Justiça de Goiás reitera direito de manifestação feminista
Em tempos em que a ameaça de retrocessos paira sobre os direitos das mulheres, a reafirmação de direitos básicos no Sistema de Justiça já seria digno de nota. O teor da decisão, porém, é o que chama atenção por, não só afastar a tentativa de criminalização de manifestações, mas reconhecer a legitimidade e criatividade de um ato promovido no final de 2015 por alunas da Universidade Federal de Goiás com cartazes afirmando:"Tire seus rosários dos meus ovários".
Publicado 30/09/2016 13:03
O diretor da Universidade Federal de Goiás (UFG) denunciou a manifestação das alunas para as autoridades policiais de Goiânia “por entender que havia nesta manifestação vilipêndio público a objeto de culto religioso”.
A partir de então, as alunas passaram a ser intimadas a comparecer à Delegacia de Polícia em diversos dias – o que motivou o pedido de um habeas corpus pela professora da Faculdade de Direito da UFG, Bartira Macedo de Miranda Santos, impetrado para garantir que a investigação do fato noticiado pelo diretor da universidade fosse trancada imediatamente.
O juiz de Direito Denival Francisco da Silva não só acolheu o HC no dia 24 de setembro, como afirmou em sua decisão: “O alvoroço que se fez em torno da manifestação, legítima, livre, e que deve ser assegurada, estabelece uma verdadeira confusão inaceitável entre o Estado e a religião. O fato ocorreu numa instituição de ensino público, pública por sua natureza administrativa, com a notícia sendo encaminhada por seu próprio Diretor. Porém, quando a instituição que ensina ciências jurídicas toma essa iniciativa, parece estarmos a um passo do fundamentalismo, pela confusão entre Estado e religião. A laicidade, como marca do Estado Democrático de Direito, foi esquecida”.
Quando o direito de manifestação e pensamento crítico precisa ser reafirmado
A pedido da Agência Patrícia Galvão, a desembargadora do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, Kenarik Boujikian, comentou a decisão do colega de magistratura, considerando-a muito importante no contexto atual.
“Minha grande preocupação é que existe um movimento de criminalização das lutas que se reflete de forma muito clara em relação aos movimentos de mulheres. Começam a pipocar casos dessa natureza em que o direito à manifestação – e principalmente o direito de manifestação das questões relativas aos direitos das mulheres – não é reconhecido.”
Segundo a desembargadora, a decisão resguarda o direito de manifestação livre das mulheres para reivindicação de suas agendas e reforça o direito à liberdade de expressão.
“Esse caso de Goiânia é relevante porque as alunas estavam se manifestando em relação a um direito das mulheres e esse fato foi levado ao conhecimento da autoridade policial por um dirigente da própria universidade. Então, primeiro: elas estavam no espaço da universidade, dentro de um ambiente que é próprio de reflexão; outro problema é a conotação religiosa que se pretende dar a essa questão, uma vez que a laicidade do Estado é fundamental para o Direito e a democracia”, avalia a juíza Kenarik Boujikian.
O cerceamento da manifestação realizada pelas alunas em ambiente universitário chamou atenção do juiz Denival Francisco da Silva, que ao apreciar o HC em Goiás ressaltou em sua decisão: “o que mais espanta é que toda celeuma aconteceu num ambiente acadêmico, de uma Faculdade de Direito, donde se espera o enlevo, inclusive por motivos de ser objeto de estudos, dos direitos e garantias fundamentais. Onde se espera a exaltação dos princípios determinantes do Estado Democrático de Direito”.
De acordo com a decisão do juiz Denival, a mensagem exposta pelas alunas nos cartazes é “de uma notável criatividade poética, não só pela linguagem em rima, mas, sobretudo, pela linguagem metafórica”. A decisão afirma ainda que dizer, impessoalmente, para que retirem rosários dos ovários é a evocação da própria dignidade. “É um pedido para que respeitem suas vontades, suas liberdades, suas opções religiosas, suas escolhas sexuais, suas formas de viverem, seus valores morais, éticos, suas autonomias sobre o próprio corpo. Enfim, um grito de liberdade”, aponta na decisão.
O juiz concedeu a liminar pelo fim da investigação policial em relação à manifestação das alunas, enfatizando que a Constituição Federal, em seu art. 5º, assevera que a livre manifestação do pensamento é uma das modalidades do gênero liberdade. “Nada melhor do que fazê-lo de forma criativa, crítica e em defesa de interesses salutares, sem que isso expresse ofensa a terceiros”, complementa (confira aqui a decisão na íntegra).