Grande crise e banditismo neoliberal
“A verdade é que é espantoso perceber quão pouco a crise abalou as ideias dominantes” (Martin Wolf, “No Reino Unido, beber mais para curar a ressaca pode agravá-la”, in: Folha de S. Paulo, 18/2/2014). [1]
Publicado 21/02/2014 09:40
No rastro da grande crise capitalista atual são cada vez mais insofismáveis as revelações do apodrecimento do sistema financeiro internacional, comandado ideologicamente pelos patronos de “novo liberalismo” e com seus vínculos notórios a criminosos e crimes de toda a espécie. Tudo de braços dados com a formação do “shadow banking system”. Não se trata, sequer por milímetros, de interpretação “moralista”, pois se sabe muito bem: o capitalismo funciona assim mesmo.
Por exemplo: Paul Krugman, ponta do establishment econômico do partido democrata americano, foi dos primeiros a denunciar as vigarices do sistema bancário sombra. Conforme se apresentara “preocupado”, disse que esse sistema (de empresas “não bancos” ou bancos sem supervisão do banco central) se agigantou durante a fase expansiva da economia “financeirizada”. Afirmou ele ainda: os cinco grandes bancos de investimento dos EUA somavam balanços patrimoniais da ordem de US$ 4 trilhões; enquanto os ativos totais do sistema bancário do país em torno de US$ 10 trilhões. Krugman acusa os “instrumentos financeiros exóticos” (derivativos, instrumentos altamente especulativos etc.) compondo esse sistema bancário sombra (“A crise de 2008 e a economia da depressão”, Campus, 2008).
Registramos en passant esses dois assuntos [2] sistematizando, entre outras coisas, as seguintes conexões:
1) o caso recente do banco britânico Barclays – a taxa interbancária Libor ficou no centro de um grande escândalo no Reino Unido, após a descoberta de que foi manipulada pelo banco entre 2005 e 2009 -, em que se provou o envolvimento de operadores dos bancos franceses Société Générale e Crédit Agricole, do alemão Deutsche Bank e do britânico HSBC, segundo reportou o site do “Financial Times” (18/7/2012);
2) em 17 de Julho de 2012, David Bagley, diretor mundial do banco HSBC para regulamentação pediu demissão em sessão no Senado dos EUA, convocado para ser acusado, após investigação, de permitir operações de lavagem de dinheiro do narcotráfico (cartéis do México), bem como de dinheiro proveniente de financiadores de “grupos terroristas” (Arábia Saudita). A alta direção do banco sabia de tudo.
3) O HSBC Brasil é citado em conversas de 2006 e 2007 entre David Bagley, chefe de regulamentação do HSBC global, e Alexander Flockhart, então diretor-executivo para América Latina, sobre como evitar o filtro do Ofac, a agência do governo americano para ativos estrangeiros;
4) segundo site da revista Carta Capital (22/7/2012), o documento The Price of Offshore Revisited, escrito por James Henry, ex-economista-chefe da consultoria McKinsey, e encomendado pela Tax Justice Network, cruzou dados do Banco de Compensações Internacionais, do Fundo Monetário Internacional, do Banco Mundial e de governos nacionais. Resultado: os valores depositados nas chamadas contas offshore – as autoridades tributárias dos países não têm como cobrar impostos -, dos super-ricos brasileiros somaram até 2010 cerca de US$ 520 bilhões (ou mais de R$ 1 trilhão) em paraísos fiscais; ou a quarta maior quantia do mundo depositada neste tipo de conta bancária.
Crise sistêmica e banqueiros criminosos
Conforme denuncia feita em artigo recente [3] pelo economista russo Valentin Katasanov, para lavar fortunas – quando se trata de dinheiro vertido em grandes somas e transações regulares -, a máfia internacional da droga “negocia diretamente com banqueiros para a cooperação em longo prazo”. Sendo que, no curso da última crise financeira deu-se uma situação provavelmente nunca ocorrida: “os próprios bancos começaram a procurar contatos com a máfia da droga e a lutar para absorver dinheiro ‘sujo’ como meio de salvarem-se da bancarrota”.
O artigo de Katasanov, fundeado em dados de órgão oficiais, relata, por exemplo, que de acordo com a Convenção de Viena, da ONU (1988), considerou-se crime a lavagem de dinheiro recebido do comércio ilegal de droga; mas a expansão global do crime organizado ampliou o rendimento para outras organizações criminosas (crimes de tráfico humano, prostituição, tráfico de órgãos humanos, comércio ilegal de armas, extorsão, controle de substâncias radioativas etc.). Parcela deste rendimento – continua Katasanov – “também começou a ser lavado e investido na economia legal”.
Enfim, como descreve o economista russo, conforme o relatório do Gabinete das Nações Unidas sobre Drogas e Crimes (United Nations Office on Drugs and Crime, UNODC), em 2009 somente as vendas a retalho de cocaína somaram US$85 bilhões; e os lucros brutos dos negociantes (varejo e retalho) US$ 84 bilhões (vendas/lucros). O grosso dos lucros brutos recebeu a América do Norte: US$ 35 bilhões; enquanto Europa Ocidental e Central US$ 26 bilhões. Oriunda da América do Sul e Caribe, a produção gerou lucros brutos de cerca de 4% (ou US$ 3,5 bilhões) do total do comércio mundial da droga.
Bandidagens desde “criancinha”
Ora, o inacreditável relato do banqueiro norte-americano Charles Morris desvela por inteiro a natureza mercenária que marcam a gênese do capitalismo e os negócios na “América”. Descreve Morris, a exemplo, que homens astutos e experimentados de Wall Street tinham visto Jay Gould – barão da ferrovia, “inescrupuloso manipulador da Bolsa de Valores”, diz ele – ser enterrado em segurança com uma estaca sangrenta cravada em seu coração em 1872. Surpreendentemente, apenas dois anos depois ele andava outra vez sobre a terra, quando assumiu repentinamente o controle da Union Pacific, uma das maiores ferrovias americanas. [4]
A propósito de ferrovias e banqueiros, vale a pena sempre recordar a descrição, em termos estritamente econômicos, do famoso economista liberal John Hobson envolvendo naquela altura o banqueiro J.P. Morgan:
“Foi assim quem construtores de trustes, como os srs. Rockfeller, Rogers, Havenemeyer e dirigentes de estradas de ferro como Harriman, Gould, Drew, ou Vanderbilt se tornaram banqueiros ou diretores de companhias de seguros, enquanto banqueiros como J. P. Morgan organizava combinações na indústria de aço e navegação e participavam em diversas diretorias de companhias ferroviárias e industriais” (Hobson, “A evolução do capitalismo moderno”, 1894, cap. O financiador, São Paulo, Abril Cultural, 1983 (atualizada da ed. 1926).
Os novos “robber barons” (barões ladrões)
Essa famosa expressão estadunidense nada tem de preconceituosa ou muito menos se origina no indispensável esquerdismo anticapitalista. Foram os fazendeiros do Kansas que, em 1808, pela primeira vez a assacaram contra os “reis” dos monopólios das ferrovias, do ferro e da carne de porco dos EUA. Generalizou-se o ataque país afora!
Assim, certamente não é à toa o ar de espanto do neoliberal Martin Wolf – histriônico propagandista da “revolução financeira” globalizada -, exarado na epígrafe deste texto. Sua declaração maquiada de boas intenções – ou hipócrita – poderia ser cotejada com os escandalosos lucros dos principais bancos americanos, também recentemente anunciados. Aí se desvela o desiderato do economista britânico.
Com efeito, segundo o “The Wall Street Journal” (“Grandes bancos dos EUA deixam crise para trás”, D. fitzpatrick e M. Rapoport, 20/01/2014), os grandes bancos dos EUA estariam finalmente emergindo dos escombros da crise financeira, amparados por lucros crescentes, uma economia em recuperação e drásticos cortes de custos.
Juntos, os seis bancos (J.P. Morgan Chase JPM & Co., Bank of America Corp., Citigroup Inc., Wells Fargo & Co., Goldman Sachs Group Inc. e Morgan Stanley) somaram lucro total de US$ 76 bilhões em 2013, US$ 6 bilhões a menos que em 2006, ano que prenuncia a violenta crise das hipotecas subprime (agosto de 2007).
De acordo ainda com o jornal, os bancos “devem bater todos os recordes” de lucro em 2014, diz Gerard Cassidy, analista da RBC Capital Markets. Tais resultados estão sendo acompanhados por uma alta acentuada nas ações dos bancos; o Índice de Bancos KBW subiu 35% em 2013, superando o índice S&P 500 pelo segundo ano consecutivo; em janeiro as cotações das ações tanto do J.P. Morgan quanto do Wells Fargo teriam atingido picos não registrados desde 2005 – informam os articulistas do WSJ.
Nesse andamento, importa aqui notar que, conforme o citado economista russo (“O mundo sob a vigilância do governo estadunidense e dos bancos”, de V.Katasanov) [5], a criação duma base de informação consolidada, enorme e pormenorizada, pelo Departamento do Tesouro dos EUA está prestes a ser finalizada. Esta base utilizará a informação de bancos, companhias de seguros, fundos de pensões e outras organizações financeiras dos EUA. No começo de 2003 a grande mídia informou: especialmente os serviços especiais dos EUA, incluindo a CIA, o FBI e a NSA (National Security Agency) teriam acesso a esta base de dados para proteger a segurança e os seus interesses nacionais.
Pois bem. 1) L. Belluzzo (“Depois da bolha, a bolha”, Valor Econômico, 04/02/2014) destaca que o “Global Economic Prospects” (Banco Mundial, janeiro de 2014) relata que “ao longo dos últimos 5 anos a participação dos países em desenvolvimento nos mercados de títulos de dívida (excluídos os Brady bonds) cresceu de estáveis 7% para 10% no primeiro semestre de 2013, o nível mais elevado nas últimas duas décadas”. A mudança de carteiras favoreceu as bolsas, o mercado de imóveis nos Estados Unidos e as moedas dos emergentes. “Depois da bolha, a bolha” – escreve Belluzzo.
2) Para Winnie Byanyima, diretor da (obesa) ONG britânica OXFAM, o aumento da desigualdade está criando “um círculo vicioso” onde riqueza e poder estão cada vez mais concentrados nas mãos de poucos, “deixando o resto de nós lutando por migalhas que caem da mesa”. Byanyma acabara de divulgar números assustadores da desigualdade capitalista captados em pesquisa, depois da grande crise: 85 pessoas concentram riqueza correspondente a de 3,5 bilhões de pessoas, ou cerca de metade do planeta! E que 1% da população mundial detém quase metade da riqueza mundial: US$ 110 trilhões (O Globo, 20/01/2014).
NOTAS
[1] M. Wolf é comentarista chefe de economia do “Financial Times”, o que dispensa qualquer apresentação.
[2] Ver: “A Nova Depressão – e o apodrecimento do sistema financeiro internacional”, A. S. Barroso, in:
www.grabois.org.br/portal (25.07.2012).
[3] Ver: “O comércio internacional de droga e a lavagem de dinheiro”, V. Katasonov, economista, presidente da S.F. Sharapov Russian Economic Society. Original em: “The International Drug Trade and Money Laundering”, in: Strategic Culture Foundation, ONLINE JOURNAL, 31/01/2014.
[4] Em: “Os magnatas. Como Andrew Carnigie, John D. Rockefeller, Jay Gould e J. P. Morgan inventaram a supereconomia americana”, de C. R. Morris, Porto Alegre, LP&M, 2006, p.143, 2ª edição.
[5] O artigo original em www.strategic-culture.org/…
E traduzido em resistir. info/ (16/07/2-13).