Roberto Amaral: O desafio atual do governo
A tarefa dos democratas e progressistas hoje é fortalecer o governo Dilma no Congresso, para que possa fazer frente à coalizão de centro-direita, e junto à cidadania, para avançar com reformas.
Por Roberto Amaral*, na Carta Capital
Publicado 17/11/2014 13:06
A chamada classe-média alta e a pequena burguesia descobriram que a emergência dos pobres – a ascensão dos de baixo – cobra-lhes dividendos: para que muitos tenham algo a mais é preciso que poucos tenham um pouco menos. Esse preço, no entanto, parece-lhes muito alto. Os ascendentes miram sempre patamares mais elevados, e os que já lá estão temem essa chegada, pois não há garantia de espaço para todos. No frigir dos ovos, alguém haverá de ceder, e o medo da queda é mais forte do que o sonho que acalanta a subida. Sob o pavor de uma eventual regressão social, que não as ameaçam, as camadas médias urbanas tentam impedir a mobilidade social – este, o novo "fantasma" da sociedade fundada na desigualdade de classe.
É contra a ascensão dos pobres que berra e se mobiliza a direita brasileira, açulada pelo discurso de uma oposição biliosa: seu combustível é o medo.
A direita no Brasil e em todo o mundo, hoje como sempre, jamais teve compromissos com a democracia, pois jamais titubeou em fraturá-la sempre que a defesa de seus interesses sugeriu essa alternativa. Foi assim, entre nós, em 1954 no golpe que se concluiu com o suicídio de Vargas; foi assim 1955, na tentativa de impedir a posse de Juscelino Kubitschek e na pretensão de sustar-lhe o governo, mediante duas intentonas militares, Jacareacanga e Aragarças. Foi assim em 1961 na tentativa de impedir a posse de João Goulart, foi assim em 1964, quando ela, a direita, rasgou a Constituição e implantou uma ditadura. E será sempre assim, sempre que a violência for seu único instrumento de conquista ou conservação do poder.
Para qualquer sorte de golpe (e não pensemos mais tão-só nos formatos tradicionais de golpes de Estado) é preciso fazer contemporâneas as condições objetivas e subjetivas. Essas são preparadas principalmente por intermédio da grande imprensa e, hoje também, pelas chamadas "redes sociais". Por isso mesmo, a tentativa de desconstrução de Dilma e de seu governo não conhece limites e se transfere da campanha eleitoral para um segundo governo que sequer se instalou. A intolerância é a matéria-prima.
A tarefa que se coloca para os democratas e os progressistas brasileiros, hoje, é fortalecer o governo Dilma e a liderança da presidente. Fortalecer no Congresso para que possa fazer frente à coalizão de centro-direita, mas igualmente fortalecer junto à cidadania, para que possa avançar com as reformas que o país reclama e constituíram a base ideológica de sua campanha; fortalecer para enfrentar as distorções do "presidencialismo de coalizão" – e a primeira delas é a formação de sua atual "base parlamentar de governo", com suas notórias fragilidades políticas, ideológicas e éticas. Se o encontro heterodoxo entre partidos sem parentesco ideológico ou programático, ou comportamental, é indispensável (e o é), faz-se igualmente indispensável que a presidente encontre respaldo na sociedade, no movimento social em todo o seu espectro. É preciso fortalecer a presidente como conditio sine qua non para o funcionamento da República, no presidencialismo, qual o praticamos. É preciso fortalecer a presidente para que, livre, leve a termo o governo de suas próprias aspirações mirando para além das circunstâncias atuais, e livre de compromissos que, voltados para um amanhã ainda invisível, sirvam apenas para tolhê-la no presente.
Fortalecê-la para enfrentar a aliança imprensa-partidos de oposição.
Não obstante o desempenho eleitoral dos partidos que constituem a base do governo, não há qualquer segurança parlamentar para Dilma e seu governo na próxima legislatura, pois sua base de apoio parlamentar é inconfiável, como o demonstram as crescentes dificuldades enfrentadas pelo governo nas duas Casas do Congresso. Junte-se à fragilidade da base governista a promessa de guerra com que ameaça o país uma oposição movida pelo ódio gratuito e pelo ódio pago, açulando os instintos mais primitivos de uma direita sem perspectiva histórica, mas com muita capacidade de causar danos. Junte-se a essas armadilhas a fragilidade do sistema de partidos e, principalmente, a fragilidade dos partidos que caminham no campo democrático-progressista, acentuadamente apartados do movimento social; junte-se os amuos de uma classe-média receosa da competição social representada pela ascensão dos de baixo. Junte-se aos obstáculos que se apresentam à presidente Dilma, já antes do início do segundo mandato, a oposição – política, ideológica-doutrinária – que lhe move uma imprensa sem assento na ética, desligada dos interesses do País e de sua gente, contra os quais milita; uma imprensa reacionária que no Brasil exerce funções partidárias sem se submeter à, legitimação do voto.
Louvem-se, pois, todas as propostas visando à constituição de Frentes de esquerda e de centro, para, com papéis obviamente distintos, assegurar a sustentação do governo. Na sugestão do governador Cid Gomes – louvo-me no precário noticiário da imprensa – à Frente de Centro caberia uma certa contraposição às tergiversações do instável e inconfiável PMDB; a uma Frente de esquerda caberia reunir os partidos desse naipe para constituir o que inexiste hoje e inexistiu no governo Lula: um núcleo progressista cuja solidez politico-ideológica possibilitaria a convivência com uma base de centro com participação mesmo de configurações conservadoras.
Do ponto de vista estratégico, a proposta é oportuna, correta e ingente. Ocorre, porém, que não podemos pensar em Frentes de Partidos quando partidos não temos, o que, suponho, é verdade que dispensa demonstração. Pois os nossos são partidos de fancaria, mera necessidade jurídica para a disputa de eleições, amontoados de deserdados de ideias, dominados por ‘caciques’ regionais, interesses corporativos contraditórios, sem disciplina, sem programas, mas plenos de interesses. Mais efetiva do que uma Frente de Partidos, para o que quer que seja, indico a Frente de Parlamentares – por exemplo, uma Frente de parlamentares de Esquerda, ou de deputados e senadores progressistas, eis meras ideias – reunidos em torno de objetivos comuns e unificadores, para além das legendas nas quais estejam abrigados. Mas isso ainda seria muito pouco, pois o país, nesse transe, carece é de frentes políticas suprapartidárias, reunindo parlamentares e políticos de um modo geral, dialogando com a sociedade e principalmente trazendo para o círculo político as aspirações e as pressões populares, que devem ser estimuladas. Uma Frente política que reúna toda sorte de lideranças, populares, sindicais, universitárias, para uma ação política e politico-organizacional casada com uma profunda reflexão sobre nosso país e seus impasses, sobre nosso governo e seus objetivos estratégicos, sobre a política e sua crise, sobre a esquerda e sua crise, sobre o socialismo e sua crise… uma reflexão que, "passando a limpo" todas as questões do presente, e livre de partis pris ideológico, nos faça ingressar em uma nova contemporaneidade.
Uma reflexão e uma ação, um agir orientado pela análise crítica orientada para o fazer. Um fazer que compreenda uma nova relação com os movimentos sociais (neles incluídas as organizações sindicais e o movimento estudantil); uma nova organização partidária e um novo sistema de partidos que concilie o pragmatismo com a ética, a opção eleitoral com a preservação de princípios democráticos. Uma ação que altere a correlação de forças a favor dos pleitos democráticos, que requerem reformas estruturais que não se encerram na democratização dos meios de comunicação – sem a qual, porém, pouco poderá ser feito.
Mas o primeiro dos desafios, o mais imediato, é garantir a favor do governo a sucessão na presidência da Câmara dos Deputados.
*Roberto Amaral é cientista político, ex-ministro da Ciência e Tecnologia entre 2003 e 2004 e atual presidente do PSB.