Publicado 23/10/2017 15:19
Antônia Melo da Silva (Piripiri, Piauí, 1949) não é um rosto novo na luta pelos direitos humanos e ambientais. Está há mais de duas décadas na linha de frente de uma batalha que não está disposta a perder; a que ela — e centenas, milhares como ela — mantêm contra as barragens de Belo Monte, às margens do rio Xingu, no Estado brasileiro do Pará, que forçou 30.000 pessoas a abandonar suas terras. Sua tenacidade e coragem lhe valeram ser reconhecida, aos 68 anos, pelo prêmio anual da Fundação Alexander Soros, uma organização destinada a promover os direitos civis, a justiça social e a educação mediante a concessão de subvenções a movimentos que se destacam nesse trabalho. Antônia recebeu o prêmio em 10 de outubro em Nova York, representando o Movimento Xingu Vivo para Sempre, a associação que ela mesma fundou e com a qual tornou sua causa conhecida no mundo todo.
O assassinato de ativistas ambientais se tornou rotina — 200 morreram apenas em 2016 em todo o mundo — e a própria Antônia foi ameaçada por pistoleiros em mais de uma ocasião, mas ela continua dedicada a uma luta titânica. Até a Nova York, essa cidade de arranha-céus e concreto armado, levou um pedacinho do Pará, a região que tanto amor e tristezas lhe causa: envolta em colares de conchas, pedras, sementes de coco e açaí, pulseiras e exibindo cabelos selvagemente cacheados, Antônia é mais do que nunca uma guerreira amazônica. Diz em uma entrevista por videoconferência que não sente medo. “Sei que estou fazendo o certo; luto em defesa dos que menos podem se defender, pelos direitos humanos, pela vida. É um compromisso que está dentro de mim e que me move a não desistir”, afirma. Para ela, é importante saber que não está só, que há muita gente a seu lado que lhe dá força e coragem para continuar.
A ativista dedicou sua vida a batalhar contra uma das 500 barragens que avançam sobre a Amazônia e a ameaçam de morte. “Sou filha de camponeses, desde criança aprendi com meus pais o valor da luta pela terra, por nossos direitos”, afirma com orgulho. Militou desde cedo na defesa das políticas públicas, e nos anos oitenta se uniu à causa dos indígenas afetados pela incipiente construção da barragem de Belo Monte. Nessa década os povos originários conseguiram parar o projeto, então nos anos noventa se concentrou mais nos direitos das mulheres e no acesso à saúde. Quando o ex-presidente Lula chegou ao poder e esse projeto voltou a andar em 2003, as comunidades se mobilizaram e criaram o movimento Xingu Vivo para Sempre, com Antônia à frente.
Críticos de Belo Monte definiram a hidrelétrica de várias formas, sendo “mostruário de crimes ambientais” uma das mais assertivas. O projeto, pensado na ditadura e executado na democracia, trata da terceira maior hidrelétrica do planeta, depois da de Três Gargantas, na China, e da de Itaipu, na fronteira entre Paraguai e Brasil. Incluída no Plano de Aceleração Econômica da era de Lula e Dilma Rousseff, este megaprojeto inundou 500 quilômetros quadrados de selva amazônica e desalojou milhares de pessoas que perderam seu modo tradicional de vida, sua casa, sua alimentação, sua segurança e sua felicidade. “Foi feito sem consultar a sociedade local nem os povos indígenas”, denuncia, incansável.
As consequências são bem palpáveis e, para a ativista, “terríveis e irreversíveis”. Atualmente, a usina hidrelétrica está parcialmente em operação, com seis de suas 18 turbinas funcionando há um ano. “O primeiro impacto foi a divisão dos povos, uma estratégia da empresa [Norte Energia, um consórcio com participação pública] e do Governo para fragilizar os povos, que foram divididos e passaram a brigar uns com os outros”, afirma. Ela se refere às compensações econômicas oferecidas aos afetados. “Nunca tinham tido acesso a dinheiro, eram 30.000 reais por comunidade para enfrentar as mudanças que iam sofrer, mas esse tipo de ação foi uma estratégia para dividir: foi oferecido a algo entre 19 e 40 comunidades”, explica. Quem recebia os fundos eram os caciques, então houve quem tenha decidido se separar de sua comunidade e formar outra para se tornar chefe e receber o pagamento. “Isso fragmentou a luta dos povos”, afirma.
Os outros grandes impactos foram a invasão dos territórios ancestrais e as doenças como diabetes, hipertensão e pneumonia; entre as crianças, problemas intestinais como diarreia e desnutrição. “Tudo está muito vinculado com a mudança de dieta; se não se pode obter alimento de nossos rios e hortas, temos que comer comidas industrializadas e processadas.” O relato de Antônia coincide com os achados de um relatório do Instituto Socioambiental Brasileiro: entre 2010 e 2012, a desnutrição infantil aumentou 127% afetando um quarto das crianças da região e a demanda por atenção médica tinha aumentado 2000%, entre outros dados.
Antônia Melo da Silva sabe bem do que fala, pois ela e sua família estiveram entre os 30.000 desalojados à força. Em 11 de setembro de 2015 perdia a casa onde tinha criado seus filhos e netos, onde tinha plantado sementes já transformadas em árvores, trazidas de sua cidade natal. Um refúgio que não era só dela, mas de todos os vizinhos e afetados pela megainfraestrutura. Bem do lado da própria selva, a ele se recorria em busca de conselho, de ajuda, de força, em busca de quem ouvisse, abraçasse e estimulasse a não desfalecer. O baluarte da resistência. Ainda chora quando se lembra: “Minha experiência foi de uma grande violência, de muito sofrimento, não desejo isso para ninguém. Não queria sair da minha casa, não estava à venda, não havia nenhuma oferta minha”, soluça. Agora vive longe de onde se criou e não se acostuma a seu novo local, um bairro distante onde sequer tem acesso a infraestrutura, como milhares de famílias. “Me sinto um peixe fora d’água.” Em entrevista ao EL PAÍS em 2015, a Norte Energia assegurou, entre outros pontos, que "sempre procurou manter as famílias e os grupos sociais de uma determinada localidade num mesmo bairro que recebeu os moradores de áreas de riscos".
Seja como for, a guerra agora é para conseguir que haja reparação aos afetados. “Demandamos o cumprimento do que se contemplava nas condições ambientais e sociais para a construção do projeto”, afirma a ativista. “Em uma delas se dizia que as novas casas seriam de três dimensões diferentes”, segundo o tamanho das famílias, e também que contariam com os serviços básicos mínimos, como escolas e hospitais.” Cinco anos depois, nada é como se prometeu. “A qualidade das moradias é muito ruim, estão caindo, têm rachaduras”, afirma. Também exigem a melhora das condições de vida de Altamira, a cidade onde agora mora a ativista e seus parentes. Foi muito afetada pelo aumento da população que o projeto trouxe e não houve os investimentos devidos em serviços: “A população pede água. Também não há saneamento. O Governo e a empresa têm uma dívida imensa, impagável, com a população do Xingu e de Altamira.”
O descumprimento desses requisitos deu lugar a duas importantes decisões judiciais federais. Em abril, a Justiça suspendeu todas as atividades da hidrelétrica até que a empresa proporcionasse às comunidades um sistema adequado de eliminação das águas residuais. Em 13 de setembro passado, outro tribunal cancelou a licença ambiental de Belo Monte devido a irregularidades das moradias das comunidades reassentadas. A empresa, no entanto, não parou a construção, e atualmente está sob o risco de sanções financeiras e até de intervenção policial para forçar o cumprimento. Ao mesmo tempo, o esquema de corrupção que vem sendo revelado no Brasil nos últimos tempos chegou a Belo Monte: o consórcio Norte Energia está sendo investigado pelo pagamento de milhões em subornos a partidos políticos.
O prêmio recebido por Antônia Melo da Silva não a devolverá a seu lar perdido, mas é um incentivo. “É um reconhecimento que vai fortalecer a luta de pessoas que foram ameaçadas, que lutam contra o projeto, e para que todos e todas que defendem a justiça ambiental e os direitos humanos saibam que vale a pena continuar”, diz com determinação. Mais ainda agora que um novo atropelo, a mina aberta Belo Sun, ameaça afogar ainda mais a região do Xingu. Ou agora que os ignorados povos ribeirinhos — cujos direitos não são reconhecidos pela Constituição, diferentemente dos indígenas — começam a conseguir que sejam minimamente levados em conta. É aí agora que está a luta. E assim Antônia adverte: “Apesar de tudo que passei durante desses anos, Belo Monte não é um fato consumado, então continuaremos lutando contra o que representa: um modelo destrutivo de desenvolvimento”.