Um deus inca em São Paulo

O aniversário da cidade de São Paulo, nessa última terça-feira, me faz ir um pouco mais longe, até 1977. Nesse ano, quando em São Paulo desci os pés, tive a sorte de conseguir trabalho no Jornal da Semana, que era editado pelo escritor Raduan Nassar. Raduan, então, somente havia publicado Lavoura Arcaica. Na época, a minha reportagem remunerada consistia em escrever crônicas como freelancer para o jornal, e nada mais.

Raduan e família, dona da cadeia de supermercados Bazar 13, até que pagavam bem, mas, diabo, as minhas 20 linhas semanais não valiam mais que o pouco chumbo impresso.

De passagem devo anotar que nesse tempo o estado de ânimo e de matéria – alma e prata – deste repórter era o pior possível. Para terem uma ideia do quanto, este que lhes escreve somente respondia cartas que viessem com selos adicionados no interior do envelope. No entanto, não sei se em razão de raiva ou de maior desespero, o texto que recupero a seguir não demonstra bem a carência de dinheiro no espírito do repórter. Eu era um atleta sonhador nesses belos dias paulistanos: percorria, passeava a pé mais de 9 horas, em rigoroso regime de calorias, por inúmeros e infindáveis quilômetros, da Vila Maria a Pinheiros. Entre ladeiras, ruas curvas e retíssimas avenidas, não posso dizer que conheço a cidade, pois São Paulo é muito grande. Mas posso informar que sempre observei a bela paisagem dos edifícios, sob um céu invariavelmente cinza. E chega de nariz de cera, vamos ao trabalho. O texto que recupero é este:

“Deus inca assaz falado”

O que o cidadão espera de um bar que tem o nome de Latino-americano? Toureiros de Espanha em terras do México, Sarita Montiel cantando La violetera, a felliniana Mamãe Dolores aos prantos secundada por Parra de mosquetão, com duplas de mexicanos de sombreros a passear pelas mesas chacoalhando ‘que bonitos ojos tienes’, um indivíduo pisando una señorita em arrojado tango, um índio com poncho a mascar com os olhitos apertados nos Andes? Pois se de Latin American o cidadão só entende os prospectos distribuídos em agências de viagem, não vá a este bar que tomará um tremendo susto: ao pé da escada, na Henrique Schaumann (quase esquina da Avenida Rebouças), encontrará um deus inca pintado na parede, segurando, à altura do queixo, aquilo que o eufemismo sugere dizer: um vigoroso falo.

Falemos, em termos: o senhor reverencia o deus-poder, sobe a escada, e adentra um ambiente cujo toque é a calma, o recolhimento, o bar, doce bar – atributos que, naturalmente, custam alguns trocados, que pesariam para um obrero, o que não deve ser o seu caso. Em um recanto em que a quase penumbra convida à paz (tão difícil, lá fora), o senhor senta-se, pois esse bar não é um daqueles infernais botecos em que a gente se embriaga de pé, até cair; senta-se e degusta, ao sabor do acaso, un tequila, un pisco, un don ramón, ou un negroni latino, que certamente lhe acenderá as ventas, mas será contido, amaciado pela suave música que vem dos trópicos, nas ondas doces das vozes dos grupos folclóricos del Paraguay, del Chile, del Perú … encastoadas em gentis fitas de um gravador que rumoreja e faz o ambiente. Das 19 e 30 ao último cliente, a depender do cliente, evidentemente. Falou?”.

Revendo o texto agora, percebo que as linhas acima possuem raiva e um olhar de quem vivia à margem. Na época, toda a redação do Jornal da Semana achou que esse foi um textínho de bom humor. O que, para a situação em que eu vivia, não deixava de ser uma piada muito, muito engraçada. São Paulo então era um retrato vivo nas paredes. E como doía nos pés.

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