Harthuey, Pizarro e a identidade nacional
Harthuey, cacique na Ilha Hispaniola (hoje compartilhada por Haiti e São Domingos) fugiu para a ilha de Cuba em 1511, acompanhado dos membros de sua comunidade que tinham escapado do extermínio promovido pelos espanhóis. Lá chegado, resistiu denodadamente
Publicado 31/07/2008 18:17
Atado ao poste onde iria ser queimado vivo, fez jus a uma rápida pregação das verdades evangélicas. Um padre franciscano explicou-lhe que se as aceitasse, iria desfrutar de glória e repouso eterno no céu; caso contrário, sofreria eternamente os tormentos do inferno. O cacique pensou um pouco e perguntou ao religioso se os espanhóis também iam para o céu. Os que são bons, sim, respondeu-lhe o franciscano. Então, replicou Harthuey, não quero ir para lá, não quero me encontrar com eles.
Francisco Pizarro, um desses espanhóis que Harthuey preferiu ir para o inferno para não encontrar, chegou na Hispaniola em 1502. Mas sua estrela só começou a brilhar quando se deslocou para Panamá em 1519. Em 1522, a notícia da existência, mais ao sul, de um rico império indígena, acendeu-lhe a ambição. Após uma expedição de prospecção inicial, ele organizou outra que atingiu Tumbez, posto setentrional avançado do Império Inca. Ali apossou-se de três jovens indígenas com o intuito de que lhe servissem de intérpretes e regressou ao porto de Panamá para organizar a conquista do cobiçado Império. Entrementes, firmou um contrato com o Imperador Carlos V, o qual, do alto de sua imperial majestade, sem pejo em distribuir aos fâmulos o que não lhe pertencia, atribuiu-lhe o futuro governo do Peru e concedeu título de nobres a treze membros de sua tropa. Prestigiado pelo Trono e abençoado pelo Altar, partiu para Tumbez no final de 1530, à frente de 180 homens bem armados.
A fortuna lhe foi propícia. Como se não bastassem os morticínios que já estavam conduzindo ao extermínio povos inteiros do Caribe, uma epidemia de varíola, cujo vírus tinha sido trazido pelos espanhóis, espalhou-se entre os habitantes do Estado Inca, vitimando o próprio imperador Huayna Capac. Dois de seus filhos, Huáscar e Atahualpa, disputaram-lhe a sucessão, cada um à frente de um exército. No início de 1532, Atahualpa derrotou Huáscar e o executou. Pizarro, que juntava alto grau de audácia, agudo sentido tático e fria crueldade, armou exitosa cilada que lhe permitiu seqüestrar Atahualpa. Supondo equivocadamente que os espanhóis se contentariam com o pagamento de um pesado resgate, o Inca lhes ofereceu 13.420 libras de ouro e 26.000 libras de prata em troca de sua liberdade. Pizarro recebeu a colossal fortuna oferecida, mas em vez de libertar o seqüestrado, mandou matá-lo em agosto de 1533.
Francisco estava longe, entretanto, de ser o membro mais cruel da família Pizarro. Seu irmão Gonzalo, que ele nomeou governador de Quito, superou-o nitidamente em maldade e em audácia. Levando a sério a lenda do El Dorado, Gonzalo organizou uma expedição que em 1541–1542 explorou o rio Amazonas, na ávida esperança de encontrar montanhas de ouro. Após passarem três meses embrenhados na espessura da selva, os aventureiros começaram a carecer de mantimentos. Os indígenas incorporados à expedição provinham dos Andes. Não estavam muito mais preparados para o clima, a flora e a fauna da região amazônica do que seus chefes europeus. À medida que a fome apertava, os expedicionários foram comendo, além de cães e cavalos que tinham trazido com objetivos não-alimentícios, ervas e raízes desconhecidas, algumas venenosas. Muitos morreram. Mais os revezes se acumulavam, mais a crueldade de Gonzalo Pizarro se exacerbava. Quando, numa aldeia onde chegava, os indígenas não sabiam dar-lhe as informações que queria, matava todos, queimando-os vivos ou jogando-os aos famintos cães remanescentes, que lhes dilaceravam o corpo.
Faltavam ao cacique Harthuey referências para distinguir maus e bons espanhóis. Todos os que ele conhecera eram feras sedentas de ouro, prata e sangue, que exterminavam seus conterrâneos com atroz crueldade. Não poderia saber que justamente um espanhol, o padre Bartolomeu de Las Casas, iria perenizar a memória de seu martírio. Nem que outro espanhol, o padre Antonio Montesinos, anos antes de que Las Casas se tornasse célebre por seus escritos denunciando veementemente a “destruição das Índias”, tomaria a defesa dos indígenas do “novo mundo” contra seus algozes. Com a distância de cinco séculos que deles nos separa, sabemos o que nem Harthuey, nem tampouco Montesinos e Las Casas, ou qualquer outro, poderiam compreender naquele momento: a tragédia que marcou o contato inicial dos conquistadores com os conquistados foi apenas a primeira no imenso cortejo de horrores que acompanharia, séculos a fio, a história do colonialismo. Os males que os espanhóis fizeram seriam reproduzidos, em toda a periferia colonial do planeta, pelos portugueses, holandeses, franceses, belgas, ingleses, enfim por toda a Europa ocidental, matriz da civilização cristã.
Desculpemos pois Harthuey de ter considerado os espanhóis a encarnação de uma quintessência maligna. A identidade nacional não é uma essência metafísica pairando acima da história. Ela se manifesta pela comunidade de idioma e de outros traços culturais, configurados através dos processos extremamente complexos que compõem a trama da história de cada nação e são reativados pela memória coletiva. Essa memória, no entanto, não é a mesma para cada classe e categoria social. Cada uma delas se apropria da história nacional de um modo que reflete suas próprias condições sociais e culturais de existência coletiva.
Na Espanha, teatro de uma das mais terríveis guerras civis da primeira metade do século 20, a identidade nacional dilacerou-se no combate frontal entre republicanos e fascistas e só se recompôs penosamente, com cicatrizes mal remendadas, no final dos anos 1970. Graças à colaboração dos euro-comunistas, então dirigidos por Santiago Carrillo, além, claro dos sempre prestativos socialistas, a solução institucional que então se impôs incorporou um ponto decisivo do legado do franquismo: o restabelecimento da monarquia. Com efeito, sempre é bom lembrar, Sua atual Majestade, o rei Juan Carlos de Bourbon y Bourbon, foi posta no trono pelo generalíssimo Francisco Franco, que tirou da naftalina o então jovem rebento da dinastia que reinara na França e depois na Espanha, proclamando-o seu herdeiro político universal.
A herança das gerações passadas está sempre em aberto. Distante das luzes de Madri e Barcelona, a sombra de Pizarro ainda molesta a memória coletiva dos povos andinos, decididos, cinco séculos depois do martírio de Harthuey e do início de um genocídio de proporções continentais, a recuperar sua identidade e a escrever sua própria história.