Prabhat Patnaik: Os perigos da distribuição regressiva do rendimento

A época do orçamento está prestes a iniciar e dentro em breve haverá sabichões a aparecerem na televisão para dizer ao governo indiano o que ele deveria fazer.

Por Prabhat Patnaik*

Índia economia - WikiCommons

O conselho típico será: restringir ou abandonar os esquemas "populistas" da UPA (Aliança Progressiva Unificada); utilizar os fundos gerados por tais restrições para dar "incentivos" aos capitalistas para estimular o crescimento, de modo a que a economia indiana – a qual tem estado lamentavelmente estagnada nos últimos tempos – experimente uma reanimação. A moral da estória deles, em suma, seria: uma redistribuição de rendimento dos pobres para os ricos é boa para o crescimento. Será de fato assim?

Argumento errado

O argumento para esta posição é como se segue. Se o governo tira uma rúpia (moeda indiana) do pobre, então o seu consumo cai em uma rúpia; se esta rúpia for dada aos capitalistas (ou geralmente aos ricos, através dos quais ele indiretamente chegará às mãos dos capitalistas), então eles gastam-na em "investimento", isto é, aumentando o stock de capital que já têm e portanto o stock de capital do país.

Portanto uma rúpia transferida do pobre para o rico leva a uma mudança do consumo para o investimento (um facto que não é alterado mesmo que o rico também consuma uma parte da rúpia e contribua para o investimento só com a parte restante). Uma vez que o crescimento de uma economia depende do investimento, uma tal comutação do consumo para investimento aumentaria o crescimento da economia, de modo que no longo prazo mesmo os pobres estariam em melhor situação com essa redistribuição regressiva do rendimento do que na sua ausência.

Contudo, este argumento está completamente errado. Ele presume que tudo o que não é consumido é automaticamente investido. Os economistas utilizam o termo "poupanças" para indicar a diferença entre rendimento e consumo (o termo, a propósito, significa só isto e nada mais). O argumento acima, dito de modo diferente, baseia-se portanto na suposição de que todas as "poupanças" são automaticamente investidas, o que é uma proposição absurda, por vezes mencionada como "Lei de Say" pois foi o economista francês Jean Baptiste Say (ridicularizado por Marx como o "trivial" Monsieur Say) que a propôs originalmente. Seu absurdo é evidente como se verifica pelo facto de que se a Lei de Say fosse válida então nunca poderia haver quaisquer crises de "super-produção" sob o capitalismo.

Vejamos porque. Se um valor de Rs100 de bens e serviços forem produzidos numa economia, então um valor de Rs100 de rendimento é gerado de tal produção; estes rendimentos são parcialmente consumidos e se a parte não consumida (ou "poupada" segundo a linguagem dos economistas) for automaticamente investida, então tudo do rendimento total, isto é, a parte consumida e a investida tomadas em conjunto, gera procura por bens e serviços a qual deve chegar a 100 rúpias no agregado. A procura agregada deve portanto ser sempre igual ao produto agregado, descartando-se qualquer possibilidade de "superprodução".

Nesta óptica, o único problema que se pode levantar numa economia é que a composição da procura possa não corresponder à composição do produto, isto é, que possa haver demasiadas camisas produzidas em relação à procura de camisas e muito poucos pentes (digamos) em relação à procura de pentes. Mas tais discrepâncias acabam ordenadas ao longo do tempo através do movimento do capital e do trabalho de uma esfera para a outra. Neste exemplo da produção de camisas e de pentes, eles não provocam depressões (slumps) para a economia como um todo, as quais são crises da superprodução agregada quando mais [quantidade] de todos os bens é produzida em relação à procura.

Tais crises de superprodução que caracterizam o capitalismo verificam-se porque nem todas as "poupanças" são automaticamente investidas. Pelo contrário, a decisão de quanto investir é tomada examinando o futuro: que fluxos de retorno uma fábrica vai proporcionar ao longo do seu tempo de vida, se este fluxo de retornos, quando comparado com o custo de instalação da fábrica, proporciona uma taxa de retorno que é alta bastante em relação à taxa de juro de empréstimos e assim por diante. Se o futuro parece negro para os capitalistas, então eles investem menos, ao passo que se o futuro parecer brilhante então investem mais.

No exemplo acima, se, quando um valor de 100 rúpias de mercadorias é produzido e portanto é gerado um valor de 100 rúpias de rendimento, apenas 65 rúpias forem gastas no consumo e, devido a expectativas de um futuro negro, apenas 15 rúpias de valor de investimento for efetuado, então a procura agregada total (consumo mais investimento) é de apenas 80 rúpias. Nesse caso o valor de rúpias 100 de bens não pode ser produzido; se por acaso o forem, então stocks não vendidos acumular-se-ão, razão pela qual os produtores capitalistas reduzirão a produção e o desemprego subirá. Estaríamos em meio a uma crise de superprodução.

Há dois novos pontos a serem observados aqui. Primeiro, se bem que as expectativas dos capitalistas acerca do futuro (das quais depende o investimento) sejam moldadas por muitos fatores, um importante dentre eles é a experiência corrente. Se a fábrica existente não for suficientemente utilizada devido à falta de encomendas, então os capitalistas naturalmente não se sentirão inclinados a aumentar a sua capacidade; eles portanto restringem o investimento. Acontece o oposto quando a capacidade existente é quase plenamente utilizada. Assim, a experiência corrente quanto à procura, em relação à capacidade produtiva das fábricas e equipamentos, é um importante fator subjacente a decisões de investimento.

Em segundo lugar, as decisões de investimento levam tempo para frutificar. Assim, o que é realmente gasto hoje em projetos de investimento, digamos no metro de Kochi , já foi decidido anteriormente. A experiência presente em relação à capacidade de utilização afeta portanto não tanto os gastos presentes em investimento mas sim as decisões atuais respeitantes a futuros gastos de investimento.

Agora, mantendo em mente todos estes fatores, vamos ver o que acontece quando há uma redistribuição de rendimento dos pobres para os ricos. Se uma rúpia é transferida do pobre para o rico, a despesa em consumo do pobre cai quase uma rúpia; mas a do rico não ascende na mesma medida, uma vez que o rácio consumo-rendimento do rico é sempre mais baixo do que o do pobre. Assim, toda redistribuição regressiva do rendimento reduz o consumo agregado. Por outro lado, a despesa de investimento em qualquer período é em grande medida determinada por decisões passadas e não muda muito no imediato. Portanto, uma vez que a despesa em consumo cai e a despesa em investimento não muda grande coisa, a procura agregada (a qual é a soma dos dois) cai; a produção é reduzida e o desemprego aumenta. Desencadeia-se uma crise de superprodução.

Mas quando isto acontece, a capacidade ociosa aumenta, de modo que decisões quanto a investimentos no futuro são reduzidas ao invés de serem aumentadas, como era a suposta intenção original por trás da redistribuição regressiva de rendimento. Em suma, uma redistribuição regressiva de rendimento, efetuada ostensivamente para aumentar o investimento a expensas do consumo, acaba por reduzir ambos – e assim provocar uma crise de superprodução.

Isto é uma proposição tão simples e óbvia que nenhuma quantidade de sofismas ou prestidigitação matemática pode "refutá-la". Mas então levanta-se a questão: pode uma mudança na distribuição do rendimento em favor dos ricos alguma vez ter uma influência positiva sobre decisões de investimento? Pode, mas só sob as seguintes circunstâncias:

Enquanto a mudança regressiva na distribuição rendimento provocará necessariamente uma contração da procura agregada, pelas razões já discutidas, no período em causa ela pode entusiasmar especuladores a terem expectativas eufóricas acerca do futuro, as quais podem dar início a uma nova "bolha" nos preços dos ativos. Quando há uma tal "bolha" nos preços dos ativos, aqueles que os possuem tornam-se mais ricos naquele momento. Isto pode levá-los a aumentar gastos no consumo, como fazer férias mais caras, comprar iates, etc, e portanto tem algum efeito positivo sobre o investimento. E se o ativo for reprodutível, como uma casa, então uma "bolha" no preço dos ativos – a qual eleva seus preços muito além do seu custo de produção (ou mais precisamente do custo de construção) – levará a maior construção de casas, isto é, a mais investimento. Da mesma forma, uma "bolha" nos preços de ativos financeiros tornaria mais barato obter financiamento e portanto pode estimular maior despesa de investimento no futuro. Em suma, de uma redistribuição regressiva do rendimento pode decorrer um efeito positivo sobre o investimento através da criação de "bolhas". (Uma "bolha" também terá um efeito positivo sobre o consumo como vimos, mas no todo é provável que o consumo contraia devido à tal redistribuição regressiva do rendimento).

Mas este facto só por si não é suficiente para assegurar que o fluxo de investimento nos períodos seguintes realmente aumente. O efeito "bolha" positivo, que estimula o investimento, deve ser maior do que o efeito "capacidade de utilização" negativo, na redução do investimento, se o fluxo do mesmo nos períodos seguintes for maior do que teria sido na ausência da redistribuição regressiva do rendimento. Mas se não for, e se o efeito negativo predominar, então também ganhará ímpeto, de modo que o seu predomínio se tornará cada vez maior ao longo do tempo.

O pobre sofre o máximo

Com isto, vamos agora voltar-nos para o exemplo indiano. Na Índia já há um boom no mercado de ações que tem estado em curso desde há algum tempo. A estagnação da economia, especialmente no setor manufatureiro, verificou-se mesmo em meio ao boom do mercado de ações. Mais ainda: o declínio na produção do setor de bens de capital em 2013-14 em comparação com o ano anterior sugere que o investimento, especialmente o investimento corporativo (precisamente o elemento que deveria ter obtido um impulso com o boom do mercado de ações), tem sido reduzido apesar deste boom. Portanto o efeito "bolha", que supostamente atua numa direção positiva no fluxo futuro de despesas de investimento, não parece estar a ter grande impacto.

Nesta situação, se houver uma redistribuição regressiva do rendimento afastando-o dos pobres, então o "efeito capacidade de utilização" negativo é quase certo vir a dominar, provocando um rebaixamento não só do consumo atual e do perfil do consumo futuro como também do perfil de investimento futuro. Portanto, tomando a economia como um todo, a tal redistribuição regressiva do rendimento não levará à ultrapassagem da estagnação que estamos a experimentar. Temos que admitir que os poucos magnatas corporativos para os quais se verificaria esta redistribuição regressiva do rendimento dela se beneficiariam, mas a economia como um todo não. Ao contrário, a estagnação da economia, cuja superação fora mencionada como a razão para redistribuição, seria agravada.

Qualquer redistribuição regressiva do rendimento é repugnante devido à extorsão que impõe ao pobre. Mas mesmo o argumento utilizado para justificá-la, nomeadamente de que superaria a estagnação, carece de validade – na verdade aconteceria o oposto. Longe de serem beneficiários de tal redistribuição no longo prazo, os pobres, que seriam suas vítimas imediatas, sofreriam tanto agora como também, ainda numa maior medida, no futuro.

*Prabhat Patnaik é um economista indiano marxista e comentarista político que lecionou na Universidade Jawaharlal Nehru de 1974 a 2010, quando se aposentou.

Fonte: People's Democracy
Tradução do portal Resistir.info