Publicado 23/12/2018 16:34
Embraer: país não percebe que a aviação civil é um excelente negócio, desde que estrategicamente ligado ao Estado
Blog do Santayana – Em Lisboa, 19 horas. Nuvens negras se acumulam para os lados da Praça Luis de Camões e relâmpagos brilham, sinuosos, sobre o Castelo de São Jorge.
Um conhecido, capixaba, que vem descendo a pé o passeio, testemunha inesperadamente o encontro de dois cidadãos portugueses, perto da Tasca Maitai, na rua da Rosa.
–Tu por aqui, pá? E sozinho?
Como está frio, cerca de 10 graus, com chuva e uma umidade de 81%, o primeiro parece estar tentando convencer o segundo a tomar uma taça de vinho, ou quem sabe algo mais forte, em um bar próximo, para esquentar o peito, e completa, incisivo, aumentando o tom de voz, com um apelo que lhe parece incontornável:
– Vamos, vamos, que quero comentar contigo a última do brasileiro!
Frase que, dita com tal ênfase, chama, naturalmente, aos brios, a curiosidade de nosso compatriota, que, não tendo nada melhor para fazer no momento, resolve seguir os gajos para dentro de um lugar pitoresco, ali por perto, lotado de gente apinhada em frente a um balcão cheio de espelhos, onde os dois prováveis lisboetas conseguem uma mesa em um cantinho e o Joaquim – à falta de outros usamos aqui os prenomes que sempre utilizamos no Brasil para identificar clássicos personagens portugueses – já matreiro, tirando a capa molhada com um sorrisinho na boca, volta a fazer alusão à última “do brasileiro”.
– Mas qual delas, pá, qual delas? – pergunta nosso suposto Manoel – diz–me logo que já são tantas, mais de uma por dia, ultimamente!
– Ora, a dos aviões, pá, a dos aviões. Não viste que o Temer, no apagar das luzes, acaba de abrir as asas, ou melhor, as pernas, do mercado brasileiro de aviação de passageiros aos estrangeiros?
– Ora meu caro, isso já era de se esperar. Os brasileiros estão como umas cavalgaduras na sofreguidão por entregar o seu ao alheio. Não percebem que a aviação civil é um excelente negócio, desde que esteja estrategicamente ligado, até por uma questão de segurança, também ao Estado, atendendo aos interesses nacionais, ou, em alguns casos, até mesmo continentais, como por aqui é o caso.
– É verdade. Não foi por acaso que o nosso governo comprou mais ações da TAP no ano passado, completando agora os 50% – disse Joaquim, levando pela primeira vez a taça aos lábios, com nosso providencial capixaba encostado ao balcão, meio de lado, com as orelhas em riste, acompanhando o colóquio lusitano.
– O governo português é socialista – retrucou o Manuel – mas não é burro. No mesmo ano a Air Portugal já deu logo 104 milhões de euros em lucro. Em bom brasileiro, quase 400 milhões de reais.
– A TAP. Uma empresa que foi, durante anos, comandada por um gaúcho brasileiro nada burro, o Fernando Pinto, que acaba de se aposentar. Ficou mais de 15 anos por aqui, vindo de uma empresa antiga, te lembras, que operava em quase todos os aeroportos do mundo e tinha uma rosa dos ventos no rabo das aeronaves, chamava–se VARIG ou BARIG, não me lembro mais…
– Ficando os outros 5% para os funcionários da TAP e 45% para o Atlantic Gateway…
– Um consórcio comandado por outro brasileiro também nada burro, pá, já que é também estadunidense, o David Neeleman…
– Que como li, se colocou contra a abertura indiscriminada do mercado aos concorrentes estrangeiros, ainda mais sem a exigência de nenhuma reciprocidade, como foi feito, aconselhando que o limite fosse de no máximo 49%…
– Como é no outro país dele, os Estados Unidos, onde, por lei, nenhuma empresa estrangeira pode ter mais do que 49% em companhias locais, senão não pode entrar no mercado norte–americano.
– Ou aqui, na Europa, onde a União Europeia proíbe, também por lei, que empresas que não sejam estatais ou não pertençam a capitais europeus, ou a cidadãos nascidos em países da UE, tenham mais de 50% do controlo de qualquer companhia aérea de transporte de passageiros.
– Mas os brasileiros são burros, pá…. – tornou o Manuel, pensativo – ainda acreditam em lorotas como a da livre iniciativa. Mal sabem eles que a liberdade da tal mão invisível do mercado acaba onde começam os interesses dos grandes países e blocos econômicos que têm vergonha na cara.
– Aquela mãozinha sacana dos mercados que onde não tem controlo está sempre enfiada no bolso de trás dos consumidores. A mexer na carteira deles ou a apertar, lascivamente, suas nádegas.
– Como faria o tal do João de Deus – riu Manuel – para continuar com as atualidades de além–mar!
– E a Embraer, pá, não viste como estão encaminhando mal o tema?
– Entregando a companhia de mais alta tecnologia que têm à Boeing, a preço de bananas?
– Sim. Com a justificativa de que a Bombardier canadense também se aliou à Airbus.
– É. Mas a mídia lastimável que os gajos têm no Brasil não explica que a Bombardier canadense tem participação estatal e que o Canadá só vai abrir mão de 50% da nova empresa, porque a tal "aliança" por lá é meio a meio.
– Enquanto a Embraer está entregando o futuro do negócio e 80% das ações para os norte–americanos, com uma claúsula de eventual venda dos outros 20%.
– Com isso os asnos não vêem que a Boieng já se livra, a longo termo, de um futuro concorrente, que já estava fabricando aviões médios, de 120 lugares.
– E que daqui a uns dois ou três anos a Boeing pode fechar as fábricas da Embraer no Brasil e transferí–las aos EUA, engolindo os canarinhos de camisola amarela da seleção 1 x 7.
– Como faria qualquer bom gavião, pá, já que estamos em assuntos aéreos.
– E alcóolicos e etéreos – retrucou Joaquim, filosoficamente – fazendo um sinal ao moço para trazer mais uma taça de vinho.
– Mas o pior de tudo são as desculpas – continuou o Manoel, dando uma boa gargalhada.
– Eu vi, eu vi. Estou acompanhando na Tv a cabo os “especialistas” comprados, que sempre estão à mão para justificar este tipo de engodo e garantir, como diria o Noam Chomsky, a fabricação do consentimento. Estes teimam em dizer que sem o "acordo", melhor dizendo sua rendição à Boieng, a Embraer não sobrevive no mercado.
– Como se a Embraer não tivesse acabado de bancar, sozinha, o desenvolvimento de toda uma nova família de aviões civis para até 120 passageiros, a E–2, muito mais moderna, segura e econômica, sem precisar de ajuda ou parceria de nenhuma companhia estrangeira.
– E não estivesse a colher os frutos desse gigantesco projeto com um tremendo sucesso de vendas nos principais salões aeronáuticos.
– Só no Farnbourough Airshow na Inglaterra, neste ano, a Embraer vendeu 300 aviões, em contratos que podem render até 15 bilhões de dólares.
– Que agora irão para o bolso dos norte–americanos.
– Sem falar nas vendas da semana passada, quando a Embraer vendeu de uma só vez – também sem precisar da Boeing nem de nenhuma outra empresa estrangeira para isso – 100 aviões de médio porte para a Republic Airways dos Estados Unidos em uma única canetada.
– Fora os 21 jatos que vendeu à Azul, do David Neeleman, também nos últimos dias, não te esqueças, por 1.4 bilhão de dólares.
– Ora…o amigo acha que se as grandes empresas de aviação regional estivessem preocupadas com o futuro da Embraer estariam comprando os aviões dela dessa forma?
– Quer dizer, os brasileiros investem durante dezenas de anos sangue e suor e bilhões de dólares em dinheiro público para matar o leão e construir a terceira maior fabricante de aviões do mundo.
– E na hora de comer o felino – completou Manuel – põem a mesa de gravatinha borboleta e creminho no cabelo e servem tudo à francesa para os gringos.
– É que a moda agora no Brasil é acreditar na conversa fiada de que são incompetentes e que estão quebrados. Duas excelentes desculpa para todo tipo de corrupção e de negociatas.
– Afinal, só um país de idiotas vende o controlo de sua mais avançada empresa de tecnologia por 5 bilhões de dólares.
– Quando tem 380 bilhões de dólares – mais que o nosso PIB português – só em reservas internacionais.
– 250 bilhões desses 380 bilhões de dólares, diga–se de passagem, emprestados justamente para os norte–americanos, que são quem está levando para casa a EMBRAER na bacia das almas.
– Acredito que só com as encomendas deste ano a Boeing lucra os 5 bilhões de dólares que vai pagar pela Embraer. A empresa vai sair de graça.
– Ora, se a intenção é atingir escala aliando–se à Boeing, o governo brasileiro devia pegar 5 bilhões de dólares das reservas internacionais, que ao final não fazem a menor diferença diante do total, dá menos de dois por cento, e capitalizar a EMBRAER no mesmo montante da Boeing, ficando com peo menos 50% do negócio e com uma empresa muito maior do que a que o Brasil já tem.
– Mas isso, está claro, não se pode fazer. Seria coisa de comunista estatizante.
– Se vê muito bem que a razão não é empresarial. A questão é não perder a oportunidade de mostrar como são abjetos e como esse “novo” Brasil se rebaixa caninamente aos interesses de tudo que é norte–americano!
– Além de se estar fazendo o mesmo com o KC–390, o novíssimo cargueiro militar feito pra substituir o Hercules C–130 do qual também participamos do desenvolvimento, junto com os brasileiros, os argentinos e a República Tcheca.
– No princípio diziam que o negócio só abrangeria os aviões civis e agora vão chamar a Boieng também para ser sócia na fabricação desse avião, o maior já produzido pela indústria brasileira, que está mais voltado para operações de defesa.
– Nos dois casos o que importa é saber se o governo brasileiro vai conservar a ação de mando na EMBRAER, impedindo que a Boieng amanhã desmonte as fábricas e as leve para os Estados Unidos.
– Como a própria Embraer teve que fazer quando transferiu a fabricação de Super Tucanos vendidos para EUA para a Flórida, sendo obrigada a fazer uma joint venture minoritária com uma empresa americana, a Sierra Nevada, porque os EUA – que já avisaram que querem que o KC–390 seja montado nos EUA – proíbem a importação de armamento para suas forças se não forem construídos em território norte–americano e por empresas majoritariamente norte–americanas.
– É óbvio. Já que os norte–americanos não são estúpidos como os brasileiros, ou a massa ignara e manipulada deles, sempre enganada pela mídia.
– Como se diz por lá, os gringos não dão ponto sem nó, pá!
– Como estão fazendo no caso da Petrobras, a outra grande empresa brasileira de tecnologia.
Arrebentando com a empresa nos tribunais dos EUA com a desculpa da corrupção e se apropriando das reservas de petróleo que ela descobriu com tecnologia própria para suas próprias grandes empresas como a EXXON, com isenção de impostos de dezenas de anos.
– Pobre Brasil… – suspirou o Joaquim, desconsoladamente – aquele baixinho, que tem uma estátua em Le Bourget, na França…
– Quem, o tal Santos Dumont?
– Deve estar revirando–se no túmulo…
– Afinal, o que não se pode compreender, pá, é como um país tão grande…
– Com 8.5 milhões de quilômetros quadrados e um território e um espaço aéreo maiores que o da Europa inteira.
– E mais de 200 milhões de habitantes com a quinta maior população do mundo…
– Com 380 bilhões de dólares em reservas internacionais e uma das dividas mais baixas do planeta com relação ao PIB entre as 20 maiores economias.
– Consegue ser…
– E pensar…
– Tão pequeno!
– Ah se a Embraer fosse portuguesa…– concluiu Joaquim – pontuando a discussão com um gole que levou até a última gota de vinho e colocando, decisivamente, quase que de forma abrupta, a taça vazia sobre o pano da mesa – e então, pá, vamos embora ou mudamos de assunto?
A essa altura o nosso capixaba, já tendo pago a conta, não se aguentando mais de curiosidade, decide aproximar–se da mesa, e com a capa ao ombro, pendurada no dedo, já de saída, pergunta de sopetão, arriscando–se a levar um chega pra lá ou uma má resposta dos gajos:
– Os senhores vão me desculpar, mas antes de tomarem essa decisão, posso saber como entendem tanto de tudo isso?
– Porque somos técnicos aeronáuticos, ó brazuca! Trabalhamos para uma subsdiária da Embraer daqui de Portugal, em Évora, e viemos passar o final de semana.