Entrevista: Celso Amorim, o Brasil e o mundo

 Protagonista de uma das fases mais ativas da diplomacia brasileira, o ex-embaixador e ex-ministro Celso Amorim conta como o Brasil conseguiu furar o bloqueio e se transformar em um importante ator no cenário global

Celso Amorim entrevista

Um dos mais experientes diplomatas da história recente do País, Amorim foi embaixador em diversos países e três vezes ministro de Estado – duas na pasta das Relações Exteriores e uma na Defesa. Aluno brilhante do Instituto Rio Branco (graduou-se em primeiro lugar, na turma de 1965), construiu, ao longo de quase quatro décadas, uma longa e sólida carreira, dentro e fora do Itamaraty.

Paulista de Santos, lulista de carteirinha e cinéfilo – três dos quatro filhos trabalham com cinema – Celso Amorim também atuou, a seu modo, atrás das câmeras. Testemunha – e às vezes, protagonista – de uma “boa intriga”, o diplomata ajudou a conduzir o Brasil, durante os oitos anos do governo Lula, a um patamar superior nas relações internacionais.

Esteve recentemente em Fortaleza para lançar seu livro  "Teerã, Ramalá e Doha – Memórias da Política Externa Ativa e Altiva", a convite do Instituto Brasil África, do qual é membro do Conselho Consultivo, o chanceler falou com O POVO. Confira os melhores trechos.

Por que o senhor resolveu escrever Teerã, Ramalá e Doha?

Esse livro foi publicado depois que sai do Ministério da Defesa, mas obviamente comecei a prepará-lo antes e tive mais tempo para isso. Escolhi esses três temas. Um é a Declaração de Teerã, que sempre me chamou a atenção. Outro foi todo o processo de aproximação nossa com países árabes e Israel. O terceiro é a Rodada de Doha que, embora se fale sobre Oriente Médio, a narrativa é sobre relações comerciais.

Como se deu a escolha dos temas?

No caso da Declaração de Teerã foi porque o tema do programa nuclear iraniano tinha voltado à baila. Agora mesmo os Estados Unidos estão finalizando as negociações. À época, muita gente me perguntava, há um ano e meio, se não era perda de tempo o acordo provisório (costurado pelo Brasil).

Foi perda de tempo?

Acho que houve perda de tempo. Não, necessariamente, nosso acordo era melhor. Mas houve um pacto para se ganhar confiança. Isso daria uma base melhor para negociação. Como havia versões muito estapafúrdias do que teria ocorrido, eu resolvei narrar como se deu todo o processo.

O caso Irã ainda é um assunto latente?

Ainda é. O presidente (dos Estados Unidos, Barack) Obama está fazendo a coisa certa. Mas ele poderia ter ganhado tempo, se tivesse feito antes e partido de uma base melhor. O que o Obama está fazendo hoje são as mesmas coisas de que nos queixávamos anos atrás.

O Brasil, que não pertence ao clube nuclear, tem mais ou menos respaldo para intermediar impasses como o do Irã, que quer ter uma bomba atômica?

Eu não vou dizer que temos mais ou menos respaldo. Eu digo que o Brasil tem um grande sustentáculo do ponto de vista do trunfo ético, porque o Brasil teria capacidade técnica de ter uma bomba nuclear e resolveu colocar na Constituição que não vai ter.

Resolveu ou as circunstâncias históricas não permitiram?

 Não sei. Essa é uma discussão muito relativa. Tem que ver com outras pessoas que estavam mais atuantes na época, que não era o meu caso. Eu acompanhei muitas discussões no Itamaraty, mas não estava envolvido, diretamente, com esse tema. Digo que se o Brasil tivesse, realmente, desejado, teria conseguido. O mais difícil nesse caminho é a capacidade de enriquecer o urânio, e isso a gente tem.

O Brasil precisa ter um arsenal nuclear?

O Brasil não tem essa necessidade. O Brasil tem sim que dominar o ciclo nuclear, usando para fins pacíficos, como a propulsão de nosso submarino, que não é uma arma nuclear. Mas a discussão se deve ou não ter uma bomba atômica está fora de questão. Não só pelo PNP (Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares). Está na Constituição Brasileira.

Durante o governo Lula, o Brasil passou a ser visto como um importante ator no cenário global. Como se deu esse processo?

As três narrativas do livro têm uma coisa em comum, que é importante salientar. O Brasil tomou a iniciativa de criar um outro tipo de relação entre duas regiões do mundo em desenvolvimento, e isso nos deu uma grande credibilidade.

Por exemplo.

 Árabes, e às vezes, até israelenses, iam nos pedir para intermediar certas situações. Nós fomos convidados, por exemplo, para intermediar um dos mais importantes eventos, que poderia ter dado resultado, que foi a Conferência de Anápolis (realizada em novembro de 2007, na acadêmia naval norte-americana, na cidade de Anápolis, Maryland. O objetivo do encontro era promover a retomada do processo de paz no Oriente Médio). Pouquíssimos países em desenvolvimento participaram. Foram convidados apenas Brasil, Índia e África do Sul.

Em que medida as relações comerciais do Brasil mudaram nos últimos anos?

O Brasil sempre teve uma atuação importante na OMC (Organização Mundial do Comércio), mas o fato é que a partir de Cancún (México, em 2003) o Brasil liderou um grupo de 20 países que soube dizer “não” a uma proposta que era muito negativa. E a partir desse momento, principalmente, nós passamos a ter uma posição central na rodada. O Brasil passou a ter uma posição muito mais ativa.

Houve impactos práticos nessa nova relação?

Claro que sim. As negociações comerciais se dão, de maneira, geral, em círculos concêntricos. Antes você tinha o Quadro: Estados Unidos, União Europeia, Canadá e Japão. Era o núcleo menor. Depois vinha o grupo maior, onde, às vezes, poderia entrar o Brasil junto com a Índia. Ficava-se esperando para ver o que eles resolviam no Quadro, para tentar colocar lá sua palhinha aqui ou ali. Com a nossa ação, a partir de Cancún, você tinha o Quadro, depois passaram a chamar de o Novo Quadro, que virou G-4, Estados Unidos, União Europeia, Brasil e Índia. Isso foi uma grande revolução. Mas, como na OMC você depende de um acordo global, isso não se concretizou. Chegamos a ter compromisso para o fim do subsídio para exportação agrícola e avanços muito grandes em relação a subsídios internos. Fatores que afetam o comércio internacional. Enfim, conseguimos vários avanços, graças a integração e a força dos países em desenvolvimento.

De lá para cá, o que houve? O Brasil perdeu capital político internacional?

Eu não faço julgamentos. Eu fui ministro da Defesa da presidenta Dilma. Ela me apoiou muito. Tomamos decisões importantes, continuamos o programa do submarino (de propulsão nuclear), adquirimos equipamentos para o Exército, inclusive blindados, decidimos a compra dos aviões (caças para defesa aérea). No governo Dilma eu era ministro da Defesa. Então, não tem cabimento eu ficar fazendo julgamentos sobre áreas das quais não tratei.

O peso comercial de um país é um dos critérios para as relações internacionais. No caso do Brasil, essa dinâmica está proporcional?

A expansão da diplomacia também propicia o crescimento do comércio. Se você for ver o nosso movimento com os países árabes, nos últimos sete ou oito anos multiplicou por quatro. Depois, com a crise, é que estabilizou um pouco e depois ficou oscilando.

Mas a relação comércio-diplomacia é direta?

 Eu não posso dizer que é uma relação direta, de causa e efeito imediatos. Tem de criar um clima que ajude a favorecer os negócios e aproxime os líderes. Essas decisões, muitas vezes, em países em desenvolvimento, são tomadas pelas lideranças políticas. Obviamente, tem um peso, mas não dá para se fazer uma correlação milimétrica. Mas eu não tenho a menor dúvida de que com os árabes, as relações se multiplicaram.

Como estão os direitos humanos nessas mesas de negociação, com a China, por exemplo?

Os países têm de sobreviver e se relacionar. Se você for esperar um país perfeito em direitos humanos você não sai de casa. Num país tem pena de morte, que condenamos, noutro tem tortura. E eu não estou falando de país em desenvolvimento. Estou falado no geral. Você deve ter uma certa medida e quando tiver oportunidade positiva, tentar reverter. O Brasil foi um dos países que propuseram, com mais determinação, que se criasse um mecanismo de revisão periódica de direitos humanos em todos os países. De quatro em quatro anos ou de cinco em cinco anos. Para todos os países. O Brasil mesmo vai passar por uma revisão em sua política de direitos humanos. Nós apoiamos muito isso. Em alguns momentos nós até sugerimos que certos países pudessem receber relatores das Nações Unidas sobre temas. Como eles fazem em relação às prisões brasileiras.

Nesse ponto, o Brasil tem o dever de casa para fazer.

É muito útil que isso ocorra. Mas não dá para você ter uma correlação direta, porque não há condição. Você não pode parar de se relacionar com a China porque aconteceu tal coisa no Tibete (região com a qual Pequim mantém litígios). Você não pode parar de se relacionar com aos Estados Unidos porque tem Guantánamo (prisão para terroristas, localizada em Cuba). E os direitos humanos, a pretexto de defesa das populações, como foram deixados a Líbia e o Iraque? Nós condenamos as ações, mas nem por isso nós deixamos de ter relação com os Estados Unidos ou com os países da coalizão. E na minha opinião pessoal, esses países (Líbia e Iraque) pioraram muito depois dessas ações unilaterais.

A propósito dessas ações de um país em outro, e considerando-se as possibilidades das novas tecnologias e bandeiras globais, o conceito de soberania está mudando?

O conceito é o mesmo, em que o país e seu povo decidem. Claro que você tem questões como os direitos humanitários que podem matizar um pouco isso. Não tanto pela tecnologia, mas por outros aspectos. Se você tem um problema desse tipo grave, a comunidade internacional tem de se manifestar de alguma maneira. Não bombardeando, porque isso não resolve. Mas, se for necessário, condenar. Agindo mais pela persuasão do que pela pressão. É uma mistura. Mas não é correto você escolher o país do qual você não goste por alguma razão, e olhar só os defeitos dele e não olhar o conjunto. Isso não é correto. E é o que é feito, em geral, infelizmente. A nossa própria mídia, não por maldade, compra muito o que vem da mídia estrangeira nessa direção.

A mídia brasileira repete aqui o discurso de interesses estrangeiros?

Eu não diria a mídia como um todo. Mas a tendência dominante é essa.

É caso pensado?

Não sei. Muitas vezes é pela pressa em dar a notícia. Vou dar um exemplo, muito técnico, mas ilustra bem a situação. No meio de uma negociação, na Organização Mundial do Comércio, a Europa fez uma oferta para acesso a mercados agrícolas. O nosso cálculo, o cálculo americano e o australiano era mais ou menos o mesmo. Dava uma abertura, em média, de trinta e cinco por cento. E a União Europeia declarou que aquilo representava cerca de quarenta e cinco por cento. Segundo os europeus, ficava muito próximo daquilo que havíamos pedido. E não era verdade. Ficou parecendo que eles tinham feito um grande gesto. Naquele dia, um programa de televisão importante repetiu no Brasil o discurso europeu. Comprou a versão deles. Não é ideologia, é mesmo falta de trabalho próprio.

A pauta da grande mídia, afeita a farejar crises e escândalos, ajuda ou atrapalha o trabalho do Itamaraty.

 Sou a favor da liberdade de imprensa, porque do contrário é muito pior. Mas, eu acho que os nossos jornalistas e nossos empresários de imprensa deveriam se equipar mais para formar uma visão própria. Esse exemplo que eu lhe dei é típico. Às vezes pode entrar uma certa má-fé. Por exemplo: quando nós fizemos um acordo para a Declaração de Teerã, uma certa revista publicou uma foto minha ao lado de (Mahmoud) Ahmadinejad (então presidente do Irã). Os dois de barba e tal, como se fossem os dois grandes inimigos de Israel.

Houve leitura semiótica?

Não só semiótica. Eles (da revista) diziam mesmo. E naquele momento, nós estávamos trabalhando, a pedido do governo de Israel, para tentar uma negociação para um problema de fronteira com a Síria. Aí sim, já é além do preparo. É má-fé.

Qual a linha prioritária de atuação do Brasil lá fora? É na linha Sul-Sul, inter-regional, Sul-Norte ou outra? Ou essas fronteiras se diluíram?

 Essas fronteiras se diluem um pouco. Você vai falar com a China em termos Sul-Sul? Eu não sei. Em nível per capta é. Eles têm um nível per capta inferior ao brasileiro. Mas em termos de pujança econômica e de PIB não é. Isso vale mesmo para alguns dos chamados tigres asiáticos. A Coreia do Sul, por exemplo, hoje é muito desenvolvida. Sou muito a favor de manter boas relações com os Estados Unidos, como acho bom manter as relações com a União Europeia. Aliás, quem primeiro defendeu que houvesse um acordo Mercosul-União Europeia fui eu, no governo Itamar Franco (1992-94).

Procurar outras relações, a fim de prospectar outros mercados, é tendência ou necessidade?

 A relação Sul-Sul precisa de uma ação afirmativa de dentro do País. A relação Sul-Norte, Norte-Sul transcorre, normalmente, até por uma questão de herança colonial. Só temos de trabalhar para mudar um pouco o conteúdo dela, enquanto que a Sul-Sul não. Por que o comércio do Brasil com a África multiplicou por quatro ou cinco vezes, e com o mundo árabe mudou espetacularmente? Porque houve um esforço político de aproximação, que gerou confiança, investimento e uma série de outras coisas. O próprio Mercosul, se não tivesse havido uma decisão política lá atrás, apesar de todos os problemas, não seria o que é.

Mas o Mercosul já teve dias melhores.

Concordo. Mas desde que o Mercosul foi criado, o comércio internacional se multiplicou por cinco, enquanto o comércio dentro do Mercosul se multiplicou por doze. Então, você vê como não pode comprar, facilmente, essas ideias de que o Mercosul ou a Argentina
estão atrapalhando.

Sempre há interesse comercial nas relações diplomáticas?

Diplomacia não é só uma agenda econômica. A coisa mais importante para o Brasil é o país viver em paz e em harmonia com seus vizinhos. Todas essas ações externas que nós tomamos, em relação à África, em relação à própria Organização Mundial do Comércio e ainda mais, claramente, em relação à Declaração de Teerã, seriam impossíveis se você tivesse o tempo todo numa situação de rivalidade com seus vizinhos. Agora, quando o presidente Obama tem negociações com Cuba e chega à conclusão de que precisa conversar e Cuba é chamada para a Cúpula das Américas, se esquecem de citar o papel da Unasul (União das Nações Sul-Americanas, criada em 2008) e o fato de o Grupo do Rio (criado em 1986, é um mecanismo de consulta internacional, formado por países da América Latina e Caribe) ter incorporado Cuba e criado a Celac (Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos, criada em 2010). Sem isso, os Estados Unidos ficariam isolados.

Os Estados Unidos isolados?

Amorim – Não que eles tenham esse problema, principalmente na área econômica. Os Estados Unidos é um país muito rico. Mas mesmo países muito ricos e poderosos precisam de um mínimo de legitimidade para justificar as suas ações. Todos os países da América do Sul, América Central, inclusive o Caribe e o Canadá, pedindo a presença de Cuba e só os Estados Unidos dizendo ‘não’ é muito ruim. Então, tudo isso se encadeia.

Faltou, então, mais créditos para o Brasil no episódio EUA-Cub
a?
Amorim – Não se tem que se preocupar com isso. É uma coisa óbvia, se você for olhar como na história das relações internacionais o Brasil sempre trabalhou pela reincorporação de Cuba no sistema e como sempre trabalhamos para resolver essas questões de maneira não conflitante.

Houve tentativas anteriores?

 Em 2009. Tivemos uma reunião muito importante, em São Pedro Sula, em Honduras, em que foi revogada a suspensão de Cuba da OEA (Organização dos Estados Americanos). Cuba não quis voltar, mas foi revogada a suspensão. Foi um esforço grande, sobretudo brasileiro, fazer isso sem uma posição conflitante com os Estados Unidos. Eles (americanos) ficaram meio na deles, não apoiaram entusiasticamente, mas também não bloquearam. O fato é que não houve denúncia de imperialismo ianque, como alguns queriam fazer. Sempre que pode, o Brasil levou a mensagem positiva e fez a boa intriga.

 O senhor é ex-presidente da Embrafilme. Falta ao Brasil um esforço para melhorar a imagem do País lá fora, através do cinema?

Eu sempre fui contra a intercessão do Estado para um país passar mensagens através do cinema. Não dá certo. Foi tentado isso no fascismo italiano. Aliás, filmes muito ruis. Mas, a Itália tem um cinema extraordinário. Tudo tem de ocorrer de uma forma natural, como o país é. Mostrando onde há excelência e onde tem problemas.

A Casa Branca e Hollywood tê uma relação muito profícua.

Não tenho duvida de que há uma relação muito forte. Talvez já tenha sido até mais. Mas eles foram, nesse ponto, suficientemente sábios para deixar que a produção se desenvolvesse. Cometeram muitos erros, na era do macartismo (perseguição anticomunista e desrespeito aos direitos humanos nos EUA, nos anos 1940/50) .

Como está o cinema no Brasil? É de exportação?

A produção cinematográfica brasileira tem melhorado, aumentado a produção e conquistado mais público, internamente. Mas você não pode fazer um filme pensando no exterior. Exterior é uma consequência. Você tem que fazer um filme para seu público, seu mercado. Claro que, aqui e acolá, você pode querer conquistar o mercado internacional, colocando um ator internacional ou coisa assim.

 O que o senhor diria para o jovem brasileiro que quer ser diplomata?

Eu tenho dado muitas aulas em faculdades que têm curso de relações internacionais. Ouço muitos testemunhos de que a política internacional brasileira foi desenvolvida nos últimos anos. Tem havido muito, inclusive, criação de cursos e formação de pesquisadores. Isso ajuda muito no entusiasmo dos jovens de hoje. É uma carreira fantástica, e a grande procura dos jovens pela área, todos os anos, de alguma forma mostra um pouco isso.