Dia das Mães, dia da gente
Neste mês de maio, me ocorrem duas lembranças, da mais alta à mais baixa. Na que vem de cima, avisam os astrônomos que na próxima segunda-feira (9) haverá um pequeno eclipse do Sol. Chegam até mesmo a dizer que a maior atração do mês de maio será o trânsito de Mercúrio se deslocando à frente da nossa estrela como um pontinho negro.
Por Urariano Mota*
Publicado 07/05/2016 12:24
Na lembrança mais baixa, me vem um deputado federal fascista, que elogia assassinos da ditadura, ter declarado certa vez que a própria mãe não passava de uma chocadeira. Como filho de chocadeira gente não é, será melhor não chamar por nome humano um ovo de serpente.
Então nesta véspera do dia da mães fico no meio, e divulgo trechos do meu próximo romance nos parágrafos a seguir.
Há uma raiz que brota e não a cultivamos. Ela é maior que as nossas forças para soterrá-la, vem, cresce e rebenta. É a nossa cara de infância. É a nossa cara de juventude. Nós não somos esses senhores que andam por aí sérios, graves, portadores de condecorações e votos de louvor. Não. Nós somos os anteriores. Nós somos os filhos de Maria, Dagmar, Ana Rita. Não passamos de filhos sem mãe que nos metemos nesta cara de importantes senhores. Essas roupas, bens, cargos, lustres e lixos não nos dizem respeito. Falamos grosso e somos frágeis. Levantamos a voz, mas não passamos de crianças que perderam seu colo e remédio. O melhor de nós é o que sobrevive a esta pele de rugas. E volta à tona em irrupção súbita, vulcão silencioso e ativo. Ainda que sentimento, não é sentimental. É alma fina alma, que sempre houve e se ocultava. E retorna em ataque vitorioso de guerrilha. Em lugar de derrotados, aqui nos subjugamos para melhor honra. “Refreia a natureza e ela voltará com força”, fala um ditado antigo.
Há um sentimento que unifica mulheres grávidas primeiro. É um anterior coração que bate no peito da gente sem que a consciência organizada o compreenda. Quero dizer, vinha um impacto antigo ao ver a gravidez de Nelinha no Pátio de São Pedro, quando ali conversávamos eu, Vargas e Alberto. Era imensa e indefesa a sua barriga, me pareceu. Vargas falava, mas a presença da gravidez de Nelinha era dominante. Hoje eu sei que Vargas melhor levantou a voz para defender a companheira. Depois, houve as manchetes de janeiro de 1973, o retrato de Soledad, a foto esmaecida, enevoada de propósito no laboratório fotográfico da repressão política. Quiseram ofuscar a beleza da guerrilheira para enquadrá-la na face de terrível subversiva. A legenda da foto apagada dizia: “Atuava no Nordeste como agente de ligação de grupos terroristas sul-americanos. Tinha ligação com terroristas brasileiros no Chile”. Vê-la na difamação, ao lado de Vargas, foi um duplo choque. Cambaleei tonto na Ponte da Boa Vista e foi incontrolável o vômito nas águas do Capibaribe.
Havia uma ligação terrorista, mas o terror era a confirmação de um trauma, a morte da mulher grávida. Aquele terror antigo, a infâmia da infância, quando a mulher morria por falta de cuidados, em 1973 sofria uma atualização: o assassinato pela repressão política da ditadura. Para mim, houve uma ligação além dos homicídios em cima dos seis militantes socialistas: Maria, Nelinha e Soledad estavam de mãos dadas em diferentes tempos, porque haviam de ser mães. Nelinha sobreviveu, mas disso ainda eu não tinha o conhecimento. As execuções de Maria e Soledad eram claras e unidas. Disso eu sabia na bílis que vomitei até um raio de sangue. Eu não sou um poeta romântico, mas se eu tivesse a sorte de ser um, teria composto versos para o céu azul daquela quinta-feira de 1973: “Pai, por que feres assim um objeto de amor e ternura?” Mas a consciência ainda não falava.