O direito à dignidade

De um lado um grito de dignidade; do outro a surdez e o manobrismo irresponsável do costume. A senhora Merkel e o senhor Hollande responderam à declaração clara e transparente do povo grego de que não aceitam continuar a pagar com austeridade mortal os erros que não lhe podem ser assacados, assumindo que é preciso respeitar a vontade manifestada nas urnas.

Por José Goulão, no Mundo Cão

Tsipras

No entanto, o espetáculo que as instituições europeias estão dando no arranque do pós-referendo é o de um circo de manobras e declarações onde se percebe tudo menos o desejo de respeitar a mensagem grega.

Isto é, no seu formalismo habitual, os chefes do Diretório que dá ordens na União Europeia proclamaram o respeito pela democracia; e logo os seus subordinados voltaram ao mesmo comportamento chantagista, com destaque para o inenarrável socialista holandês Djesselboem, que chefia a Zona Euro – uma espécie de pau mandado do senhor Schauble às ordens dos especuladores financeiros – em cujas declarações apenas se lê um desejo de vingança e de ajuste de contas contra os gregos. Entretanto, em segundo tempo, a senhora Merkel contradiz o que declarou poucas horas antes advogando que “ainda não há condições para recomeçar as negociações entre a União Europeia e a Grécia”. Por outras palavras, quiseram democracia e agora esperem para dançar a música que nós tocamos.

O ministro grego Varoufakis terá sido uma das primeiras vítimas deste manobrismo, a acreditar na versão oficial de Atenas. Não custa nada perceber, relendo declarações proferidas por alguns dirigentes europeus, que o afastamento do ministro que não se arrojava aos pés dos mandantes europeus e do FMI às ordens dos credores seja uma das condições impostas para o reinício das negociações. Os senhores da Europa, que chamam terroristas a quem lhes aprouver e convenha, estão muito indignados pôr o senhor Varoufakis lhes ter chamado terroristas a propósito da campanha de intimidação, medo e terror que montaram para que os gregos respondessem sim à austeridade. Afinal não é de Varoufakis que pretendem vingar-se, é dos gregos, contra quem o terrorismo não funcionou.

No domingo, a povo grego não se limitou a reabilitar a democracia como instrumento ao serviço de todos os europeus – assim o saibam aproveitar liquidando, país a país, a ditadura do chamado arco da governação.

Os gregos reabilitaram também o direito à dignidade e, para isso, derrotaram a monstruosa campanha de propaganda local, com ecos mundiais, que a si mesma se chama comunicação social; derrotaram a chantagem contra a democracia emitida de Bruxelas, prometendo o caos no caso de o não vencer; torpedearam o terrorismo do Banco Central Europeu, que tentou criar a anarquia nos bancos gregos seguida de um esvaziamento dos cofres através da fuga de capitais em massa; por fim, derrotaram ainda as sondagens – não nos esqueçamos do papel nefasto destas contra a democracia – que prometeram um “empate técnico” até o derradeiro instante num referendo em que as duas partes ficaram, afinal, separadas por um fosso superior a 22 pontos percentuais. Isto não é “margem de erro”, nem “engano”, nem fruto de “situações imprevisíveis”. Isto foi, sem qualquer margem de erro, uma burla.

Ao darem um tão sonoro grito de dignidade, os gregos vão precisar de ser firmes e de contar com a solidariedade dos outros povos europeus vítimas desta tragédia, porque o contra-ataque vai ser terrível. Não é possível pagar a dívida grega e não é por isso que existe qualquer legitimidade em chamar caloteiros aos cidadãos da Grécia em geral. Em primeiro lugar, as dívidas renegoceiam-se, reestruturam-se de maneira a que sejam criadas condições de crescimento econômico e de funcionamento pleno das economias para que possam ser amortizadas.

Além disso, não são os gregos em geral, e entre eles as maiores vítimas da austeridade, os responsáveis pelo estado calamitoso a que chegou a dívida soberana do país. Os vícios de corrupção, nepotismo, evasão fiscal, de viver acima das possibilidades são fruto de décadas de governação desempenhada pelas duas famílias políticas que formaram o arco da governação, agora desfeito na Grécia – socialistas (PASOK) e direita – em conluio com os bancos nacionais e internacionais, entre eles o famigerado Goldman Sachs, como se sabe. Foram elas que fizeram chegar a dívida a 120 por cento do PIB, quando soaram as campainhas de alarme, e que depois disso, rastejando perante Bruxelas e a troika, se submeteram a um memorando de “ajuda” que a fez trepar, até agora, para 170 por cento do PIB.

O primeiro ministro de Portugal em exercício disse, a propósito da Grécia, que não se pode ajudar quem não quer ser ajudado. Está vendo o filme ao contrário, tal como lhe acontece em relação a Portugal: a Grécia (e os outros países assim submetidos) não têm recebido ajudas, têm sido assaltados e saqueados. Os gregos limitaram-se a dizer, pela segunda vez em seis meses, que não querem continuar a ser roubados.