Do que Gilmar Mendes é o nome?
Minha inspiração é explícita, como terão notado imediatamente os que acompanham o combate intelectual e político daquela parte da esquerda francesa (a melhor, embora não a maior) que não capitulou perante a reação neoliberal.
Publicado 02/09/2008 17:17
Nela ocupa posição eminente o filósofo marxista Alain Badiou, cuja obra é internacionalmente respeitada. (Basta verificar nesse indispensável vademecum de nosso tempo que é o Google). Em 2007, lançou um livro de grande repercussão na França, intitulado De quoi Sarkozy est-il le nom? (Para quem compreende o francês, vale a pena ouvir e ver na internet Badiou apresentar o livro em cerca de 13 minutos, num encontro promovido pelo jornal L’Humanité, do Partido Comunista Francês).
O verbo de Badiou é contundente. Até demais, dizem alguns, argumentando que “ele desacredita a causa que defende”. Pode ser. Mas pode ser também que quem diz isso não acredita na causa que alega ter sido desacreditada por Badiou. Não há dúvida, porém de que sua apresentação do livro é ferozmente sarcástica:
“Sim, caros amigos, sinto nessa sala um cheiro de depressão. Sustento então que Sarkozy por si só não seria capaz de vos deprimir, afinal! Assim pois, o que vos deprime, é aquilo de que Sarkozy é o nome. É nisso que devemos nos deter: a vinda daquilo de que Sarkozy é o nome, vós a ressentis como um golpe que essa coisa vos desfere, a coisa provavelmente imunda da qual o pequeno Sarkozy é o servidor”.
Deixemos a Badiou o que é de Badiou, concordando porém, quanto ao fundo, que com Sarkozy chegaram à presidência da França as idéias odiosas de Le Pen, menos o facho-nacionalismo deste, substituído pela adesão militante ao facho-liberalismo de Bush. Entretanto, o que sobretudo nos interessa aqui é a idéia de interrogar a coisa da qual determinada personalidade é o nome. Parece-nos um bom método para analisar a sempre recorrente questão do papel do indivíduo na história (na grande e na pequena).
Donde a pergunta: de que coisa Gilmar Mendes é o nome? A questão comporta múltiplas respostas, a mais enfática das quais provém do jurista Dalmo Dallari no artigo “Degradação do Judiciário”, publicado na Folha de São Paulo em 8 de maio de 2002, em que reage com indignação à notícia “de que o presidente da República” (FHC, o da herança maldita), “com afoiteza e imprudência muito estranhas encaminhou ao Senado uma indicação para membro do Supremo Tribunal Federal” (a indicação foi noticiada antes que se formalizasse a abertura da vaga), “que pode ser considerada verdadeira declaração de guerra do Poder Executivo federal ao Poder Judiciário, ao Ministério Público, à Ordem dos Advogados do Brasil e a toda a comunidade jurídica”. O indicado em questão, “alto funcionário do Executivo, especializou-se em 'inventar' soluções jurídicas no interesse do governo. Ele foi assessor muito próximo do ex-presidente Collor, que nunca se notabilizou pelo respeito ao direito. Já no governo Fernando Henrique, o mesmo dr. Gilmar Mendes, que pertence ao Ministério Público da União, aparece assessorando o ministro da Justiça Nelson Jobim, na tentativa de anular a demarcação de áreas indígenas. Alegando inconstitucionalidade, duas vezes negada pelo STF, 'inventaram' uma tese jurídica, que serviu de base para um decreto dopresidente Fernando Henrique revogando o decreto em que se baseavam as demarcações. Mais recentemente, o advogado-geral da União, derrotado no Judiciário em outro caso, recomendou aos órgãos da administração que não cumprissem decisões judiciais”.
Dallari acrescenta que G.Mendes, enquanto advogado-geral da União, agrediu “grosseiramente juízes e tribunais”, chegando a tratar de “manicômio” o sistema judiciário brasileiro, ao que o presidente do Tribunal Regional Federal da 1ª Região replicou com dignidade, no artigo “Manicômio Judiciário” (publicado no nº 107, dezembro de 2001, do Informe daquele tribunal, observando que “não são decisões injustas que causam a irritação[…]do advogado-geral da União, mas as decisões contrárias às medidas do Poder Executivo”. Naquele momento, Gilmar Mendes considerava que “toda liminar concedida contra ato do governo federal” era “produto de conluio corrupto entre advogados e juízes”, sócios no que ele então chamava a “indústria de liminares”. Hoje ele mudou radicalmente de opinião, tanto assim que os advogados do ricaço Dantas estavam seguros de que este seria posto na rua assim que a decisão sobre o “habeas corpus” chegasse a suas mãos.
Dallari refere ainda uma denúncia da revista Época de 22/4/02 (p. 40): na condição de chefe da Advocacia Geral da União, G. Mendes pagou R$ 32.400 ao Instituto Brasiliense de Direito Público, do qual ele próprio é um dos proprietários, para que seus subordinados lá fizessem cursos. “Isso é contrário à ética e à probidade administrativa, estando muito longe de se enquadrar na 'reputação ilibada', exigida pelo artigo 101 da Constituição, para que alguém integre o Supremo. Se essa indicação vier a ser aprovada pelo Senado, não há exagero em afirmar que estarão correndo sério risco a proteção dos direitos no Brasil, o combate à corrupção e a própria normalidade constitucional”.
Seis anos depois, em abril de 2008, G. Mendes foi conduzido à presidência do STF numa festa concorrida, com forte presença da direita liberal (tucanos e outros “democratas”). Agradou muito aos latifundiários (auto-intitulados “ruralistas”) em seu discurso de posse, quando prometeu severidade contra os “movimentos sociais”. Não mais edificantes são as outras coisas e atitudes a que G. Mendes associou seu nome. Manifestou-se contrário ao esclarecimento judicial dos crimes de tortura cometidos durante a ditadura militar, portanto pela negação aos torturados e desaparecidos, a suas famílias e amigos, do direito à memória. Votou pelo obscurantismo, contra as pesquisas em células-tronco. Não perdeu ocasião de manifestar seu ódio à revolução cubana. Mas a coisa que mais indignação suscitou foi a concessão de reiterados “habeas corpus” ao banqueiro Dantas e a outros malandros milionários cuja cínica desenvoltura é um escárnio à pobreza de nosso povo. Tentou com arrogância, usando mal um poder que de resto não lhe foi confiado pelos eleitores, intimidar o juiz federal Fausto de Sanctis, que com firmeza e dignidade persistia no justo esforço de tirar Dantas da circulação.
Gentis com os engravatados ricos, G. Mendes e seus colegas do Supremo decidiram também que algema não é para VIPs, por mais celerados que sejam. O pulso de Dantas e consortes é feito para ostentar Rolex… O velho adágio latino cai-lhes como uma luva: Summum ius, summa iniuria!