Parlamento de Israel legitima apartheid como interesse nacional
Não há surpresa na adoção da Lei Básica “Estado-Nação” pelo Parlamento de Israel, nesta quinta-feira (19). Mais importante nas manchetes do dia teria sido falar de continuidade, mas isto não seria fato noticioso.
Por Moara Crivelente*
Publicado 20/07/2018 17:22
Data pelo menos do estabelecimento do Estado de Israel, há 70 anos, o debate em que se incluem perspectivas ditas modernizadoras, ou segundo as quais uma democracia radical deve prescindir do texto constitucional. Neste argumento liderava um dos fundadores do Estado de Israel e seu primeiro premiê, David Ben-Gurion. Assim se desenvolvia a discussão sobre a identidade judaica moderna e sobre a democracia direta, em contexto de colonização, massacre, despojo e expulsão da população palestina. Como se sabe, até hoje o país não tem uma Constituição unificada; o conjunto de Leis Básicas conforma uma espécie de corpo constitucional que codifica a estrutura governamental e os direitos civis.
Shlomo Aronson, em artigo de 1998 na revista Israel Studies, analisa a posição de Ben-Gurion (então do partido de centro-esquerda Mapai, integrado ao atual Partido do Trabalho) como a defesa de um renascimento cultural e de reabilitação do comportamento político judaico, uma busca por organização e unidade influenciada por um sistema britânico. Segundo Nir Kedar, em artigo de 2013 no Journal of Modern Jewish Studies, ele temia que a discussão sobre o conteúdo de uma constituição se convertesse numa “polêmica cultural que desviaria a sociedade israelense da realização do sionismo”, ou que a disputa se tornasse um “veículo para discussões ideológicas e culturais sobre a natureza e o caráter do povo judeu e do estado judeu.”
Preparando o terreno para a anexação
Parece que evitar a consolidação de uma Constituição não dissipou a polêmica. Na lei adotada na quinta, a nação, coerente com a história do colonialismo, vai sendo definida com base em negação, em opressão, ainda que apresentada em sentenças positivas. O que fica na essência é aquilo que ela não vai contemplar: está excluído o não-judeu. Assim, a lei torna constitucional o que já há tempos funciona na prática e em normas de outros níveis: o apartheid. Para alguns críticos, o esforço serve para preparar as condições para uma “solução de Estado único”, com a legitimação final da anexação da Palestina, garantindo os privilégios da população judaica.
A proposta de Lei Básica “Israel como Estado-Nação do Povo Judeu” é discutida há aproximadamente cinco anos. Em maio de 2017, avançou pela Comissão Ministerial de Legislação. O ministro do Turismo Yariv Levin, que a presidia interinamente, não entendia como é que tal lei ainda não havia sido adotada, afinal, seu “simples objetivo é proteger o estatuto de Israel como o estado do povo judeu.” De fato, o que surpreende é mesmo a demora na sua adoção, considerando-se a prática.
Mas a discussão foi deveras turbulenta não só pela oposição no Parlamento a tal medida, como também devido à preocupação com a sua forma, com o procedimento e com a percepção internacional, com que até mesmo o presidente Reuven Rivlin, membro do mesmo partido do premiê Benjamin Netanyahu, Likud, demonstrou-se preocupado. Aliás, a disputa foi intensa, ou assim foi noticiada, entre as forças da direita, longe de unificada. Por exemplo, o ministro da Defesa Avigdor Lieberman, conhecido extremista, se opôs à proposta em 2017 por considerar que Israel caminharia para um estado governado pela lei religiosa judaica, referindo-se à proposta separada segundo a qual os tribunais deliberariam à luz da lei judaica caso não houvesse legislação ou precedente legal claro.
Netanyahu tornou a adoção da lei uma prioridade, tendo inaugurado a exigência nunca antes feita por outros líderes israelenses de que os palestinos reconheçam Israel como “Estado Judeu” durante mais um período de negociações frustradas que se estendeu entre 2013 e 2014, sucedida pela mais fatal e devastadora das recentes ofensivas contra a Faixa de Gaza, em julho e agosto daquele ano.
No ano passado, o parlamentar Avi Dichter do Likud, promotor da proposta, defendeu que a adoção da lei significaria “um grande passo no estabelecimento da nossa identidade”, destacou então o diário israelense Ha’aretz. Também de acordo com o Ha’aretz, a chauvinista ministra da Justiça Ayelet Shaked defendeu a proposta como passo necessário para o estabelecimento de Israel como “estado judeu e democrático”, enquanto Zehava Gal-On, a então líder do partido Meretz, criticou a tentativa como uma “declaração de guerra contra os cidadãos árabes de Israel e contra Israel como uma sociedade democrática e governada adequadamente”.
Noticiado pelo portal eletrônico do Partido Comunista de Israel, um protesto massivo no sábado (14) reuniu sete mil pessoas, inclusive parlamentares dos partidos Hadash e Meretz, em Tel-Aviv. Em uma declaração conjunta, os participantes afirmaram que a lei “tornará o racismo, a discriminação e a segregação uma parte irreversível das nossas vidas. Mais do que isso, o racismo e a discriminação estão se tornando desejáveis e essenciais no Estado de Israel. A Lei do Estado-Nação trará a exclusão e os prejuízos das minorias aos níveis aterradores que nunca experimentamos. Nossa posição é clara: todos os cidadãos, todos, são iguais.”
As continuidades do apartheid constitucional
A população palestina já atinge entre 20 e 22% do total de quase nove milhões cidadãos de Israel. Através da ocupação militar estabelecida há 51 anos, a anexação de facto da maior parte da Palestina e a sua colonização contínua, Israel também governa direta ou indiretamente a vida dos quase cinco milhões de palestinos residentes nos bantustões que conformam a Cisjordânia, Jerusalém Oriental e a Faixa de Gaza e dita ainda o destino de milhões de refugiados: o do exílio forçado permanente.
Aí está, para alguns, o temor demográfico com que tantos fanáticos entre a liderança israelense consideram necessário garantir, com redundância, os privilégios coloniais de uma população que, no momento em que se tornar minoria, se lograr finalmente concluir sua empreitada anexionista, continuará a garanti-los com o apartheid.
Alguns dos pontos de continuidade plasmados na lei têm recebido ênfase: “a realização do direito à autodeterminação nacional em Israel é exclusiva ao povo judeu”; “o estado vê o desenvolvimento da colonização judaica como um valor nacional e agirá para encorajar e promover seu estabelecimento e sua consolidação”; e, claro, uma “Jerusalém unificada” é a capital de Israel e o hebraico, sua língua oficial —destituindo o árabe do estatuto de idioma oficial para atribuir-lhe um “estatuto especial”.
Aliás, o segundo ponto resultou de uma das duas revisões fundamentais, substituindo uma proposição ainda mais evidente da segregação na natureza dessa lei. De acordo com uma nota de imprensa do Parlamento israelense e com as denúncias acumuladas ao longo do debate, a cláusula original permitiria que um grupo religioso proibisse outro de viver em sua comunidade.
Ora, nada disso é empreitada nova. Tampouco a prática da legalização do racismo e da arbitrariedade é novidade em Israel, por mais paradoxal que ela pareça para quem espera mais de uma “democracia moderna”. Desde que estabelecido o Estado de Israel tal prática é patente, a começar pelos poderes de emergência com que os colonizadores britânicos controlaram a Palestina e que Israel herdou, incorporando-os paulatinamente ao seu conjunto normativo através, precisamente, da adoção de leis. Vejamos:
1) “O árabe nunca foi língua oficial em Israel”, argumenta a colunista do Ha’aretz Janan Bsoul, apesar do status ter sido reconhecido até a adoção da nova Lei Básica. Sua posição inferior relativamente ao hebraico sempre foi denunciada por cidadãos árabes de Israel e pesquisadores.
2) Precisamente sob a retórica de “valores nacionais” o Estado de Israel encoraja há décadas a colonização na Palestina ocupada com incentivos de vários tipos: financeiros, políticos, securitários, de infraestrutura —segregada, diga-se— e jurídicos, legalizado inclusive “assentamentos” considerados irregulares pelo próprio estado. Não é à tôa que os colonos israelenses na Palestina são estimados em 600 mil em colônias já da dimensão de “cidades”, usufruindo de infraestrutura, acesso à água e terras agricultáveis expropriadas de palestinos incomparavelmente melhores ao do restante da população, palestina.
3) À total revelia do dito “consenso internacional” sobre a questão e do próprio direito internacional —que já parece um ruído para a liderança de Israel, usado apenas para legitimar suas práticas na perspectiva de seus aliados— Jerusalém foi “unificada” durante a ocupação do território 1967 e, por lei, em 1980, com a Lei Básica “Jerusalém, capital de Israel”. Muito antes, como se pode ver, da transferência unilateral da Embaixada dos EUA de Tel-Aviv para Jerusalém, rechaçada por aliados europeus, mas emulada por outros, como a Guatemala.
A Lei Básica aprovada nesta quinta sofreu oposição de forças progressistas e passou por grande discussão sematológica, sobre procedimentos e sobre a reação internacional. Mas imprime em texto constitucional o que já estava evidente na prática e em outras normas: o racismo da narrativa hegemônica sobre a nação —como discutem Shlomo Sand, Ilan Pappé e outros historiadores israelenses citados com frequência— e a defesa da ocupação e da colonização da Palestina.
A codificação de tais propósitos em nível tão elevado expõe ainda mais a natureza dessa política. Que se desmonte assim a farsa e a pesada campanha montada pelos promotores da ilusão sobre Israel segundo a qual o seu é um regime democrático, e não um apartheid, farsa com que o interlocutor é conivente. Afinal, não é ingenuidade ou displicência o que faz com que os EUA e as potências europeias negligenciem o apartheid e até combatam sua identificação.