Publicado 09/12/2016 19:23
Ao longo dos últimos meses os meios de comunicação passaram a utilizar, de forma mais recorrente, uma analogia originária da meteorologia para descrever as difíceis condições por que passa a economia brasileira. Na verdade, o movimento de empréstimo da noção de “tempestade perfeita” para explicar os movimentos no âmbito da economia já vinha sendo experimentado na imprensa em outros países ao longo desse início de milênio. Foi assim no caso da eclosão da crise econômica e financeira em 2008 nos Estados Unidos e sua irradiação para o espaço europeu. A analogia também foi largamente usada no caso mais recente da decisão da Grã Bretanha de sair da União Europeia, o chamado Brexit.
De forma geral, a imagem se revela bastante adequada para explicar momentos e conjunturas em que uma série de fatores se combinam para agravar uma tendência já crítica em sua própria essência. O quadro mais recente da economia e da sociedade brasileiras se encaixa quase como uma luva nesse modelo explicativo. Alguns chamam de “crise geral”, outros preferem “crise sistêmica”, outros ainda ficam com a ideia de “combinação de crises”. Mas o fato concreto é que atravessamos um momento de extrema dificuldade, onde a coincidência e a retroalimentação entre os diferentes fatores só fazem aprofundar a gravidade da crise.
Primeiros sinais vêm de longe
As primeiras sinalizações de “anormalidade” na dinâmica econômica remontam a 2014, quando as notícias da área fiscal já apontavam para problemas no equacionamento das contas públicas tal como vinha sendo feita desde 2003. No entanto, desde lá Dilma havia sido convencida de que a solução para tal descompasso pontual entre receitas e despesas seria um ajuste de viés conservador, com metas de redução de gastos na área social e desonerações tributárias a rodo para o capital sem controle nem contrapartida. Com a política monetária mantendo a SELIC na estratosfera, não havia meio de se promover a recuperação dos investimentos.
Com a vitória nas eleições de outubro, por alguns dias se manteve aceso o sonho do coração valente, mas que rapidamente se derreteu no tristemente conhecido episódio do estelionato eleitoral. A presidenta reeleita chama Joaquim Levy para comandar a área econômica e passa chamar de seu o programa de governo da turma que havia sido derrotada nas eleições. O austericídio se consolida como estratégia oficial para superar as dificuldades da economia e com isso os resultados vão no sentido contrário, tal como nove entre dez economistas sinceros havíamos alertado desde o início.
Os cortes no orçamento pela lógica da armadilha do superávit primário esmagam qualquer possibilidade de recuperação da atividade econômica. A inflação não cede, a SELIC continua nas alturas, os gastos orçamentários com pagamento de juros da dívida atingem a cifra de R$ 540 bilhões em 12 meses. A compressão das despesas se mantém nas áreas sociais e nos investimentos públicos. A recessão começa a se demonstrar nas estatísticas do IBGE e o desemprego vai campeando por todas as regiões e setores.
Uma vez consolidado o golpeachment, a mudança de governo reforça ainda mais o garrote do ajuste conservador, com a entrega do comando da economia de Temer ao candidato preferido de Lula para 2015: Henrique Meirelles. O banco Itáu se vê representado na presidência do Banco Central, na figura de Ilan Goldfajn. A direção geral do ajuste não se altera em termos essenciais. A proposta de corte de gastos gestada ainda sob o comando de Dilma é recuperada e “aperfeiçoada”, transformando-se na versão ainda mais maldosa da ex PEC 241, atual PEC 55.
Crise: econômica, política, social, institucional
Em paralelo a toda esse festival de incompetências e perversidades das sucessivas equipes econômicas, a crise política vai ganhando contornos igualmente dramáticos. Esse rolo compressor vem ainda da época da aprovação do impeachment, que se efetuou sem que nenhuma prova de crime de responsabilidade tenha sido apresentada. Os exageros jurídicos e policiais envolvidos na Operação Lava Jato contribuem para contaminar a atmosfera de casuísmo das decisões adotadas em todas as esferas e poderes da administração pública. Trata-se da seletividade do Poder Judiciário, do Ministério Público e das próprias forças policiais no trato das manifestações públicas.
A crise institucional adquire cores dramáticas. Ela se expressa nas disputas duras entre representantes dos Poderes da República, com interferências quase cotidianas de uns nas esferas de outros. A crise federativa também se agrava a cada instante, com decretação de calamidade financeira em alguns Estados e as dificuldades que serão ainda mais crescentes nos municípios, que estarão sob novo comando a partir do início do ano que vem. Em todas as situações, a crise econômica se confunde e se entrelaça à crise política.
O aprofundamento e persistência da conjuntura recessiva se articulam com redução de despesas na área social, acentuando ainda mais a gravidade do quadro geral, com desemprego e aumento da desassistência social. A fadinha mágica das expectativas não cumpre o prometido de que bastaria derrubar Dilma e colocar o financismo em estado puro no comando da economia. Faltou apenas alertar aos mais desavisados que a retomada do crescimento depende muito mais de outros fatores objetivos do que unicamente da subjetividade otimista do “agora vai!”.
O arco de alianças apoiando o golpe desde o início vai sendo reduzido aos poucos e os sucessivos escândalos de corrupção de personagens nucleares do governo Temer também operam como complicadores para se atingir algum tipo de estabilidade tão desejada pelos putschistas. Os conflitos entre os três Poderes da República vão sendo acentuados e a agenda política encontra dificuldades para evoluir como imaginada pelo Palácio do Planalto.
Ao que tudo parece indicar, aos poucos vai caindo a ficha para vários setores empresariais de que houve mesmo estelionato golpeachmental. Prometeram terreno na Lua e não estão conseguindo entregar a mercadoria. O pato da FIESP começa se sentir incomodado. Os manifestantes direitistas de verde amarelo encontram-se igualmente órfãos e procuram esconder as fotos que tiraram sorridentes ao lado de Cunha, Temer, Renan i tutti quanti. Agora apegam-se à figura de um juiz de primeira instância, Sergio Moro, já que o antes idolatrado Joaquim Barbosa não compartilha mais de seus projetos marcados pela intolerância. Até mesmo o jurista Helio Bicudo, um fundador do PT que assinou o pedido de impeachment de Dilma, agora gostaria de assinar um processo semelhante para afastar Temer.
Saída para crise: recuperar protagonismo do Estado
O fato inconteste é que não há expectativa econômica que se reverta apenas com esperanças em suposta competência da equipe do financismo. A experiência internacional está fazendo autocrítica das práticas de ajustes austericidas perpetrados em outros países. Não há forma de saída da crise sem que seja recuperado o protagonismo do setor público. Para se obter crescimento da economia no quadro atual, é essencial a implementação de medidas anticíclicas. E isso significa reconhecer que o setor privado só virá atrás de novos investimentos depois que o Estado tome para si a responsabilidade de promover a expansão da formação bruta de capital fixo.
Apesar da gravidade da situação e dos enormes estragos já provocados, é sim possível sair da crise. Mas isso exige uma mudança profunda no diagnóstico e nas soluções adotadas. Ao contrário do austericídio, o Brasil precisa de elevação dos gastos públicos, como sinalizador de que novos tempos estão por vir. O capital privado não vai realizar novos investimentos apenas por expectativas positivas reveladas pela pesquisa Sensus do Banco Central. Esse tipo de decisão do empresariado se faz com base em cálculos de retorno econômico-financeiro sobre determinado volume de capital investido. Com os juros ainda nas esferas, é mais cauteloso e menos arriscado ficar recebendo rentabilidade do capital parasita do que iniciar um novo empreendimento.
Para aumentar o parque industrial e produtivo, é necessário ter em mente um mercado consumidor em crescimento. A triste realidade social aponta para salários em baixa e desemprego em alta. Além disso, a recessão vem se arrastando há quase 2 anos e a capacidade produtiva instalada é altamente ociosa. Recuperar níveis de atividade de anos passados pode ser feito apenas com aumento dos turnos, sem que seja necessário promover a expansão física das plantas. A tarefa é muito mais complexa do que os colunistas econômicos dos grandes meios de comunicação procuram nos tranquilizar depois do golpe.
Por um programa mínimo comum para o crescimento
O quadro atual de instabilidade política, em que nenhum dos polos consegue força para impor seu projeto ao conjunto da sociedade, só tem promovido a deterioração de nossa economia. Cada novo dia sofrido que se perde nesse contexto marcado pela indefinição e pela incerteza atrasa ainda mais a capacidade de aglutinar forças em torno de uma saída para crise. Empresas falem e fecham. Capacidade econômica desaparece no esteio da depressão.
A continuidade dessa inércia está estraçalhando o país e comprometendo ainda mais a capacidade de recuperação no futuro. Apenas seguir nessa toada, no aguardo mágico pelo resultado das eleições em 2018, tem o sentido da irresponsabilidade para com a Nação e com as novas gerações. O momento exige uma reavaliação por parte das principais lideranças políticas não diretamente envolvidas no rame-rame da política de curto prazo.
Sem um amplo acordo político voltado para a superação da crise e pela retomada do crescimento, o Brasil continuará nessa trilha que combina dramática e perigosamente o simbolismo do “à beira do abismo” com imagem inatingível do “fundo do poço”. Para escapar da tempestade perfeita não basta aguardar a benevolência dos céus por uma meteorologia mais indulgente. É essencial a articulação e a convergência de lideranças políticas em torno de um programa mínimo comum que evite a continuidade do desastre.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e Especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal.