Teto constitucional de despesa: irresponsabilidade e autoritarismo
Desde o início do processo de afastamento de Dilma, a direita armada com seu surrado liberalismo econômico aproveita o recuo da esquerda para impor sua ideologia de mais liberdade para o capital e menos estado para o povo.
Por Lécio Morais*
Publicado 02/06/2016 20:31
Enquanto a mídia patrocinava o espetáculo do golpe institucional, o debate sobre o programa do novo governo era negociado dentro das elites, sendo propagandeado pelos economistas e articulistas de sempre.
Porém, tomando a nuvem por Juno, os economistas porta-vozes da nova onda de reformas neoliberais confundem o consenso construído na mídia sobre suas “reformas” com o apoio político e popular necessários para implementá-las em sua integridade e rapidez.
Bastaram duas semanas do governo golpista para aparecerem as primeiras dúvidas quanto à vitoriosa e rápida passagem de suas reformas. Não só por conta dos titubeios da condução política do próprio Temer, mas também pela mediocridade e desqualificação de seu ministério. Mesmo a estrela da equipe econômica, o ministro Meirelles, mostrou-se vago em sua primeira apresentação das iniciativas “reformistas”.
Na apresentação do ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, apresentou-se algumas propostas de mudanças fiscais, mas a ênfase foi para a reforma que inclui na Constituição um teto para a despesa pública anual. Pelo que se pode apreender, a partir de uma primeira fixação do valor do teto constitucional, em valor nominal, congelará para sempre a despesa pública, sujeita apenas a atualização pela inflação do ano anterior.
Tendo sido congelado para sempre em valor nominal, à medida que o PIB cresça, o tamanho relativo da despesa pública cairá nele de forma absoluta. Ao longo do tempo, o Estado ficará cada vez menor na economia. Desta forma, o teto constitucional é mesmo a principal reforma do programa neoliberal do estado mínimo. Será mínimo e cada vez mais mínimo.
Mais do que política, a reforma do teto constitucional é ideológica.
Tem razão o ministro Meirelles em qualificar tal proposta como “a mãe de todas as reformas”. As demais reformas anunciadas como a previdenciária, a tributária, a da política de crédito dos bancos públicos etc. serão apenas anexos a do teto.
Embora a denominada proposta-chave seja de uma radicalidade extrema, a ausência de definição de seu anúncio sobre aspectos fundamentais da mudança demonstrou que está longe, mesmo no debate interno ao governo, os limites políticos que se imporão ao seu desenho final. Por essa razão, ao término a exposição sobre a medida deixou mais dúvidas do que certezas sobre sua plena viabilidade política.
Um golpe dentro do golpe
Do ponto de vista econômico-fiscal, o teto constitucional é uma medida inusitada de extrema rigidez fiscal. Não há exemplo no mundo de país que adote tal regra inflexível de dispêndio como base de sua política fiscal. Não há experiência a se avaliar ou a seguir. É uma irresponsabilidade para com a economia nacional.
Na verdade, estrito senso, não haverá mais política fiscal. Mas apenas uma atividade adequação da execução orçamentária a cada exercício para dá cumprimento ao dispositivo constitucional.
A proposta é uma irresponsabilidade política fruto de uma opção ideológica elitista que desconsidera uma experiência histórica bem-sucedida nos Estados da periferia capitalista como indutor da economia como instrumento de melhorar as condições de vida de seus povos. Um enorme sucesso que se tornou mais evidente e indiscutível no surgimento das novas potências do Leste Asiático.
Apenas tomada em termos econômicos, a fixação de um teto permanente de despesa faria desaparecer o componente fiscal na formação da demanda agregada e na formação da infraestrutura. A política fiscal ficaria inerme diante dos ciclos capitalistas de crescimento e crise, bem como de suas intercorrências de curto prazo.
Um aspecto importante da reforma é que ela demonstra também a natureza antidemocrática de nossas classes dominantes. Transformando o teto em uma disposição constitucional, ele não poderá ser suprimido ou mesmo alterado no futuro, mesmo seja a vontade expressa deuma maioria parlamentar absoluta. Pois, sendo constitucional, a regra poderá ser protegida e mantida se houve uma minoria de dois quintos, bastando que ela exista em uma das duas casas do Congresso.
É um golpe institucional dentro do golpe.
As elites querem se aproveitar de uma maioria eventual em um momento de conturbação política e institucional para assumirem o controle permanente sobre o papel do Estado, mesmo que seus representantes se mantenham em minoria daqui para diante.
Proposta forte, anúncio fraco
Mas se a proposta é radical, a apresentação passou fraqueza política, pois a ausência de definição de questões fundamentais resultou em um anúncio vago.
Quando começaria a valer? Qual seria a base para fixar o valor do teto? Seria a base o ano de 2016, após dois anos de perda de receita? Haverá regras de transição? Ainda haverá meta de superávit ou não haverá mais metas fiscais? A emissão de dívida também serão objeto de um teto? Como ficariam as despesas vinculadas de saúde e educação? Serão proporcionais ao teto global ou haverá uma nova “proporcionalidade”? Como ficam os estados e municípios?
A resposta a essas perguntas pode inviabilizar a iniciativa mais fundamental das “reformas” de Temer. O problema é que o congelamento da despesa pública não prejudicará apenas os interesses populares. Ele também trará insegurança a setores da economia que dependem do consumo estatal ou de contratos e encomendas governamentais. Assim também para aqueles que, de modo geral, sabem que precisarão, em uma futura crise, da política macroeconômica anticíclica que só a ação estatal pode garantir.
Embora apresentada como carro-chefe das reformas, a iniciativa saiu fraca, mal construída e vaga. Certamente, como qualquer observador de bom senso saberia, é que não basta os economistas escolherem quais reformas são “necessárias”.
Reformas precisam de apoio social dentro do Estado para se viabilizarem. Apoio que é transmitido, em boa parte, aos representantes eleitos. Mesmo que a maioria desses representantes não tenha compromisso prioritário com os interesses nacionais e do povo, eles precisam de votos para exercer seus mandatos.
Aí mora a fraqueza das elites e dos economistas que lhes servem de porta-vozes para concretizar seu programa de reformas.
* Lecio Morais é economista e mestre em Ciência Política. Atua como assessor técnico da Liderança do PCdoB na Câmara dos Deputados.