Battisti e os lobos II: nas garras da injustiça

Dentre as muitas manifestações contra a extradição de Cesare Battisti, a mais notável, pela generosidade da iniciativa e pela nitidez da tomada de posição é a carta de Anita Leocádia Prestes ao presidente Lula, reproduzida no Vermelho de 17 de novembro.

Ela escreveu-a “na qualidade de filha de Olga Benário Prestes, extraditada pelo Governo Vargas para a Alemanha nazista, para ser sacrificada numa câmara de gás”. Ela não disse, mas bem sabemos que ela própria também foi deportada, ainda no ventre materno. No apelo a Lula, Anita se diz certa “de que seu compromisso com a defesa dos direitos humanos não permitirá que seja cometido pelo Brasil o crime de entregar Cesare Battisti a um destino semelhante ao vivido por minha mãe e minha família”.

Houve quem achasse excessiva a generosidade de Anita ao comparar a épica tragédia de Olga com a desdita de Battisti. Talvez, porém antes de calibrar esse honroso “excesso”, convém dar o devido peso ao que fica implícito, embora claro, na denúncia final: entregar Battisti ao aparelho repressivo de Berlusconi et caterva seria cometer um crime “semelhante ao vivido por minha mãe e minha família”. Aí está o nervo da questão: os deslumbrados com o “Primeiro Mundo” e os tartufos de todos os matizes juntam-se ao coro da sinistra alcatéia da direita explícita, para repetir, no ritmo implacável de um bate-estaca, que a Itália é uma democracia. Os Estados Unidos também o são, segundo o critério liberal. E no entanto, alonga-se cada dia a lista das atrocidades cometidas pelos cruzados que pretendem combater o terrorismo massacrando populações civis e torturando prisioneiros políticos (ou ditos tais, porque muitos apenas tinham a fisionomia e o nome “errados” no lugar “errado”).

No dia em que o STF terminou o julgamento do pedido de extradição, com o voto coerente de Gilmar Mendes (defensor dos banqueiros, tinha desafiado os cidadãos honrados ao emitir dois habeas-corpus seguidos a favor do delinquente de casaca Daniel Dantas; implacável na repressão dos movimentos sociais e os militantes da esquerda, votou convicto para satisfazer as exigências de Berlusconi), dei-me ao trabalho de olhar a “lista de discussão” na Folha on-line. As aspas indicam que a tal lista é explicitamente manipulada: os estafetas do clã Frias avisam que, a critério deles próprios, poderão não publicar os comentários que eles propõem ao leitor desavisado. Se me permitem uma expressão coloquial, os comentários publicados, em sua grande maioria, são “barra pesada”. Refletem a espessa vulgaridade do senso-comum da direita malufista e atucanalhada. Para Battisti, só impropérios: Assassino! Bandido! Terrorista! e outros do mesmo teor. Quando simulavam raciocinar, os “listeiros” da Folha on-line raramente iam além de pensamentos do gênero: já temos muito bandido por aqui, vamos devolver este para a Itália. Alguns poucos faziam um esforço para ser objetivos. Eram tão poucos que, contrariando meus hábitos de não me meter em discussão manipulada pelos trustes mediáticos, mandei meu comentário. Usando linguagem muito moderada para ver se publicavam, apontei algumas das tolices e incongruências dos fachos. Não publicaram.

Bem sabemos que os donos de jornais, revistas, canais televisivos, enfim o punhado de milionários proprietários dos grandes meios privados de comunicação social (ou mídia, como se diz em latim de texano), não defendem a liberdade de expressão da maioria, mas a liberdade de imprimirem o que quiserem! A prolongada campanha de intoxicação movida contra Battisti pelo cartel mediático está dentro dos usos e costumes das famiglias que o integram: informam o que, como e quando querem. A campanha teve certa eficiência ao estimular na opinião de centro-direita o velho reflexo de deslumbramento com o “Primeiro Mundo”. Comentando esse reflexo de colonizado, Carlos Alberto Lungarzo, membro de Anistia Internacional dos Estados Unidos, em cujo depoimento Anita Prestes se apoiou, denunciou que a Itália “pediu e obteve o privilégio de não ser apenas litigante, mas também parte da acusação: uma espécie de Ministério Público de Ultramar”. Com efeito, não apenas Gilmar Mendes (expressão mais agressiva da mentalidade reacionária que prevalece no STF), mas outros membros desse tribunal proclamaram pomposamente que a condenação imposta a Cesare Battisti pela “justiça” italiana não podia ser discutida. Por que não? Por que, como disse Lungarzo, essa “subserviência superlativa”?

Papel decisivo na perseguição a Battisti foi desempenhado pelo relator do processo, Cézar Peluso. Lungarzo assinala um “fato insólito” que, até onde ele pôde pesquisar em processos internacionais, “não possui antecedentes”: Peluso “consultou o governo de Itália sobre todos os pedidos da defesa de Battisti, especialmente os relativos a sua liberdade” e “acatou servilmente” as orientações que recebeu daquele governo estrangeiro.

Se alguém tem alguma dúvida sobre a putrefação moral da política italiana atual, está gravada em vídeo e circulando na Internet a cena em que Berlusconi, ladeado por um banco de capangas de cabeça raspada, estilo neo-nazi, dá alguns pasos em direção a uma fiscal de trânsito uniformizada que se debruçara, para lavrar uma multa, sobre o motor de um automóvel estacionado ao lado de sua limusine e a agarra por trás, encoxando-a. A fiscal se volta indignada e dá de cara com o Duce Cafonésimo, que abre a boca no riso debochado que lhe é característico.

É na mão desses sórdidos patifes que o STF quer entregar Battisti.

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