Seca em SP: privatização da gestão, controle e distribuição de água
Se a lógica de uma empresa listada em duas bolsas de valores, como é o caso da Sabesp, é a maximização do retorno ao acionista, será que ela subestimou os riscos ao não realizar os investimentos necessários?
Por Bruno Peregrina Puga*, publicado no Brasil Debate
Publicado 22/10/2014 11:17
Enfrentando um período de estiagem e temperaturas históricas para a época, a macrorregião de São Paulo se vê, com incredulidade, diante de um eminente colapso no abastecimento hídrico.
Além de englobar duas das regiões econômicas mais importantes do Brasil (a Região Metropolitana de São Paulo e de Campinas), as crises e conflitos no abastecimento doméstico já estão presentes em cidades do interior e em diversas regiões da capital.
Este cenário parecia inimaginável para a magnitude dos sistemas que abastecem a região, como o Sistema Alto Tietê, Guarapiranga e o Cantareira.
A Sabesp, empresa mista do governo de São Paulo (50,26% do governo estadual, 25,5% na BMF/Bovespa e 24,2% na Bolsa de NY) é a empresa outorgada para utilizar e gerir esses sistemas, destinando em tempos normais 33m³/s para RMSP e 5m³/s para cidades da RMC.
Com a persistência da falta de chuvas e clima adverso e com a instauração de um comitê de crise, a Sabesp foi obrigada a reduzir a captação, apesar de que tardiamente, para 19,1m³/s.
O que era considerado um risco remoto tornou-se uma grande incerteza quanto ao que vem pela frente. A engenharia já demonstra limites na apresentação de soluções no curtíssimo prazo, além da captação do volume morto dos reservatórios.
A irresponsabilidade deve ser compartilhada entre a Sabesp e os órgãos de controle (como a ANA e DAAE), mas não recair sobre os usuários como tem sido feito. Cabe lembrar que, na renovação da outorga em 2004, a Sabesp comprometeu-se a reduzir as perdas do sistema e, principalmente, a dependência da RMSP do Sistema Cantareira.
Não foi o que aconteceu. Os índices de desperdício ainda beiram os 25% e a Sabesp continuou a retirada além da cota permitida pela ANA.
Se a dependência de São Paulo é grande, as cidades do interior à jusante do sistema sofrem muito mais, visto que possuem uma dependência relativa maior ou completa das vazões captadas.
Tendo como prioridade o consumo humano, as perdas econômicas com as restrições no uso da água em breve poderão ser sentidas, como crises na provisão de alimentos. O conflito pelo uso da água entre estes dois polos urbanos tende a se agravar, possivelmente com a judicialização dos conflitos.
O quanto a dimensão política tem afetado a dimensão operacional é uma incógnita, mas tomando como base as declarações recentes da Sabesp, o ano eleitoral atuou como cortina de fumaça, omitindo a real gravidade e evitando medidas drásticas extremamente necessárias.
A recusa insistente do governo estadual em admitir a gravidade da situação, a diminuição da vazão e as constantes interrupções com alegadas falhas técnicas são apenas alguns exemplos de como se geriu a crise de forma a minimizar a responsabilidade da Sabesp.
Mas não para os acionistas. Em documentos para a Comissão de Valores Mobiliários dos EUA em 2012, a Sabesp admite que a situação climática adversa poderia vir a afetar as receitas, uma vez que poderia ser obrigada a captar água de outras fontes para suprir a demanda de seus usuários.
Isso nos remete a um problema central na gestão da água no Brasil e na América Latina: a privatização de sua gestão, controle e distribuição. Se a lógica de uma empresa listada em duas bolsas de valores é a maximização do retorno ao acionista, será que ela subestimou os riscos ao não realizar os investimentos necessários? Os anos recentes têm sido generosos com os acionistas da Sabesp, sempre pagando um payout elevado, ao passo que o investimento não tem acompanhado a mesma intensidade crescente do lucro.
Apesar de a Constituição Federal reconhecer e atribuir valor econômico à água, o preço da água no Brasil não reflete seu real custo, captando apenas os custos de tratamento e distribuição.
A cobrança pelo uso da água é muito incipiente, sendo feito de forma a não onerar os agentes econômicos, resultando em uma receita insuficiente frente aos investimentos necessários aos comitês de bacia.
A Sabesp paga pela transposição das águas do Cantareira, mas deveria cumprir com o mínimo das condicionantes exigidas. A parte mais interessada na sustentabilidade de um sistema produtor de água desta magnitude deveria ser seu maior usuário, mas na prática não tem sido.
Solo e florestas
A lógica da gestão deve ir além de indicadores simples e permitir uma gestão integrada ao nível da bacia, contemplando os diversos usuários e múltiplos usos.
Há uma enorme necessidade de investimentos ao longo da bacia hidrográfica para melhorar a qualidade e garantir a quantidade, não devendo seu planejamento basear-se primordialmente nas vazões históricas e previsões simples, sem espaço para eventos extremos.
No caso do Cantareira, a região de contribuição de sua bacia possui um grande déficit de áreas florestais, onde grande parte de suas áreas de preservação possui usos do solo, em desacordo com a legislação.
A agricultura pode, e precisa, ser um grande aliado na provisão de água de boa qualidade, devendo as boas práticas agrícolas e agroecológicas, e a racionalização do uso da água por parte do setor, tornar-se objetos de políticas públicas.
O parcelamento excessivo do solo e o crescimento das áreas urbanas na região também contribuem para a diminuição das florestas.
Dimensão ecológica
A dimensão ecológica tem sido sistematicamente relegada ao segundo plano. As matas ciliares e remanescentes florestais desempenham papel fundamental na provisão de importantes serviços ecossistêmicos.
Há a necessidade urgente de enfrentamento destas questões, indo além da forma como a água é enxergada dentro do processo produtivo. Tratar a gestão das águas como uma questão meramente de engenharia e como insumo estável e garantido é um erro que vem sendo repetido.
A crise hídrica deve forçar a reflexão sobre a dependência excessiva dos recursos hídricos na superfície e estimular o uso de outras formas de captação, como as águas subterrâneas, água de reuso e água da chuva.
A cidade de São Paulo não pode continuar tendo este enorme déficit hídrico e baixo aproveitamento das fontes locais de abastecimento, castigadas ao longo de décadas e sem muitos avanços nos últimos anos.
O processo de renovação da outorga de 2014, interrompido pela crise, era visto por muitos como uma oportunidade para exigir maiores contrapartidas ambientais e de investimento da Sabesp. Talvez seja tarde demais, uma vez que há risco de perdas irreversíveis e alterações nos limiares de resiliência dos ecossistemas locais.
*Bruno Peregrina Puga é economista, doutorando em Desenvolvimento Econômico (Unicamp)