebolando na frigideira do The Intercept, o ex-juiz Sergio Moro ameaçou os brasileiros com um “pouco de cultura”. Recorreu ao poeta romano Horácio: Parturiunt montes, nascetur ridiculus mus (A montanha pariu um rato). É modéstia afirmar que a montanha pariu “um” rato. Pariu uma ninhada. Disse e digo: as montanhas brasileiras têm se esmerado em parir ratazanas de vários tamanhos e de variegada pelugem.
Por Luiz Gonzaga Belluzzo*
Publicado 03/07/2019 18:28

Veja, caro leitor, camundongos miúdos movimentam os bigodes e emitem guinchos nos esgotos das redes sociais. Incentivados por ratazanas graúdas e poderosas, transmitem a peste da intolerância, como os ratos de Albert Camus transmitiam a peste bubônica na cidade argelina de Orã. O ministro Moro foi carregado na voragem das pestilências dos intolerantes. Perdeu a noção da função jurisdicional, assim como o personagem Doutor Rieux descurou do devastador avanço da peste.
Mas não posso fazer nada – respondeu Richard.
Essas providências são com a prefeitura. Além disso, quem lhe diz que há risco de contágio?
Ninguém, mas os sintomas são inquietantes.
A imprensa, tão indiscreta no caso dos ratos, não mencionava nada. É que os ratos morrem na rua e os homens, em casa. E os jornais só se ocupam da rua. Mas a prefeitura e a Câmara começavam a questionar-se. Enquanto cada médico não tinha tido conhecimento de mais de dois ou três casos, ninguém pensara em se mexer. Mas, em resumo, bastou que alguém pensasse em fazer a soma e a soma era alarmante. Em apenas alguns dias, os casos mortais multiplicaram-se e tornou-se evidente, para aqueles que se preocupavam com a curiosa moléstia, que se tratava de uma verdadeira epidemia. Foi esse o momento que Castel, colega de Rieux, muito mais velho que ele, escolheu para ir visitá-lo.
Naturalmente – perguntou – sabe do que se trata, Rieux?
Estou esperando o resultado das análises.
Pois eu sei. E não preciso de análises. Fiz uma parte da minha carreira na China e vi alguns casos em Paris, há uns vinte anos. Simplesmente não se teve coragem de lhe dar um nome.
A opinião pública é sagrada: nada de pânico. Sobretudo, nada de pânico. E depois, como dizia um colega: ‘É impossível, todo mundo sabe que ela desapareceu do Ocidente’. Sim, todos sabiam, exceto os mortos. Vamos, Rieux, você sabe tão bem quanto eu o que é.”
O caro leitor de CartaCapital sabe ainda melhor do que eu: a onda de truculências que atravessa o País como a peste de Orã pretende neutralizar o conflito de opiniões e extraditar as lutas sociais, políticas e econômicas, constitutivas da sociedade capitalista em qualquer de suas etapas, para além do território vigiado e protegido precariamente pela lei.
Desterrar o conflito social para fora da esfera pública e colocá-lo à margem da ordem jurídica certamente fará irromper na sociedade de massa pobre e empobrecida a verdadeira face da política: a oposição amigo/inimigo, uma oposição real irredutível, que não pode ser “superada”, mas apenas pacificada provisoriamente pelo veredicto da soberania popular, fonte do poder constitucional.
No ambiente de quase unanimidade midiática, a indignação sobe das entranhas para o peito, quase na garganta, uma espécie de regurgitamento moral sufocante que culmina na morte da inteligência. O depoimento de Glenn Greenwald no Congresso demonstrou cabalmente que é importante criminalizar a divulgação dos diálogos entre o juiz e os procuradores e esquecer o fato e as suas circunstâncias, sua história e suas raízes. A precária situação material e moral das massas facilita a penetração da cultura de negação. Suscita uma espécie de individualismo dos desesperados, o que acentua a incapacidade de descobrir os fatores da desgraça comum.
O mito primário da luta do Bem contra o Mal impede o cidadão de desvendar as forças impessoais, que, como a peste, levam à morte a autonomia dos indivíduos, ao colapso de sua capacidade de avaliar e julgar. O chamado público não consegue perceber as diferenças, tantas são as semelhanças, e isto transforma a política numa guerra de efeitos especiais. A indiferenciação das posições e das atitudes abre caminho para o avanço de projetos e ideias reacionárias, porque “todos são farinha do mesmo saco”.
* Luiz Gonzaga Belluzzo é economista e professor universitário