A imortalidade de Zumbi e a insanidade do racismo

Cansada de responder a uma vizinha que insistia em perguntar se eu era enfermeira e se meu apartamento era alugado, registrei queixa na delegacia…

Celebro o 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, com um provérbio africano: “Até que os leões contem suas histórias, os contos de caça glorificarão sempre o caçador”, que ressalta o crime do mandatário da capitania de Pernambuco, Caetano de Melo e Castro, que, achando pouco matar, espetou a cabeça de Zumbi dos Palmares (1655-1695) para que apodrecesse na praça do Carmo, em Recife, conforme escreveu ao rei de Portugal: “Determinei que pusessem sua cabeça em um poste no lugar mais público desta praça, para satisfazer os ofendidos e justamente queixosos e atemorizar os negros que supersticiosamente julgavam Zumbi um imortal para que entendessem que esta empresa acabava de todo com os Palmares”.


 


 
Cansei! De tanto ouvir que o centro dos problemas dos negros no Brasil é a pobreza, radicalizei: “Quer ficar em meu lugar apenas por um dia?” Aprendi com Arnaldo Xavier e Maurício Pestana, no “Manual de Sobrevivência do Negro Brasileiro” que, “quando você se defrontar com argumentos cheios de remorso de que não existe discriminação racial no Brasil, que o preconceito contra o negro é social e que os negros são complexados, pergunte ao interlocutor cheio de culpas se ele já passou um dia de negro”.


 



É ignorância achar que, superada a pobreza, adeus racismo! Cabe uma frase do escritor norte-americano Sydney J. Harris (1917-1986): “Quando eu ouço alguém suspirar 'a vida é dura', eu sempre sou tentado a perguntar: 'Comparado a quê?'” Jamais fui exatamente uma pobre, pobre… Comparada com pobre, pobre… Mesmo em meio àquele miserê coletivo e generalizado que era a vida da maioria das pessoas do médio sertão do Maranhão, onde nasci, numa família de negros remediados, donos de suas próprias ventas, seus pequenos comércios, com suas quintas, curralzinho, um gadinho…


 



A cada neto(a) que nascia, vovó Maria presenteava com uma “coisinha” de ouro. Uma exteriorização de posses, ainda que jamais tenhamos sido ricos. Meu avô Braulino ferrava uma bezerra, que procriava, procriava… Ele dizia: “Tem de ter uma sementinha de gado”… Raciocinava, acertadamente, que doava uma garantia de futuro. A comadre Natalina Takau Ramalho partilha da mesma visão, pois disse ao meu filho, seu afilhado: “Tem de ter gado porque com gado é assim: a gente dorme e o boi engorda… a gente dorme e o boi engorda…” A minha “sementinha” bancou meus estudos, permitindo que meu primeiro trabalho na vida fosse o exercício da medicina. Até hoje tenho o meu ferro de gado, feito pelo meu avô, com as Letras MF (Maria de Fátima).


 



A “sementinha de gado” não impediu, e ser médica não impede, que o racismo se abatesse sobre mim, como eu disse à filósofa Sueli Carneiro: “A minha percepção do racismo sofrido aparece depois de médica, sobretudo o fato de as pessoas se espantarem quando me vêem; de perguntarem a que horas a médica vai chegar. Em geral, desde sempre eu não pareço médica, até hoje. Há um estereótipo. Na imaginação popular, médica é branca!” (Tese de doutorado “A construção do outro como não-ser como fundamento do ser”, USP, 2005, da qual tenho a honra de ser um capítulo).


 



Cansada de responder a uma vizinha, da zona sul de BH, nos idos de 1989, que insistia em perguntar se eu era enfermeira e se o meu apartamento era alugado, eu a proibi de continuar perguntando. Disse-lhe N vezes que era médica e dona do apartamento, mas ela esquecia! Só parou quando registrei queixa na delegacia. Radical?


 



Registrei uma demonstração de que a gênese do racismo não é a classe social. Como diz o poeta Éle Semog, em “Ponto Histórico”: “existem certas/Coisas/Que só os NEGROS/Entendem… existe uma/História/Que só os NEGROS/Sabem contar/… Que poucos podem/Entender.”

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