Economia: Marina Silva e a farsa de Inês Pereira
Não é possível olhar para o futuro sem enxergar uma dura luta por soluções patrióticas para os problemas econômicos do país. Ao fazer esse exercício, é preciso analisar com rigor máximo o que pensam, dizem e propõem as candidaturas da direita — Marina Silva e Aécio Neves — e o que defende a candidata progressista Dilma Rousseff.
Por Osvaldo Bertolino*
Publicado 13/09/2014 13:56
A história desfiada na peça “A farsa de Inês Pereira”, um clássico do teatro vicentino bem conhecido nas aulas de literatura — casamento por interesse, ascensão social por meio do oportunismo e falta de escrúpulos — serve como uma fiel caricatura do comportamento da elite brasileira. O dramaturgo português Gil Vicente (1465-1536) escreveu o texto, desafiado pelos invejosos da época, para comprovar o provérbio ''Mais quero um asno que me leve do que um cavalo que me derrube''. A desfaçatez expressa na peça é quase obscena e diz muito, politicamente, sobre o que pensa e como age a direita no Brasil.
Os meios utilizados para alavancar o nome de Marina Silva na corrida para a sucessão presidencial são a expressão prática dessa conduta. A candidata, por sua vez, comprovou a máxima popular de que para conhecer um vilão basta entregar-lhe o bastão. Uma das suas investidas mais ferozes contra a presidenta Dilma Rousseff se dá exatamente em um campo estratégico, no qual o Brasil tem mostrado resultados razoáveis — a economia. Em entrevista ao jornal Valor Econômico, ela disse que a gestão econômica do governo levou o país para o fundo do poço. A coisa teria começado a degringolar no segundo governo do presidente Luis Inácio Lula da Silva, de acordo com seu diagnóstico.
Resposta na lata de Dilma
A retórica da candidata, sabe-se muito bem, tem como característica as falsas aparências. Seu discurso, se levado à confrontação com a realidade, instantaneamente se desmancha. Na mesma entrevista, por exemplo, ela reprovou a política do governo de fomento da economia pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), alegando que “eles” (o governo) querem dar R$ 500 bilhões do banco “para meia dúzia de ungidos que são escolhidos pelo governo para serem os campeões” (sic). Em seu “Programa de Governo”, a ideia fica mais clara:
“Acesso a recursos subsidiados pelo Tesouro Nacional, por meio dos bancos públicos, não pode ser o fator principal de sucesso das nossas empresas.”
Dilma Rousseff respondeu na lata: a redução do papel dos bancos públicos nos investimentos em infraestrutura e nos programas sociais do país seria um absurdo inaceitável. “Não fica pedra sobre pedra do ‘Minha Casa, Minha Vida’ sem os bancos públicos”, disse a presidenta durante sabatina do jornal O Globo, em Brasília. “Ela (Marina Silva) vai diminuir o papel dos bancos públicos. Isso vai acabar com o financiamento do investimento, da agricultura, de todas as obras de infraestrutura”, destacou.
Embromação de Marina Silva
Dilma se baseou, possivelmente, também em outra afirmação do “Programa de Governo” de Marina Silva: “Precisamos gerir cuidadosa e racionalmente os recursos públicos que são transferidos da sociedade para financiar gastos correntes e aperfeiçoar o ambiente de negócios no Brasil a fim de mobilizar o investimento privado com critérios claros de regulação.” A insinuação moralista-udenista, de cunho neoliberal, fica mais evidente em outro trecho: “O governo deixará de ser controlador para tornar-se servidor dos cidadãos. Deixará de ver o setor público como um fim em si mesmo e como algo superior, quase como o criador da sociedade. O Estado tem de servir a sociedade, e não se servir. Ou seja, inverteremos uma lógica dominante nos últimos quatro anos.
Partimos do pressuposto de que a sociedade criou o Estado para servi-la. E não o inverso.”
Trata-se de uma embromação, está claro. Aliás, a ideia foi copiada de Fernando Henrique Cardoso (FHC), que disse ao jornal suíço Le Temps que o Partido dos Trabalhadores (PT) não tem uma “visão democrática'', pois ''ainda pensa que precisa ocupar a máquina estatal para reformar a sociedade”. “É exatamente por causa dessa promiscuidade que nasceram os escândalos em que (o PT) está implicado'', afirmou. Na avaliação do ex-presidente, a “sociedade” deve ser independente do Estado. “O PSDB faz menos retórica e tem uma visão mais republicana na relação entre partido e Estado'', disse ele.
Falta de rigor moral
FHC e Marina Silva faltam com a verdade. Para começo de conversa, a mais notável e tradicional "visão republicana" da direita é o quartel. Como disse Lula certa ocasião, Tiradentes e os demais revolucionários republicanos “lutavam pela independência do Brasil, para que as riquezas produzidas nesta região ficassem aqui'. ''Acho que quem sabe seja um bom tema para que os nossos historiadores comecem a discutir daqui para a frente. Porque, veja, ele (Tiradentes) foi um homem que pensou na independência do Brasil. Foi morto. Esquartejado, salgaram a sua carne.
Mas as ideias dele continuaram”, afirmou o ex-presidente. A República a que aspiravam os partícipes daquele movimento patriótico era um símbolo de independência e progresso; eles planejavam industrializar o país, acabar com os monopólios coloniais, cessar a exportação do ouro e aproveitar as riquezas minerais do país.
A falta de rigor moral da direita brasileira no debate político é recorrente. Recentemente, quando o Produto Interno Brasileiro (PIB) caiu, o ministro da fazenda, Guido Mantega, explicou que o acontecido decorria da junção de fatores como a Copa do Mundo e a situação econômica dos Estados Unidos e da Europa. E disse que nos próximos períodos a economia voltaria a crescer.
Foi motivo de ataques violentos — nos dias que se seguiram às declarações do ministro a mídia apelou para os mais torpes recursos para desqualificá-lo. Agora, a previsão se confirma e a economia volta a crescer “de forma surpreendente”, como avaliou o comentarista de economia das Organizações Globo Carlos Alberto Sardenberg.
Arautos do caos
Não é a primeira vez, nos últimos dias, que a realidade desmente esses arautos do caos. Há poucos dias o Banco Mundial (Bird) e a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) — órgão das Nações Unidas — disseram que o Brasil e a China são os motores do emprego no mundo. O relatório anual da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), também recente, diz que apenas o fortalecimento da demanda agregada pelo crescimento real dos salários e pela distribuição de renda mais igualitária poderão romper o longo período de baixo crescimento (leia minha análise a respeito aqui: http://grabois.org.br/portal/noticia.php?id_sessao=8&id_noticia=13344).
Os dados foram apresentados na reunião do G20 (grupo que reúne as maiores economias do planeta) realizada nos dias 10 e 11 de agosto na Austrália, que definiu como meta a procura de incrementar o crescimento global em 2 pontos percentuais até 2018. No próximo dia 20 a 21, também na Austrália, ministros e presidentes de bancos centrais do grupo estarão reunidos para preparar o encontro de cúpula que definirá procedimentos para que a meta de crescimento seja alcançada. “O Brasil não chegou aos 2 pontos percentuais do Produto Interno Bruto, mas foi um dos mais altos. Essa é a base que eles projetam para o Brasil, que chegou perto de 1 ponto percentual”, disse Cozendey, secretário de Assuntos Internacionais do Ministério da Fazenda.
Programas de infraestruturas
No caso do Brasil, as três áreas principais para que se busque a meta são infraestrutura, qualificação de mão de obra e fortalecimento das pequenas e médias empresas. De acordo com Cozendey, há consenso para continuidade e fortalecimento dos programas de infraestrutura em andamento, como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). “Mesmo assim, com dinamismo dessa área, foram incluídas novas concessões de portos e ferrovias, planejamento de logística etc. São medidas de diversos segmentos. No momento, procura-se quantificar isso”, explicou.
Na parte de qualificação de mão de obra, o destaque é o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec). O governo brasileiro trabalha para mostrar como isso pode ajudar a atingir a meta de crescimento de 2 pontos percentuais, com parâmetros como o número de estudantes. Para as pequenas e médias empresas, o indicador será a reformulação do Simples, além do estímulo às exportações do setor, informou o secretário. “São áreas consensuais que o Brasil precisa avançar. Mesmo sendo um ano eleitoral, acreditamos que nessas áreas as prioridades não irão ser alteradas. E quando se faz um plano desses você pressupões que serão implementadas. Os ministros serão informados dos avanços e o número final só surgirá na reunião de cúpula. O que não for feito em um ano necessitará ser compensado para cumprir as metas”, afirmou o secretário.
Também serão discutidos na reunião o investimento de longo prazo, principalmente em infraestrutura, e as garantias, além de mecanismos para a troca de informações tributárias. Cozendey comentou ainda a situação da Argentina, que, embora não esteja na agenda do encontro, poderá ser avaliada. Para ele, o tema dos fundos abutres entrará na pauta por ter impacto global em futuras reestruturações de dívidas. Ele destacou ainda que no encontro na Austrália haverá uma reunião rápida entre os representantes do Brics para dar continuidade às negociações referentes à implementação do banco do bloco, formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, e do acordo de reservas, anunciado na recente reunião do grupo realizada na cidade de Fortaleza.
Realidade da direita
Ações como essas não seriam possíveis com a direita no poder. “Destaca-se no receituário econômico dos candidatos Aécio Neves e Marina Silva o propósito declarado de uma maior aproximação comercial com Estados Unidos e Europa e um progressivo distanciamento brasileiro da Unasul e dos Brics”, escreve o economista José Carlos de Assis em artigo publicado no Monitor Mercantil, sem deixar de fazer críticas a setores da equipe econômica do atual governo, que, segundo ele, têm a mesma inclinação. “A despeito da péssima política cambial de Guido Mantega e do Banco Central, ainda mantemos uma posição externa de comércio confortável graças, sobretudo, a nossas relações com a China e o resto da Ásia”, diz ele.
Essa posição contrasta fortemente com a realidade que a direita quer resgatar. Durante a “era FHC” exportar era uma das coisas que o Brasil não fazia bem. Se fizesse, não haveria tanta gente — Apex, Camex, Decex, Funcex, CCEX, Secex, Cacex — rimando e remando para fazer do Brasil um exportador medíocre; quando FHC deixou Brasília, o Brasil respondia por apenas 18% das exportações latino-americanas. O Brasil era, enfim, um exportador acanhado. Várias vezes, e em muitos aspectos, canhestro. Eis a questão: por quê?
A análise deve partir da natureza econômica daquele governo. No imaginário dos neoliberais existe a ideia de que o mercado externo se reduz aos Estados Unidos e à Europa. Empresa brasileira molhando os pés em águas internacionais do Sul do planeta era uma imagem que jamais frequentou o pensamento daquela “era”. Para eles, a ideia de que o Brasil deveria fincar sua bandeira em outras terras soava exótica. Quando a política externa do governo Lula chegou, o Brasil logo mostrou como desataria o nó da política comercial brasileira, responsável por seguidos déficits desde a implantação do “Plano Real”: o governo sairia pelo mundo, disputando terreno em vários mercados. Para os novos líderes do Itamaraty, eventuais perdas em uma trincheira mundo afora poderiam ser compensadas por ganhos em outra.
Carta de Lula para FHC
Em agosto de 2002, Lula, ainda candidato à Presidência da República, entregou uma carta a FHC, durante o encontro com os candidatos no Palácio do Planalto, em Brasília, na qual disse que era urgente “gerar um elevado superávit comercial, fundado no aumento expressivo das exportações, de modo a diminuir a vulnerabilidade do país com relação à volátil liquidez internacional”. “Isso requer, de imediato, uma ampla ofensiva diplomática, que mobilize todas as embaixadas e consulados brasileiros para apoiar o esforço exportador do Brasil. Exige, além do mais, uma ação decidida nas frentes de negociação internacionais, como a Organização Mundial do Comércio (OMC), contra o protecionismo injustificado e os subsídios indevidos dos países ricos que prejudicam as vendas de nossos produtos, como o suco de laranja, o açúcar, a soja e o aço, entre outros”, dizia a carta.
Na sua posse, Lula disse que, “em relação à Área de Livre Comércio da América (Alca) — proposta pelos Estados Unidos —, nos entendimentos entre o Mercosul e a União Europeia e na Organização Mundial do Comércio (OMC) o Brasil combaterá o protecionismo, lutará pela sua eliminação e tratará de obter regras mais justas e adequadas à nossa condição de país em desenvolvimento”. “Buscaremos eliminar os escandalosos subsídios agrícolas dos países desenvolvidos que prejudicam os nossos produtores privando-os de suas vantagens comparativas. Com igual empenho, esforçaremo-nos para remover os injustificáveis obstáculos às exportações de produtos industriais. Essencial em todos esses foros é preservar os espaços de flexibilidade para nossas políticas de desenvolvimento nos campos social e regional, de meio ambiente, agrícola, industrial e tecnológico”, afirmou.
Países vizinhos
Lula disse ainda que a grande prioridade da política externa do seu governo seria “a construção de uma América do Sul politicamente estável, próspera e unida, com base em ideais democráticos e de justiça social”. “Para isso é essencial uma ação decidida de revitalização do Mercosul, enfraquecido pelas crises de cada um de seus membros e por visões muitas vezes estreitas e egoístas do significado da integração. O Mercosul, assim como a integração da América do Sul em seu conjunto, é sobretudo um projeto político. Mas esse projeto repousa em alicerces econômico-comerciais que precisam ser urgentemente reparados e reforçados”, disse.
Lula falou com palavras claras que priorizaria as relações com os países vizinhos. “Cuidaremos também das dimensões social, cultural e científico-tecnológica do processo de integração.
Estimularemos empreendimentos conjuntos e fomentaremos um vivo intercâmbio intelectual e artístico entre os países sul-americanos. Apoiaremos os arranjos institucionais necessários, para que possa florescer uma verdadeira identidade do Mercosul e da América do Sul. Vários dos nossos vizinhos vivem hoje situações difíceis. Contribuiremos, desde que chamados e na medida de nossas possibilidades, para encontrar soluções pacíficas para tais crises, com base no diálogo, nos preceitos democráticos e nas normas constitucionais de cada país”, afirmou.
Aspecto político
O presidente também falou das relações de seu governo com os Estados Unidos e a União Europeia. “Procuraremos ter com os Estados Unidos da América uma parceria madura, com base no interesse recíproco e no respeito mútuo. Trataremos de fortalecer o entendimento e a cooperação com a União Europeia e os seus Estados-Membros, bem como com outros importantes países desenvolvidos, a exemplo do Japão”, disse. Mas ressaltou que não deixaria de dar atenção a outras regiões do planeta. “Aprofundaremos as relações com grandes nações em desenvolvimento: a China, a Índia, a Rússia, a África do Sul, entre outros. Reafirmamos os laços profundos que nos unem a todo o continente africano e a nossa disposição de contribuir ativamente para que ele desenvolva as suas enormes potencialidades”, afirmou Lula.
O discurso reforçou o aspecto político das novas relações internacionais do Brasil. “Visamos não só a explorar os benefícios potenciais de um maior intercâmbio econômico e de uma presença maior do Brasil no mercado internacional, mas também a estimular os incipientes elementos de multipolaridade da vida internacional contemporânea. A democratização das relações internacionais sem hegemonias de qualquer espécie é tão importante para o futuro da humanidade quanto a consolidação e o desenvolvimento da democracia no interior de cada Estado”, disse Lula.
Argumentos hipócritas
Na torre de comando das atuais candidaturas da direita os painéis de controle revelam abertamente os fios que ligam as suas propostas com as práticas da “era FHC”. Pode-se dizer, portanto, que as candidaturas de Dilma Rousseff, de um lado, e de Marina Silva e Aécio Neves, de outro, representam ideais republicanos e antirrepublicanos. A primeira defende a ideia de que o Brasil entrou firme em sua fase moderna quando o Estado deu prioridade à acumulação de capital físico (máquinas, equipamentos e instalações industriais) — política adotada, sobretudo, pela “era Vargas”, basicamente por meio do BNDES, da Telebrás, da Eletrobrás, da Siderbrás, da Nuclebrás e da Petrobrás. A segunda é abertamente contrária à participação do Estado na economia.
Não há problema em defender publicamente essa plataforma política e econômica da direita. O problema aparece quando ela se esconde em argumentos hipócritas. Para os ideólogos das candidaturas de Marina Silva e Aécio Neves — principalmente certos prelados da mídia —, é fácil falar que o país está entregue aos “corruptos” e aos “incompetentes”; eles fazem e desfazem, sem dar satisfações a ninguém, e por isso difundem suas torpezas a torto e a direito. Imaginam-se donos do país, árbitros da vida e do destino dos brasileiros. Isso tem sua lógica, obviamente. Se dissessem a verdade seriam esmagados pela vontade popular. A verdade, como disse um mestre, é revolucionária.
*Osvaldo Bertolino é jornalista, editor do Portal Grabois e colaborador da revista Princípios.