Ignácio Rangel: “Fogo, Blindagem e Conjuntura”
Reproduzo abaixo artigo assinado por Ignácio Rangel intitulado “Fogo, blindagem e conjuntura”. Escrito no final de 1989, Rangel demonstra que na guerra como na economia, a táticas inteligentes só podem ser elaboradas e executadas sob pressupostos baseados
Publicado 20/05/2009 17:26
Sob essa base, Ignácio Rangel demonstra os denominadores comuns entre, por exemplo, Gorbatchov e Fernando Collor e entre o nazismo alemão e o imperialismo norte-americano. Rangel chama atenção para o fato nem sempre as melhores estratégias podem ser repetidas quando os tempos são outros. Logo, conclui à necessidade de atentarmos para a grandeza do Brasil e buscarmos patrioticamente preservá-la e ampliá-la.
''Fogo, blindagem e conjuntura''
A Primeira Guerra Mundial teve início sob a inspiração de experiência da guerra de 1870, franco-prussiana: clara perspectiva de predominância de blindagem, contra fogo, prenunciando guerra de movimento. Essas ilusões não tardaram a dissipar-se, porque, entre uma guerra e outra, a tecnologia, dotando a infantaria de armamento leve, mas muito eficiente – como o fuzil de repetição e a metralhadora Maxim – mudou o caráter do conflito. Os esquadrões de cavalaria, responsáveis pelo choque e, portanto, pela imposição da guerra de movimento, revelaram-se inanes, ante o poder de fogo da infantaria, e, como vem acontecendo, ao longo da história, sempre que o escudo e a couraça se revelam ineficazes, o homem os substitui pela terra – a Mãe Terra – cavando um buraco restabelecendo o equilíbrio, mas ao custo da imobilização dos exércitos convertendo a guerra de movimento em guerra de posição.
A história antiga registra duas batalhas que se tornaram antológicas: Arbelas (33 a.c.) ganha por Alexandre, contra Dario III, da Pérsia; e Canas (216 a.c.), ganha por Aníbal, contra o cônsul romano Paulo Emilio. Em Arbelas, contra multidões asiáticas incontáveis, Alexandre colocou a falange macedônica, culminação da arte militar helênica, provavelmente aprendida por Felipe, de Epaminondas. A falange era constituída por um quadrilátero de combatentes, escalonados em profundidade, com uma primeira fila protegida por grandes escudos e armada ofensivamente apenas com a espada, mas apoiada por outras filas de combatentes armados de lanças de diferentes comprimentos. Era uma verdadeira fortaleza, com a propriedade de poder mover-se.
Esse dispositivo buscava, de caso pensado, deixar-se cercar pelo inimigo, mas de tal forma que esse cerco saia mal para o exército sitiante, não para o sitiado. Em nossos tempos, a falange macedônica teve seu equivalente consumado nas “panzerdivisionen” nazistas. Ainda na antiguidade, travou-se, na Itália outra batalha que passou também à história como modelar. Refiro-me a Canas. Paulo Emilio, dispondo de um exército formalmente muito melhor e mais homogêneo que o de Aníbal, havendo observado que o exército deste havia tomado posição, em campo, com as tropas de elite púnicas ao centro e tropas mais leves, como os arqueiros e fundibulários baleares, de pouca confiança, nas alas, decidiu jogar a sorte da batalha com um só golpe, inspirado, em última instância, no exemplo de Alexandre, em Arbelas.
Ora, o expediente por muito brilhante que parecesse, saiu mal aos romanos, porque Aníbal, já com as tropas romanas em movimento, ordenou a inversão do próprio dispositivo. Enquanto os romanos avançavam contra o centro cartaginês, as tropas púnicas de elite passaram a postar-se nas alas, enquanto as tropas auxiliares de Aníbal iam postar-se ao centro leve, o qual teve que bater-se em retirada, formando um saco, que as alas de elite cartaginesas fecharam. O resto se sabe: naquela multidão assim cercada, não se perdia, nem flexa, nem pedra de fundo, nem, naturalmente, lança. Mais de setenta mil romanos trucidados pelo esforço e valor dos púnicos guerreiros, seis alqueires de areia de mortos cavaleiros, certeza arrecadou, nos versos do nosso grande Bilac.
Assim, duas batalhas travadas com a mesma inspiração, levaram a resultados diametralmente opostos. Em Arbelas, o exército cercado aniquilou o exército sitiante, ao passo que em Canas – 115 anos – a tecnologia da guerra havia mudado, sem que disso se apercebesse o general romano que passou à história como exemplo de imbecilidade, por ter feito, a mesma coisa que dera a Alexandre o merecido conceito de genialidade.
Assim, também no período entre a Primeira e a Segunda Guerras Mundiais, o quadro da tecnologia inverteu-se. O tanque, desenvolvido no estágio final da Primeira Guerra Mundial, reduziu drasticamente a eficácia das armas básicas responsáveis pelo “fogo”. O fuzil de repetição e a metralhadora nada podiam contra a blindagem do tanque, sendo mister resistir a este com artilharia leve, em campo aberto, exposta ao fogo aéreo, sem o “escudo” tradicional da “Mãe Terra”. Estavam criadas as premissas para que a guerra de posição se convertesse em guerra de movimento, sob a forma de “blitzkrieg”, axiada nas “panzerdivisionen” – que prometiam batalhas fulminantes, do tipo Arbelas.
Já não era mais assim no final do conflito. A batalha de Stalingrado pôs em evidência a nova promessa de hegemonia do fogo sobre a blindagem. Como em Canas, o exército defensor deixou que se praticasse em suas linhas um bolsão, convertido em saco, no qual o exército de Von Paulus teria a mesma sorte das legiões de Paulo Emilio. O retorno à guerra de posição estava na ordem natural das coisas, se bem que não de imediato: talvez na Terceira Guerra Mundial, plausivelmente em nossos dias. Não há como não pensar nessa possibilidade, observando as guerras experimentais movidas pelo imperialismo contra o socialismo, “by proxy”, isto é, por interpostas pessoas.
Com efeito, como os nazistas depois de Stalingrado, o imperialismo, com os Estados Unidos à frente, persiste em mover guerra nos termos consagrados na fase de abertura do último grande conflito. Em Kursk a maior batalha da história, os nazistas persistiram em seu sonho de obter a decisão através de uma operação clássica de guerra de movimento, como Alexandre em Arbelas. O exército soviético suspendera sua ofensiva, depois de Stalingrado, numa posição que tudo fazia interpretar como uma Stalingrado às avessas, isto é, com os russos metidos num saco, ao qual faltava apenas amarrar a boca.
Sabemos, agora, porém, que os nazistas não haviam aprendido a lição, ou ao contrário, que os soviéticos a haviam aprendido muito bem. Com efeito, em vez de – como os nazistas em Stalingrado – confiarem a defesa das alas a tropas de segunda linha (italianas e romenas) os soviéticos entregaram-nas a suas tropas de elite, com defesas escalonadas em profundidade, que os nazistas não lograram romper, não obstante o terrível preço pago na tentativa. O cerco, e o conseqüente aniquilamento do exército inimigo, não se consumaram. Paradoxalmente, seguiu-se uma guerra de movimento, até Berlim, explicável menos pelo poder da blindagem soviética, do que pela persistência nazista em retomar a ofensiva, quando tudo sugeria a passagem à guerra de posições.
Ora, como seria de esperar-se, a história não parou aí. O meio século que está por concluir-se, entre o fim do terceiro e o fim do quarto Kondratievs – perdão, eu estava falando entre a segunda e a terceira guerras mundiais, mas no fundo, é a mesma coisa – esse meio século, dizíamos, trouxe muito plausivelmente nova revolução na arte da guerra. Em conseqüência, uma “blitz”, como a batalha que resultou na tomada da linha Marginot – que os pósteros estudarão como clássica ao lado de Arbelas e Canas – muito implausivelmente se poderá repetir, nas condições presentes. O restabelecimento da hegemonia do fogo sobre a blindagem, especialmente a partir das defesas de Leningrado e Moscou, e consolidada em Stalingrado e Kursk, não fez senão estruturar-se, de então para cá.
Para isso, muito contribuíram os interesses do “combinado industrial militar” expressão consagrada por Eisenhower especialmente nos Estados Unidos. Compreende-se que a indústria moderna esteja sempre a buscar modelos acabados, que justifiquem a produção em série. Ora, isso introduz no esquema uma perigosa tendência arcaizante, porque tais modelos acabados somente podem ser buscados, no caso da indústria bélica, nas batalhas passadas; na espécie, as batalhas típicas do último conflito mundial. Ora, como vimos essas batalhas, mesmo depois de Kursk, pelo paradoxo que deu à contra-ofensiva soviética a aparência de uma “blitz” às avessas – isto é simples aprendizagem, pelos russos, da lição dos mestres prussianos – suscitou tendência a, no futuro, jogar na hipótese da supremacia da blindagem sobre o figo. O que nos levaria, no campo de batalha, a buscar Arbelas e não Canas.
Numa época em que um simples soldado de infantaria pode levar em seu ombro – e, consequentemente, escondê-lo consigo, numa trincheira, ou num simples buraco, encontrado ao acaso – um armamento capaz de destruir o tanque mais possante, jogar na hipótese de uma ‘blitz’ é, no mínimo, uma temeridade. Quando não uma tolice, como aquela que, na batalha de Canas, contra Aníbal deu ao cônsul Paulo Emilio inspirada, embora na genialidade de Alexandre – não tem faltado citadores e êmulos, inclusive em nossos dias, como o noticiário nos está mostrando, todos os dias, nessas escaramuças preparatórias de Terceira Guerra Mundial, inclusive a presente “Guerra do Golfo”.
Acontece que as guerras não se ganham pelas estatísticas de cadáveres. Os norte-americanos, ao que se sabe, mataram quase cem camponeses vietnamitas para cada soldado que perderam, mas, como todos devem estar lembrados, foram eles os perdedores, os vencidos. Nem se ganham, tampouco, pela quantidade e refinamento dos equipamentos. Esse refinamento somente pode vir com o tempo, isto é, traz consigo a probabilidade de encarnar certa medida de arcaização. Por isso as batalhas da história são ganhas, geralmente, por equipamentos inovadores, que não tiveram tempo, ainda para refinar-se e, por isso, são simples e toscos. Na Coréia, no Vietnã e outros lugares tem sido assim, para variar.
Todas as guerras contemporâneas – subseqüentes à Segunda Grande Guerra – são preparativas da terceira, que talvez não aconteça nunca, mas que, do ponto de vista da arte da guerra, é como se já tivesse acontecido, porque tudo se faz em sua intenção. Mesmo quando travadas por interpostas pessoas, são guerras entre o imperialismo e o socialismo, o primeiro visivelmente empenhado no revivescimento do fascismo. A apostasia de Gorbatchov e demais “perestróicos”, não basta para alterar o quadro histórico básico. O Pentágono e, apesar dos gorbatchovos, o Estado-Maior Soviético, fazem as jogadas decisivas desse imenso tabuleiro de xadrez. Cabe-nos estudar os corolários econômicos desse fogo vital.
Ambos os contendores dispõem de recursos enormes, mas ao contrário do Pentágono, o Estado-Maior Soviético, ao que parece, não é tolhido por nenhum complexo industrial militar. Assim, a decisão do que produzir em série – sem o que não se ganha hoje, nem as batalhas econômicas nem, a fortiori, as estratégias podem ser deixadas para a enésima hora. Como foi no processo da preparação soviética na última Grande Guerra. Ninguém, nesse Estado Maior, está interessado em produzir montanhas de armamento reluzentes, novíssimos, mas, de fato, árcadios, porque “resolvem” problemas pretéritos, não problemas vindouros ou, sequer correntes.
Na Guerra da Coréia, por exemplo, para fazer frente ao B-25 considerado imbatível, os soviéticos deram aos coreanos, não bombardeiros ainda modernos, mas o modesto MIG-15, um pequeno avião, barato (porque produzido em série), que fora concebido ao tempo em que a URSS não tinha, ainda nem a bomba atômica, nem a bomba de hidrogênio, para a finalidade específica de interceptar os bombardeiros imperialistas capazes de levar bombas nucleares à retaguarda socialista profunda. Ora, a missão estratégica desse aparelho, o MIG-15, estava cumprida quando, pouco antes da Guerra da Coréia, surgiram as armas nucleares soviéticas, transferindo o confronto para o campo da “mútua dissuasão”. Como, no anterior conflito mundial, havia ou quase, acontecido com as armas químicas e biológicas, que não foram usadas precisamente porque os dois lados delas dispunham.
Para fazer frente aos blindados norte-americanos – reedição “modernizada”, “refinada” dos blindados alemães – os coreanos receberam, não tanques “ainda mais modernos”, uma versão tosca de armamento anti-tanque, surgido no estágio final da segunda grande guerra. Ao que noticiou a imprensa, tratava-se de um foguete, já provado antes, com peculiaridade de poder dividir-se em partes de algumas dezenas de quilos, que as mulheres camponesas podiam transportar em seus ombros, para entregá-las às mulheres das aldeias próximas, o que conferia a esse equipamento uma tremenda mobilidade – Todos devem estar lembrados que as divisões de McArthur, depois de chegarem, em “blitz” ao Rio Yalú, na fronteira com a Sibéria, tiveram que bater em retirada, para as posições de partida, no paralelo 38, de onde não mais se moveram. Exemplos assim podem ser citados para as outras “guerras preparatórias” do terceiro conflito macro-bélico.
A conclusão a tirar de todas as “guerras experimentais” promovidas pelo imperialismo, é que este está excelentemente preparado para ganhar a Segunda Grande Guerra. Mas é apanhado de surpresa, quando se trata de partir para a terceira. É pouco provável que “A Guerra do Golfo” seja diferente. Para vencê-la, seria mister ocupar o Iraque e, como disse o nosso Brigadeiro Piva, isso não seria fácil. Como foi na Coréia, no Vietnã, no Camboja, no Afeganistão, nem mesmo na minúscula Nicarágua, que o imperialismo norte-americano conhecia bem, pois já invadira três vezes, no passado século-e-meio.
Essas guerras experimentais – destinadas a comprovar o óbvio, isto é, que a Segunda Guerra Mundial não se pode repetir, questão dirimível por simples exercício de lógica dialética, sem necessidade do massacre de milhões de pobres populares terceiro-mundistas – ou talvez, por causa do seu refinamento de fabricação. O complexo industrial-militar do imperialismo surge, assim, como um gigantesco produtor de sucata. Uma sucata “moderna”, “refinada”, “reluzente”, mas sucata em todo caso, porque somente serviria para resolver problemas irremissivelmente peremptos.
E, eventualmente, para matar gente. Não para aniquilar exércitos, como às vezes é mister, para ganhar guerras. Mas para assassinar populações civis e destruir instalações residenciais, serviços públicos e monumentos, que não podem, evidentemente, proteger-se por detrás do escudo tradicional da “Mãe Terra”. Ou na medida em que não possam, porque às vezes o podem, como está sendo, aparentemente, o caso do Iraque, na presente guerra, entre contendores fora de qualquer proporcionalidade.
Ora, é tempo de que nós, os economistas, comecemos a tirar nossos próprios corolários dessa evolução da arte da guerra. Os homens e mulheres que, atualmente, no Brasil, falam em nome da ciência econômica, nos concílios do estado, são jovens e, por isso estão atravessando sua primeira fase “b”do ciclo de Kondratiev, ou ciclo longo: o 4º. Os homens de minha geração, que estão beirando os oitenta, estão vivendo a sua segunda fase “b”, porque atravessam, já em idade de razão a do 3º Kondratiev, carregado de significado, não apenas no campo econômico, como no político e no estratégico.
A Primeira Guerra Mundial foi um incidente da fase “a”, ou próspera do 3º Kondratiev. Nos primeiros anos do decênio de 20, a humanidade ingressou, simultaneamente, ou quase, na paz e na fase recessiva do Ciclo Longo. A Grande Depressão Mundial foi um incidente dessa fase recessiva e, com essa depressão, tivemos a emergência do fascismo, o qual levou à Segunda Guerra Mundial, no decênio final da dita fase recessiva.
O armamentismo e a própria guerra, pelo menos ao primeiro exame, muito tiveram que ver com a virada do Ciclo Longo – passagem da fase “b”do 3º à fase “a” do 4º. Ou a recíproca é que foi verdadeira, isto é, a virada do ciclo é que foi a causa eficiente do armamentismo e da guerra. Foi nas condições da fase “b” do ciclo que a Ciência Econômica se viu reconstituída, num esforço ligado ao nome de Keynes, e nos primeiros planos capitalistas sérios: o New Deal, nos Estados Unidos, e o Plano Quadrienal, do Dr. Von Schacth, o mago das finanças de Hitler, na Alemanha nazista.
Com a paz tivemos, de quebra, a mais explosiva fase de crescimento econômico de que há notícia. Tomando por base a produção industrial do ano de 1948, como 100, a mesma para o mundo capitalista havia chegado a 410 – ou 5,8% ao ano – ao fim da fase “a” do 4º Kondratiev, em 1973, quando se abriu a fase “b” do mesmo Ciclo Longo. O índice para a América do Norte passou a 305, ou 4,6% ao ano, nos cinco lustros da fase “a”, 550, ou 7,0% ao ano, para o Mercado Comum Europeu; 449, ou 6,2% ao ano, para a América Latina; 3074 (mais de trinta vezes) ou 14,6% ao ano, para o Japão; 1244 (mais de doze vezes) ou 10,6 % ao ano para a União Soviética. O Brasil teve um desempenho nada desprezível, alcançando o índice de 872 (mais de oito vezes) ou cerca de 9% ao ano, muito mais, portanto, que América Latina (inclusive Brasil) e, ainda mais, que o resto da América Latina (exclusive o Brasil).
Em 1973, abriu-se, pontualmente a fase “b” do 4º Kondratiev. Com efeito, nos quinze anos subseqüentes (1973-88), para comparação com os dados supra, a taxa média de crescimento do mundo capitalista passou a 2,1% ao ano; o crescimento industrial da América do Norte, passou de 2,2 %. O Mercado Comum Europeu, a 1,5% ao ano; o do Japão, a 3,4% do ano; o da União Soviética, caiu a 4,6% ao ano; o do Brasil, a 3,3%. Em média, naturalmente, porque no lustro intermédio, os valores caíram a níveis negativos.
Há meio século, isto é, na fase do Ciclo Longo simétrica com esta que estamos vivendo, o fascismo havia completado sua evolução e parecia fadado ao domínio do planeta. Somente a União Soviética parecia capaz de alguma resistência discretamente eficaz, mas não eram todos os que jogavam nessa hipótese. Afinal, a Europa e a Ásia haviam sido convertidos em quintal do Eixo, oferecendo a este uma massa sem precedente de recursos econômicos e estratégicos.
Passando o conflito, aberta a fase próspera do novo ciclo longo, esses temores foram esquecidos. E Jorge Dimitrov, tornado famoso por sua luta judiciário-política em torno do problema do incêndio do Reichstag, teve necessidade de toda sua eloqüência para contestar os que consideravam o fascismo como um capítulo encerrado da história. “Uma nova vaga fascista, comparada com a qual a que a humanidade acaba de viver não passará de um ensaio, está em gestação”, disse ele aproximadamente. E acrescentava que essa nova onda chegará à Europa cruzando o Atlântico.
Ora, não há como pensar nisso, quando vemos essa coalizão de 28 países, incluindo virtualmente todo o primeiro mundo – o centro dinâmico da economia capitalista mundial – e contando com o apoio de grande parte do segundo mundo, isto é, do antigo mundo socialista, formar-se para o fim específico de aniquilar um pequeno país terceiro-mundista, o Iraque. Dar-se-á que os prenúncios de Dimitrov estejam em via de cumprir-se?
Com efeito, do ponto de vista econômico, a similitude com a época em que a humanidade ingressou na Segunda Guerra Mundial, promovida pelo Eixo Alemanha, Itália, e Japão de nossa época é flagrante. Mas também, como não lembrar – relativizando os ditos prenúncios de Dimitrov – o pensamento de Marx, segundo o qual a história dificilmente se repete, ou melhor, quando parece repetir-se é para apresentar-nos como farsa o que, da primeira vez, foi tragédia.
Estamos, de fato, assistindo a uma aparente repetição da fase histórica de há meio século, a saber: uma crise econômica profunda, uma guerra mundial aparentemente em marcha, e um renascimento do fascismo. Apenas, a conjuntura de há meio século – por muito trágica que tenha sido – esteve carregada de grandezas. Para começar, os generais nazistas deixaram-nos modelos antológicos de feitos estratégicos, antes de tropeçarem nos desastres de Stalingrado e Kursk, e, por outro lado no que toca a nossa ciência econômica, deram-nos um modelo de
planejamento, calcado num Keynesianismo “avant la lettre” que, por exemplo, deu emprego a cerca de sete milhões de desempregados que Hitler encontrou na Alemanha, ao subir ao poder.
Esta reedição do fascismo não tem dessas grandezas. Suas aventuras militares lembram muito mais Paulo Emilio do que Alexandre ou Aníbal. Só para exemplificar, o general Giap, comandante do exército vietnamita que, contra toda expectativa derrotou um exército norte-americano, supostamente invencível, interpelado sobre as razões inesperadas da sua vitória, respondeu que aquele fora um fato complexo, difícil de explicar, mais que, para o dito desfecho, muito havia contribuído a incompetência dos generais norte-americanos. Ora, não há como pensar nisso, agora nos chegam, do “Golfo”, notícias de que o exército iraquiano não foi batido e venceu as sublevações das minorias apoiados pelos Estados Unidos e aliados.
O Brasil, como naquele tempo, está fazendo eco ao surto fascista mundial. Com a mesma diferença, porém, isto é, nossa experiência “collorida” de fascismo, não tem nenhuma grandeza, o que não se pode dizer do seu modelo de a meio século, sob o comando de Getúlio Vargas e uma plêiade de homens da melhor qualidade política, entre os quais devemos recordar outro Collor – Lindolfo – que inovou pesadamente em nossas instituições, promovendo um direito trabalhista que, embora formalmente inspirado na Carta Del Lavoro, de Mussolini, e calcado nas instituições medievais, vale dizer, corporativas, deu um tremendo impulso ao processo de nossa industrialização.
Naquele tempo, nós, os homens de esquerda, que queríamos a industrialização do Brasil – vale dizer, a construção do capitalismo industrial aqui –, estávamos convencidos de que isso seria uma radical reforma agrária, como na França de 1789, nos Estados Unidos do século passado e na União Soviética nossa contemporânea. Somente mais tarde, alguns dentre nós aperceberíamos de que os caminhos da história são mais tortuosos do que parece à primeira vista, o que nos levaria à teoria da dualidade da economia brasileira, segundo a qual o capitalismo industrial brasileiro podia e devia desenvolver-se em aliança e sob a hegemonia do latifúndio feudal. Isto é, num enquadramento francamente corporativo.
Muito mais tarde, chamado por Getúlio Vargas para trabalhar em sua assessoria econômica, sob o comando imediato de Rômulo Almeida e J. Soares Pereira, respondendo a minha ponderação de que não me considerava getulista e que minha oposição a ele me havia rendido mais de dois anos de prisão, além dos oito anos de domicílio coacto em São Luís – não no Maranhão – o presidente disse, num gesto que me ficou como exemplo de sua grandeza, que havia estudado cuidadosamente o meu currículo e que estava disposto a correr o risco. Em suma, que me sentisse em sua assessoria como se estivesse em minha própria casa. – Do que jamais me arrependi, nem, estou certo, dei razão, ao chefe do Estado para arrepender-se de sua decisão que, francamente
parecera temerária, ao primeiro exame.
Com efeito, eu fora getulista por um breve momento. Quando da Revolução de 30, com escassos 16 anos, procurando corroborar a ação de meu pai, prócer aliancista maranhense, fiz-me conspirador e soldado voluntário. – Getúlio, consequentemente, como chefe da revolução, havia sido meu comandante, fazendo jus a toda minha lealdade.
Conto estas coisas, para marcar a diferença entre o nosso “fascismo” estado-novista e o atual. Para meu conhecimento, somente dois países, o Brasil e a União Soviética, emergiram da fase recessiva do 3º Kondratiev. Com efeito, entre 1938 e 1979 – pré-guerra imediato à abertura do nosso “decênio perdido” – a produção industrial soviética, batendo todos os recordes, cresceu 26,5 vezes; a do mundo capitalista, 6,9 vezes; a do Japão, o mais próspero dos países capitalistas, 13,8 vezes. Entrementes a produção industrial brasileira cresceu, no mesmo período 23,9 vezes.
É esta formidável potência, que estivemos construindo, partindo das condições de uma economia mundial deprimida, que temos o dever de preservar. Coisa incompatível com um programa como o “collorido”, que aí temos, que arbitrariamente coloca a inflação no centro de toda a nossa problemática, e como o epifenômeno que é. E que pretende combater esse epifenômeno pela via do agravamento de sua causação profunda, isto é, da recessão e do desemprego.