Publicado 02/06/2016 15:21
Os principais objetivos do golpeachment nunca foram segredo para ninguém. Tratava-se de retirar Dilma Rousseff da Presidência da República e paralisar as investigações da Operação Lava Jato. Porém, havia uma expectativa associada a tal movimento que enxergava a possibilidade de promover um conjunto amplo de reformas estruturais que vinham sendo sistematicamente derrotadas nas urnas. Lembremo-nos que os candidatos tucanos foram derrotados nos outubros de 2002, 2006, 2010 e 2014.
A presidenta foi afastada temporariamente, mas nada assegura que a votação definitiva no Senado Federal ocorra com a mesma “tranquilidade” para o lado dos golpistas. Solidifica-se na opinião pública nacional e internacional a certeza de que o “putsch” nada tinha de sincero em suas denúncias da corrupção. Muito pelo contrário. A única pessoa contra quem não se conseguiu provar nada até o momento foi aquela que sofreu o impeachment. Já os integrantes e apoiadores da equipe de Temer apresentam alta taxa de processos e de condenação.
Golpeachment e oportunismo do retrocesso
As tentativas de colocar as investigações em banho-maria tampouco logram êxito até o momento. Os envolvidos são denunciados e afastados do governo provisório e o noticiário político continua a oferecer suas tintas e vernizes de página policial. Delegados, promotores, juízes, investigações, depoimentos, delações premiadas, conduções coercitivas, mandados de busca e apreensão, enfim, são esses os termos que não saem das páginas dos jornais e das telas por todos os cantos.
A outra missão de que se autoinvestiu o governo provisório é relativa às mudanças na esfera da economia e do Estado. Em uma associação íntima com os representantes do financismo, a equipe de Temer pretende aproveitar a chegada ao poder por meios ilegítimos para promover mudanças significativas no nosso arremedo de modelo de Estado de bem-estar social, tal como definido pela Constituição. Escondidos por trás do discurso da crise fiscal, os operadores do mundo das finanças não disfarçam sua voracidade para se apropriar do espaço público de forma definitiva.
Como sempre acontece nesse tipo de conjuntura, a bola da vez é a previdência social. Os interesses do sistema financeiro em destruir o regime previdenciário público e transferi-lo para o setor privado é antigo. Para tanto, contam com o apoio explícito dos formadores de opinião dos grandes meios de comunicação, que criaram a farsa da suposta “inviabilidade” do Regime Geral da Previdência Social (RGPS) no longo prazo.
Cortar juros ou benefícios da previdência?
Em meio à atual crise fiscal, os economistas de cabeça de planilha voltam as suas atenções para as grandes unidades de despesa da União. E aí reaparecem, como sempre, as contas associadas a itens como saúde, educação e previdência social. Como eles mantêm intocável a armadilha do superávit primário, não existe para esses caras a hipótese de mexer na conta de despesas com juros e serviços da dívida pública. Afinal, se vêm mesmo dispostos e com a sanha de cortar gastos, que o façam com a conta que apresenta o maior desequilíbrio estrutural do Estado brasileiro. Ao longo de 2015, por exemplo, foram subtraídos R$ 540 bilhões do orçamento público para esse tipo de despesa financeira. Ou seja, mais do que toda a despesa com os benefícios do INSS.
Ah, não, mas os contratos com o setor privado são sagrados e a rolagem da dívida pública é a garantia de que a estabilidade macroeconômica não será afetada. Assim, fica mantida a política monetária de juros estratosféricos, ao mesmo tempo em que não são renegociados prazos, taxas e demais condições das despesas financeiras. De acordo com essa visão elitista, os únicos contratos que podem ser alterados são os que terminam por prejudicar a maioria da população: os serviços de saúde, de educação, de previdência e os demais programas de natureza social. Ou seja, todo esse esforço para assegurar a geração dos recursos para a esfera financeira.
Desajuste atual é provocado por recessão e desoneração
As informações catastrofistas a respeito da situação do RGPS operam com a desinformação da maioria da população. As estatísticas divulgadas recentemente a respeito do primeiro quadrimestre de 2016 apresentam um desequilíbrio – isso é fato. No entanto, os relatórios deixam claro que a principal causa desse descompasso conjuntural refere-se à redução das receitas previdenciárias e não a uma suposta explosão descontrolada das despesas com benefícios.
A realidade é que a política do austericídio de Joaquim Levy e Nelson Barbosa encaminhou o Brasil para a recessão e o desemprego. Nesse caso, verifica-se mesmo a redução das receitas da previdência, que se soma à política irresponsável de concessão de desonerações para as empresas. À medida que a crise seja superada e a atividade econômica retome sua “normalidade”, a capacidade arrecadatória voltará a somar recursos para equilibrar as contas do regime operado pelo INSS. A irresponsabilidade dos catastrofistas é a projeção desse desequilíbrio momentâneo para os próximos 50 anos.
Na verdade, é a velha estratégia de se criar um alarme do caos fabricado artificialmente e retirar da cartola a solução mágica. Nesse caso, como sempre, a panaceia se resume em transferir o regime da previdência para o setor privado, pois o Estado seria sempre ineficiente na condução de políticas públicas. Manchetes espalhafatosas estampando “deficit estrutural”, “rombo da previdência”, “falência do INSS” e outros anúncios são espalhados aos quatro ventos, sem a menor responsabilidade para com a apuração da verdade.
Previdência na Fazenda é desmonte
Por outro lado, é importante registrar que o financismo contou, no momento atual, com a grande colaboração do presidente interino para seu intento. Logo nos primeiros dias de sua atuação no Palácio do Planalto, Michel Temer transferiu todos os órgãos da administração federal que cuidam da previdência para o âmbito do Ministério da Fazenda. Com isso, a lógica fiscalista do ajuste a qualquer preço fica com todas as facilidades para promover as reformas que bem entender.
A queda de receitas é que está provocando um desajuste nesse período. Não existe nenhum desequilíbrio estrutural no modelo previdenciário, como insistem os chamados “especialistas” do mercado financeiro. O que ocorre é uma mudança nos padrões demográficos e de conformação no mercado de trabalho. Com isso, as pessoas passam a trabalhar mais tarde e têm uma expectativa de vida mais longa. É óbvio que esse tipo de transformação exige mudanças na organização e nas regras no sistema do INSS. Mas nada que justifique a sanha ortodoxa a que assistimos no dia a dia. Trata-se de uma mudança necessária, mas que deve ser amplamente discutida na sociedade, sem essa urgência do aqui e agora e que seja válida para as próximas gerações a ingressarem no mercado de trabalho.
As afirmações repetidas “ad nauseam” de que “no Brasil não existe idade mínima para se aposentar” ou de que “a idade média de aposentadoria é de 50 e poucos anos” não encontra nenhum respaldo na realidade. Há sim uma idade mínima e associada a um tempo de contribuição. Pelo contrário, a pessoa é fortemente punida pelo fator previdenciário caso decida se aposentar mais cedo. Quanto à idade média ser supostamente baixa, trata-se de um artifício de retórica de baixo nível, pois se considera todo o estoque de aposentadorias concedidas no passado. Ora, inclui-se no cálculo um universo de benefícios concedidos de um período em que a expectativa de vida era mais baixa e as pessoas ingressavam no mercado de trabalho muito mais cedo. Atualmente, a média das aposentadorias concedidas tende a respeitar as regras de um modelo atuarialmente equilibrado.
Além disso, é importante relembrar que o modelo previdenciário apresenta também sua contribuição para a redução das desigualdades socioeconômicas e para a própria retomada do crescimento econômico. Quase 70% dos quase 30 milhões de benefícios não ultrapassam o valor de um salário mínimo mensal. Mais de 85% do total de aposentadorias situam-se na faixa até 2 salários. Ora, como afirmar que esses valores são os responsáveis pela “quebra” do Estado brasileiro? Na verdade, a institucionalidade desse modelo é que ativa a economia nos mais profundos rincões do país e permite uma ação anticíclica nos momentos de crise, como o que vivemos. Afinal, a nossa estrutura tributária injusta e regressiva faz com que essas camadas da população paguem mais impostos do que as localizadas no topo da pirâmide de renda tão concentrada. Assim, aproximadamente 50% dos valores pagos pelo Tesouro na forma de benefícios acabam retornando para os cofres públicos (União, Estados e Municípios) sob a forma de impostos.
* Paulo Kliass é doutor em Economia pela Universidade de Paris 10 e especialista em Políticas Públicas e Gestão Governamental, carreira do governo federal