O estado do império e o resto do mundo
O presidente dos Estados Unidos, a potência imperialista cuja hegemonia é cada vez mais contestada, fez seu último discurso sobre o “Estado da União” nesta terça-feira (12). Ainda assim, Barack Obama tocou nas suas prioridades e propostas para o futuro, evitando o tom de despedida e apresentando uma política externa bastante diferente daquela na realidade.
Publicado 13/01/2016 11:37
Obama chorou, na semana passada, quando explicou as medidas para o controle de porte de armas nos EUA. “O lobby das armas pode estar fazendo o Congresso de refém, mas não pode fazer a América de refém. Não podemos aceitar essa carnificina nas nossas comunidades,” disse. Em seu discurso nesta terça, ele voltou a lamentar as mortes de tantos estadunidenses devido à violência armada. A Constituição permite o porte de armas por civis – são cerca de 300 milhões no país, onde em 2015, 372 tiroteios e 13.286 mortes por armas de fogo ocorreram.
Mas os Estados Unidos modernizam seu arsenal de armas nucleares a passos acelerados, e Obama pode gabar-se do recorde no emprego de veículos aéreos não tripulados (drones) para ataques que mataram milhares de civis no Oriente Médio nos últimos anos. Mesmo assim, indagou: “como podemos manter a América e o mundo a salvo sem nos tornarmos a sua polícia?” Em dois mandatos de discursos anuais como este, Obama buscou, vezes mais, vezes menos, ponderar a política externa estadunidense, mas a prática é sempre extremamente distante do discurso.
Obama foi valente domesticamente: defendeu uma espécie de reforma política que torne as eleições menos dependentes do poder financeiro e inclua os cidadãos na participação popular. “Não é suficiente mudar um congressista, ou o presidente, é preciso mudar o sistema”, afirmou. Ele ainda criticou os exorbitantes lucros das grandes corporações e aqueles que mantêm contas offshore; defendeu a inclusão dos imigrantes e a melhoria na condição dos trabalhadores, cujos direitos não são, afirmou, o que atravanca a recuperação. “As famílias trabalhadoras não terão mais oportunidades ou maiores salários deixando os grandes bancos ou fundos especulativos ditarem suas próprias regras às custas de todo mundo.” Um discurso ousado e desafiador para aqueles padrões.
Os EUA buscam convencer o mundo de que superaram a crise e Obama enfatizou a criação de novos empregos. Para ele, a economia não está em declínio, mas enfrenta “mudanças”. Mesmo assim, enquanto o restante do mundo é acossado pelas instituições financeiras, o “mercado” e seus porta-vozes na mídia e na esfera política a garantir superávits, em 2015 os EUA atravessaram outra crise sobre o teto da dívida, o que colocou em risco a aprovação do orçamento federal – já se esgotando em outubro – e ameaçou com a paralisia do governo, de novo. Até então, o limite, um mecanismo criado em 1917 para evitar que o Congresso tenha que votar sempre que o governo precise pedir um empréstimo, era de US$ 18,1 trilhões (R$ 73 trilhões em valores correntes). Mas desde 1960, o Congresso votou pelo aumento, reformulação ou suspensão do teto da dívida ao menos 78 vezes, de acordo com o Departamento do Tesouro estadunidense e, sob a presidência de Obama, o Partido Republicano usou a oportunidade para pressionar por mais cortes fiscais.
Mas transitando da mudança climática para a superação do modelo dependente do petróleo e outros combustíveis fósseis, Obama disse que os Estados Unidos precisam “mostrar ao resto do mundo que existem outras fontes,” as limpas e renováveis, ainda que países como o Brasil já sejam recordistas no seu uso. Porém, enquanto o complexo industrial-militar segue firme unindo a guerra e a indústria petrolífera desde o início do século 20 até este brilhante século 21, chacinando populações inteiras pelo caminho para promover os interesses imperialistas no saqueio dos seus recursos energéticos, o leitor entenderá se metade dos que ouviram o discurso de Obama em todo o mundo não compartilharem de tanto otimismo, ou cinismo.
Como não podia deixar de ser, Obama engatou na afirmativa, ou melhor, na ênfase: os EUA são “a maior nação do mundo”, a “nação mais poderosa do planeta, ponto final” – repetindo três vezes que o restante “não está sequer próximo”. As câmeras focaram nos militares presentes e na audiência levantada para o aplauso, voltando ao presidente, que falava do gasto militar estadunidense – o maior do mundo e superior aos oito seguintes combinados, lembrou ele – e das suas “melhores tropas” espalhadas pelo globo, sem tocar nas incontáveis bases militares, comandos da Marinha e do Exército e outras estruturas que ameaçam as diversas regiões do planeta, inclusive espalhando suas armas nucleares em países aliados, como a Alemanha ou a Turquia.
A justificativa, claro, é a instabilidade do sistema internacional, uma instabilidade enraizada na militarização promovida pelos EUA e seus aliados. “Cabe a nós, os Estados Unidos da América, ajudar a reconstruir esse sistema”, disparou Obama. Prioridade número um: “proteger os cidadãos estadunidenses e perseguir as redes terroristas”. Mas a política externa não pode parar aí. Mesmo sem essas redes, continuou o presidente, a “instabilidade persistirá em muitas partes do planeta”, e “o mundo olhará para nós para responder a esses problemas.” Falar do “destino manifesto” dos EUA em tom messiânico já é uma anedota e um lugar-comum enfadonho, que alguém avise os assessores de Obama.
Condenando o “derramamento de sangue” dos soldados estadunidenses no exterior, Obama disse: “Deveríamos ter aprendido as lições do Vietnã e do Iraque”. Mas há outra abordagem inteligente, continuou. Obama mencionou a Síria, onde disse “trabalhar com as forças locais”, leia-se, os grupos armados contra o presidente Bashar Al-Assad que as potências ocidentais decidiram classificar de “moderados” para justificar sua parceria no empenho para derrubar um governo eleito e destroçar um país entretanto. Lembremos que sua empreitada intervencionista foi frustrada principalmente pela Rússia e pela falta de apoio interno ainda no início dessa história, mas a decisão pelos bombardeios a supostos “alvos terroristas”, maquiada por uma coalizão de Estados árabes igualmente responsáveis, em diferentes graus, pelo caos na Síria, foi parte da nova estratégia.
Obama transforma as reviravoltas, suas derrotas políticas e suas respostas atrasadas a reais desafios da humanidade de modo a apresentá-las como uma estratégia calculada. Nesta sua narrativa, a Rússia é que suplica aos EUA por uma parceria a nível internacional – quando na verdade os EUA viram seu projeto intervencionista frustrado pela Rússia e se renderam à diplomacia; os EUA salvam vidas na África através do combate ao Ebola e à fome – quando, na verdade, Cuba foi quem mais colaborou com o envio de médicos mais prontamente, no esforço contra o Ebola, e diversos países, como o Brasil, priorizam, sem intervenções militares, o combate à fome e à pobreza como respostas aos conflitos armados; os EUA colocam a China contra a parede na Ásia – quando a China segue sendo a potência regional e internacional em mais vertiginosa acensão; os EUA trabalham com “os moderados” na Síria para combater o terrorismo, “liderando o mundo” e juntando forças na luta “por causas nobres” – quando, unilateralmente, com aliados regionais ou através da sua máquina de guerra, a OTAN, promovem intervenções militares, acosso, mudanças de regime e o financiamento de uma miríade de grupos armados, inclusive aqueles reconhecidos hoje como “terroristas”. E a distorção prossegue, como no caso do acordo nuclear com o Irã, e não podia ser mais cínica.
Sobre a prisão e centro de torturas que os EUA instalaram ilegalmente na base naval mantida contra a vontade do povo cubano em Guantánamo, Obama defende seu encerramento porque a estrutura é “cara, desnecessária e serve de brochura de recrutamento para os nossos inimigos”. A violação do direito internacional e dos direitos humanos mais básicos das centenas de seres humanos que passaram por ali não entram em discussão, afinal, tudo é legítimo na “guerra ao terror” do império, desde as invasões militares até a matança de civis ou o seu encarceramento ilegal.
“Continuo confiante de que o Estado da nossa União é forte!”, terminou Obama. Se este é o discurso para convencer o mundo de que os EUA não sofrem a “decadência relativa”, os que contestamos com cada vez mais empenho a hegemonia estadunidense e denunciamos a agenda imperialista ainda temos muito trabalho pela frente.