O pensamento vivo de Che meio século depois de sua imortalidade
Alguna gente se muere
Para volver a nacer
Y el que tenga alguna duda
Que se lo pregunte al Che
(Atahualpa Yupanqui)
Há cinquenta anos, em um 9 de outubro como esta segunda-feira, às 13h10, um ranger boliviano sob ordens do governo dos Estados Unidos executou a sangue frio Ernesto Guevara de La Serna, o Che.
Por Alexandre Ganan de Brites Figueiredo*
Publicado 09/10/2017 09:12
Ali era morto um dos maiores inimigos dos velhos e novos colonialismos, comandante de uma revolução que, a despeito de qualquer prognóstico de razoabilidade, triunfara em Cuba contra um exército regular e contra a vontade da maior potência militar do planeta. Também ali nascia a figura mítica mais emblemática dos movimentos de libertação na América Latina e em todo o mundo. Quando o carrasco entrou na sala onde ele foi aprisionado ferido, o Che se levantou, olhou nos olhos do seu assassino, que vacilava, e disse: “atire, covarde, que você vai matar um homem”. Essa atitude absolutamente digna diante da morte não foi diferente de como ele viveu sua vida.
Ele percorreu o continente não na condição de turista, mas de interessado nas condições e vida do povo. Viu de perto o regime de exploração imposto aos latino-americanos por companhias estrangeiras apoiadas na cumplicidade de governos locais. Esteve na Guatemala em 1954, quando uma operação organizada pelos EUA derrubou o governo popular e democrático de Jacobo Arbenz, cujo crime fora promover a reforma agrária sem levar em devida consideração os interesses da United Fruit Co. De lá foi para o México, onde conheceu os revolucionários cubanos. Concluiu que “era preciso parar de chorar e começar a lutar” e atravessou o Caribe na condição de médico do Exército Rebelde organizado por Fidel.
As fronteiras legadas pela colonização e as rivalidades entre elites econômicas nacionais que disputavam e disputam o título de melhor serviçal de Washington não lhe diziam respeito. Che enxergou além dos mapas traçados contra os interesses dos povos: ele viveu na Pátria Grande e vislumbrou um futuro que completaria a obra da revolução de independência. Nascido na Argentina, sentia-se tão cubano como nacional de qualquer país da América Latina, convicção que ele repetiu desde a tribuna das Nações Unidas: “sinto-me tão patriota da América Latina, de qualquer país da América Latina, como o que mais seja e, no momento em que for necessário, estarei disposto a entregar minha vida pela libertação de qualquer um dos países da América Latina, sem pedir nada a ninguém, sem exigir nada, sem explorar ninguém”. De fato, foi assim. Quantos de nós, hoje, ao nos assumirmos latino-americanos e latino-americanistas nos atrevemos a essa coerência?
Em Cuba ele foi o primeiro dos revolucionários promovido a comandante. Foi o Che – que o exército argentino considerou inapto para o serviço militar – o líder da tomada de Santa Clara, após uma dura batalha de três dias contra o exército regular da ditadura de Batista, vitória que levou à queda do regime. A obra em que condensou aquela experiência (A Guerra de Guerrilhas) é uma doutrina militar e revolucionária forjada no calor dos combates, como tudo o que ele escreveu.
Che nunca foi um pensador de gabinete. O compromisso que ele exigia de seus companheiros e praticava com disciplina era o de unir teoria e prática. Foi assim como médico, chefe militar, dirigente partidário, representante de Cuba em dezenas de missões diplomáticas, presidente do Banco Nacional, do Instituto de Reforma Agrária e ministro da Indústria. A teoria só cresceria em constante confronto dialético com a realidade do mundo. Mais de uma vez ele se expressou contra o dogmatismo e o sectarismo, polemizando inclusive dentro do partido cubano. Em um de seus questionamentos, por exemplo, ele critica a visão de Marx sobre Bolívar (bastante negativa). Como Lenin, Che entendia a teoria como um guia para a ação, não como um manual de instruções.
A compilação de seus textos e apontamentos de estudos publicada em 2012 com o título “Apuntes Filosoficos” revela um estudioso que não admitia fronteiras para o pensamento. Intelectual brilhante, Che lia muito desde jovem. Nos “Apuntes” há comentários que vão dos filósofos gregos a Confúcio, de Tomás de Aquino à filosofia política inglesa e francesa, de Jules Verne e H. G. Wells a Pablo Neruda. Ele leu com atenção “A Crítica da Razão Pura”, de Kant, e “O Crepúsculo dos Ídolos”, de Nietzche, passando ainda por comentários sobre as obras de Freud, Bertrand Russel, dentre outros. E, claro, leu com interesse a tradição marxista e revolucionária. Na sua busca por colocar para si como próprios os grandes problemas da humanidade nunca houve sectarismo intelectual. Ele insistia no estudo, sempre integrado à vida, como uma das tarefas dos revolucionários. Mesmo na selva boliviana, quando o isolamento da guerrilha o colocou em situações muito difíceis, o Che levava consigo uma pesada mochila cheia de livros.
Após a tomada do poder, quando entendeu que a revolução estava se consolidando, ele ofereceu a nós outra demonstração da coerência dos que não temem entregar a pele pelas verdades que defendem: renunciou a todos os postos no estado cubano e foi para o Congo colaborar na luta de libertação. Naquele contexto, Che considerava ser necessário difundir a resistência anti-imperialista por todos os continentes submetidos a regimes coloniais ou neocoloniais, abrindo várias frentes de luta. Para ele, solidariedade não é algo que se preste com declarações de apoio, mas com atos: seu internacionalismo era consequente. Com a mesma coerência inabalável, ele foi para a Bolívia organizar o que, segundo o plano traçado, deveria ter sido o núcleo de um exército de libertação que se irradiaria por toda a América do Sul.
Toda essa trajetória foi emoldurada por uma profunda ética revolucionária e humanista. Ao contrário do que costuma acontecer, Che praticou com rigor o que pregava. Todas as recomendações que deu aos jovens comunistas, em célebre discurso, ele próprio seguiu: manter um elevado senso de honra e dignidade, assumir as responsabilidades ante os demais, revoltar-se contra qualquer injustiça, consolidar um espírito cotidiano de sacrifício e fazer a guerra aberta contra os formalismos que engessam os processos de transformação. Ele dizia que o revolucionário deve ser um exemplo vivo. Por isso, a teoria de um comunista é, segundo o Che, indissociável de uma prática de vida coerente.
Sua ênfase no caráter subjetivo, no elemento pessoal e consciente do processo revolucionário, se desdobrava em uma concepção de comunismo que ia além das condições materiais e objetivas da existência. O comunismo, ele escreveu em ”O Socialismo e o Homem em Cuba”, é a apropriação pela humanidade de seu ser social e isso não aconteceria somente como resultado do desenvolvimento das forças produtivas. Em uma entrevista concedida em Argel a Jean Daniel, Che enfatiza essa posição: “Lutamos contra a miséria, mas ao mesmo tempo lutamos contra a alienação (…) se o comunismo descuida dos fatos da consciência ele pode ser um método de repartição, mas não será uma moral revolucionária”. Não se tratava apenas de distribuir socialmente os frutos do trabalho social, mas de realizar uma transformação da consciência, sem a qual o progresso material seria inócuo. O quanto esse legado tem a nos dizer hoje, diante da crise atual que vivemos?
Por tudo isso, o nosso Che – digno, ético, latino-americanista, antiimperialista, profundamente movido por um senso de justiça que levou consigo até as últimas consequências – não morreu em La Higuera, às 13h10 de um dia como hoje. Seus inimigos, que ainda o temem (e como causa medo um inimigo morto que continua vivo!), tentaram domesticar sua memória, torná-lo um produto publicitário vazio de sentido, agredi-lo com infâmias. Ainda assim, o Che vive e continua nos ensinando. Nesse mundo de cada vez maior concentração de riqueza, de populações inteiras de refugiados vitimadas de um lado por guerras de rapina e, de outro, pelo racismo e preconceito, ecoam ainda as verdades que ele não temia lançar ao rosto do mundo: “a ‘civilização ocidental’ esconde sob sua vistosa fachada um quadro de hienas e chacais”.
Hoje, aos cinquenta anos de sua imortalidade, cabem ao Che as palavras que disse certa vez a crianças cubanas sobre José Martí, que no século 19 abriu as perspectivas da nossa liberdade: “estejam certos que o revivem cada vez que pensam nele e que o revivem ainda mais cada vez que atuam como ele queria que atuassem”. Seguir o exemplo vivo do Che é a melhor homenagem que podemos lhe prestar. Na verdade, é a única que ele consideraria sincera e coerente.