Publicado 26/01/2018 19:32
Sua morte no último dia 23, com assombrosos 103 anos, encerra a aventura singular do inventor da “antipoesia”, menos um gênero literário do que uma postura de independência radical perante a literatura e a vida. “A contradição é um dos meus métodos de trabalho”, ele dizia, à guisa de antidefinição. “Sou um cenário no qual aparece toda sorte de personagens”.
Em oito décadas de carreira, a partir da estreia em 1937, Parra se desdobrou em inúmeros personagens. Em seu livro mais célebre, “Poemas e antipoemas” (1954), foi um professor neurastênico que queria riscar todo lirismo da poesia para reescrever a história humana, mas falhava, porque, afinal, “a vida não tem sentido”. Em “Sermões e prédicas do Cristo de Elqui” (1977), foi um profeta andarilho que vagava pelo Chile de Pinochet interpelando o absurdo da ditadura (“Aqui não se respeita nem a lei da selva!”). Foi uma esfinge política, atacado ora pela direita, por sua proximidade com União Soviética e Cuba, ora pela esquerda, por se recusar a romper relações com os EUA – e atacou capitalistas e comunistas com o mesmo afinco ao se tornar adepto de primeira hora do movimento ambientalista, ainda nos anos 1970. Foi, acima de tudo, o antipoeta, encarnação mais impura das contradições que animavam sua obra: “sacerdote que não crê em nada”, “narciso que ama todo mundo”, “bailarino à beira do abismo”, “vagabundo que ri de tudo, até da velhice e da morte”.
Em maio de 2014, encontrei alguns desses personagens quando entrevistei Parra no vilarejo de Las Cruces, no litoral chileno, a 100 km de Santiago, onde ele vivia há mais de uma década, numa casa com a palavra “antipoesia” pichada na porta. Às vésperas de completar 100 anos, conservava a memória prodigiosa e a lucidez irreverente. Depois de longas tratativas para a visita, que envolveram uma desastrada abordagem por meio de bilhetes entregues à sua gentil faxineira, Parra me recebeu declamando Pessoa, em bom português: “Todas as cartas de amor são ridículas/ se não fossem ridículas, não seriam cartas de amor”. Para minha surpresa, emendou com a abertura de “No meio do caminho”, de Drummond.
Eu havia sido advertido de que Parra detestava entrevistas, mas gostava de conversar, e que o melhor a fazer, portanto, era se deixar levar por seu raciocínio vertiginoso. Quando fiz uma pergunta mais direta sobre sua relação com a literatura brasileira, quase fui posto fora da casa.
Mas ele logo impôs seu ritmo. Sentado no sofá, de frente para uma grande janela com vista para o Oceano Pacífico, passeou por seus assuntos preferidos, seus vários personagens. Mostrou velhos livros de matemática e relembrou os tempos de professor. Contou que havia abandonado a poesia para se dedicar a anotar frases de crianças. Declamou Shakespeare, de quem fez uma elogiada tradução de “Rei Lear” com o parriano título “Lear, rei & mendigo” — mas a versão de Hamlet da qual falou com empolgação parece ter ficado inacabada. Colocou para tocar um disco de cueca, a música popular chilena que ele e a irmã, a cantora e compositora Violeta Parra, tanto amavam (“é a música do submundo”, divertiu-se, “prostitutas e ladrões!”). Animado, improvisou uma pequena apresentação, batucando na mesa da sala, e me convidou a acompanhá-lo.
Esse talvez seja também um caminho para ler Parra: deixar-se levar por seu ritmo desconcertante, sem exigir que as contradições se resolvam. E talvez por isso sua figura tenha causado tanta controvérsia durante a Guerra Fria, quando a polarização política não deixava espaço para o humor feroz e iconoclasta de seus poemas, como aquele em que uma multidão carrega um cartaz com os dizeres “Esquerda e direita unidas jamais serão vencidas”. Nem para a ironia amarga dos versos que escreveu sobre o Chile, mas que são um epitáfio para a história de violência e pilhagem de toda a América Latina: “Acreditamos ser um país/ e a verdade é que somos apenas paisagem”. Não é música fácil de acompanhar. Mas, como disse Roberto Bolaño, o escritor que mais se dedicou a segui-la, a obra de Parra sobreviverá, entre outros motivos, por sua disposição incansável para colocar em prática uma das máximas aspirações da poesia de todos os tempos: bagunçar a cabeça do público.