A Copa e a construção do sentido de povo
Que retomem nossos desafios em saúde e educação, mas que nos motivem à defesa da ora atacada Política Nacional de Participação Social.
Por Fábio de Sá e Silva*
Publicado 13/06/2014 17:14
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Há mais de dez anos, quando eu era dirigente de entidade estudantil, organizamos um evento com o jornalista Carlos Heitor Cony, a fim de debater a proliferação de publicações especializadas na cobertura de futilidades e de problematizar a emergência, entre nós, de uma “cultura de massa”. O assunto havia adquirido especial saliência quando, em paródia à Revista Caras, Ziraldo e outros cartunistas lançaram a Revista Bundas, que mais ou menos um ano depois sairia de circulação por problemas financeiros.
Como bons alunos da USP, nossa abordagem para essa questão era sempre um pouco na linha do que Antonio Prata teve a felicidade de batizar de “meio intelectual, meio de esquerda”. Por essas lentes, os produtos culturais que se disseminavam em nosso meio com grande velocidade e capilarização, como o axé e suas coreografias, eram um sintoma da degeneração dos hábitos culturais dos indivíduos e grupos sociais que, por sua vez, refletia a tendência de mercantilização da vida social subjacente ao neoliberalismo dos anos 1990.
Para certa decepção de nossa parte, Cony não comprou integralmente aquela embocadura. Nem por isso, todavia, deixou de trazer elementos interessantes para o nosso debate. Um deles, que nunca mais me saiu da cabeça, foi a distinção que traçou entre os conceitos de “massa” (da expressão “cultura de massa”, que dava o mote de nosso evento) e “povo”. “Massa”, para o jornalista, remetia a algo que, embora conserve unidade, tem pouca consistência e, por isso mesmo, é facilmente moldável pela ação de forças externas.
Já “povo” remetia a algo que não apenas tem unidade, mas também – e principalmente – tem um propósito e, por isso, é capaz de resistir à ação de forças externas e até mesmo de se impor frente a estas. Se há, portanto, algum problema na formação e propagação indiscriminadas de culturas de massa, depreendia eu das palavras de Cony, é que podem indicar a fragilidade de um conjunto que permanece incapaz de se dizer povo e, em consequência, a suscetibilidade desse agrupamento social a manipulações de toda ordem.
Lembrei-me dessas lições antigas na memória quando, aquecendo-me para a abertura da Copa do Mundo de 2014, resolvi assistir novamente a cerimônia ocorrida na África do Sul, há mais ou menos quatro anos.
A organização da Copa na África do Sul teve problemas iguais ou maiores do que mesmo os espíritos mais críticos encontrarão no Brasil. Se aqui se reclama da construção de estádios de grande porte em cidades que, em princípio, não têm times de futebol competitivos (se bem que os estádios não foram feitos apenas para abrigar jogos de futebol, dirá Dilma), na África do Sul estádios parecidos foram construídos em lugares em que sequer havia um mínimo de vida urbana. Como resultado, muitos deles estão inúteis ou têm sido até mesmo demolidos.
“É uma forma de eliminarmos os custos de manutenção, ao mesmo tempo em que geramos algum emprego”, disse-me um amigo sulafricano, em nossa última conversa a respeito deste assunto, há cerca de um mês.
Em relação ao da África do Sul, no entanto, o caso brasileiro tem diferença mais marcante que essa. É que, se aqui a preparação para o evento parece ter corrido em bases melhores, os sentimentos gerados sobre a Copa foram seguramente muito piores.
Colaborou para isso a convergência inusitada de dois extremos ideológicos: um extremo (vamos dizer, sem receios, à direita do espectro político), que transita em meio a elites globais; e outro (reunindo parte da esquerda), mobilizado em defesa de causas populares.
O extremo da direita procurou anunciar desde o princípio a inviabilidade da Copa, como o reflexo da incapacidade do Brasil para sediar um evento como esse. Estádios não ficariam prontos, aeroportos não teriam condições de receber visitantes, faltaria luz, enfrentaríamos epidemias de dengue.
Parece haver mais em jogo aqui que uma convicção racionalmente formada ou mesmo o “complexo de vira-latas”: transformar a Copa na figura de linguagem que ilustra a nossa tendência ao fracasso é a maneira como este segmento encontra para afirmar sua condição distinta de quem frequenta restaurantes, hotéis, aeroportos e estádios “de primeiro mundo” (é bom questionar, a esse respeito, se a expressão “Imagina na Copa” teria se espalhado como se espalhou, se não houvesse sido incorporada no script de uma novela da Globo).
Já o extremo da esquerda teve dificuldades iniciais para obter visibilidade.
Organizado em Comitês Populares da Copa, esse segmento atuou incansavelmente – com maior ou menor grau de sucesso –, na tentativa de ampliar os ganhos e reduzir os prejuízos para populações locais. Mais que justo.
Foi, no entanto, a eclosão das manifestações de junho de 2013 – originalmente motivadas por uma demanda antiga por tarifa zero em grandes centros urbanos –, que turbinou as expectativas e a própria autoimagem desses que, até então, perguntavam “Copa para quem?”.
Animados ao perceberem que a população tomou as ruas, tendo como um de seus slogans o obscuro pleito por “Hospitais e Escolas padrão Fifa”, esse extremo da esquerda quis dar um passo adiante e propor que “Não [iria] ter Copa” – palavra de ordem que permitiu reunir uma número maior de parceiros, fossem eles os desinformados, para os quais a construção dos Estádios “tirava dinheiro” da saúde ou da educação, os descontentes “contra tudo o que está aí”, ou os Black Block, para os quais… Bem, ninguém ainda entendeu bem qual é o ponto.
Faltando poucos meses, assim, para início do evento, muitos de nós nos víamos espremidos entre os coros de “não vamos conseguir promovê-lo” e de “não vamos permitir que ele ocorra sem que as nossas demandas (a essa altura já obscuras e pouco conectadas ao contexto da própria Copa) tenham sido atendidas”.
Mas essa confluência não produziu mais que uma tensão difusa no ar, a qual retardou mas não impediu que o país enfim entrasse no clima da Copa. A honrosa exceção, como se sabe, ficou por conta do MTST em São Paulo, que – mesmo tendo radicalizado o discurso em algum momento, aderindo ao “Não vai ter Copa” –, foi capaz de manter uma pauta realista, objetiva e que o habilitava a dialogar com políticas públicas estruturadas, em especial o programa Minha Casa Minha Vida. Dias antes da abertura da Copa, o movimento fechava uma negociação com Dilma e Haddad, envolvendo a compra e a destinação de áreas para novos projetos habitacionais, bem como mudanças nos critérios do Minha Casa Minha Vida.
É certo que, na África do Sul, também houve muitos coros críticos à Copa. Antes, durante e depois da competição foram registrados protestos, greves e insatisfações com as tarifas das obras e serviços públicos criados a partir de sua preparação. Mas ao assistir à abertura do evento, tive a sensação de que os sulafricanos podem ter conseguido produzir uma síntese muito mais rica e promissora dessas sensações do que as que até agora temos visto ocorrer no Brasil. Ao menos é como interpretei a mensagem de Waving Flag, uma das principais músicas-tema daquela Copa, cantada na festa por K’naan – e, segundo consta, uma expressão de sua própria história, marcada pela fuga da guerra civil na Somália, seu país de origem:
Nascido para ocupar um reino/ Mais forte que o de Roma
Mas uma zona de pessoas pobres/ vulnerável à violência
Que, entretanto, é minha casa/ Tudo o que eu pude conhecer.
O lugar onde eu cresci/ Ruas pelas quais passeávamos
Saído da escuridão/ Eu fui mais longe
Entre os mais árduos sobreviventes
Aprendi com as ruas/ O que pode ser desolador
Sem aceitar derrota, desistência ou recuo.
Então batalhamos/ lutando para comer
E nos perguntamos/ Quando seremos livres
Então esperamos pacientemente/ Por esse dia inevitável
Ele não está tão longe/ mas por agora dizemos
Quando eu crescer/ serei mais forte
Chamar-me-ão liberdade/ como uma bandeira a tremular
Do centro do palco, sob os olhares de todo o mundo, assim, K’naan e os sulafricanos abriram a Copa contando suas histórias como as de quem lutou e luta por melhores condições de vida, mas que também tem maturidade para olhar para trás e colocar as coisas em perspectiva. E, mais do que isso, sabe distinguir os que realmente limitam sua plena possibilidade de realização para, diante desses, reafirmar a convicção sobre os lugares e os destinos que suas lutas, afinal, lhes reservam. Histórias, enfim, não de “massa”, mas de “povo”.
Tantas guerras/ Acertos de contas
Trazendo-nos promessas/ Deixando-nos pobres
Eu escuto eles dizerem/ Que o amor é o caminho
O amor é a resposta, é o que dizem!
Mas veja como eles nos tratam/ fazem-nos acreditar
Lutamos suas batalhas/ e eles nos enganam
Tentam nos controlar/ Mas não podem nos deter
Porque seguimos em frente/ como “Buffalo Soldiers”
Na abertura da Copa de 2014, nós – mais massa que povo –, não teremos um K’naan cantando nada equivalente. Mas entre os extremos da esquerda e da direita, podemos vislumbrar espaço para compormos e entoarmos uma canção bonita como a dele. Com versos que resgatem o nosso déficit de moradia, mas que nos levem a promover uma reforma urbana baseada na radical progressividade do IPTU, buscando reverter a tendência de que nossas cidades se transformem em centros de especulação, que estimulam a lógica de “comprar para investir”.
Que retomem nossos desafios em saúde e educação, mas que nos motivem à defesa da ora atacada Política Nacional de Participação Social, sem a qual o povo dispõe de muito menos instrumentos para orientar e fiscalizar as políticas e os investimentos públicos nessas áreas. Que desnudem nossos problemas de segurança pública, mas que nos levem a repensar nossa demanda por “Rota na rua”, a qual contribui para que as polícias continuem agindo com muita violência e pouca efetividade.
Que demonstrem a justa e necessária ojeriza à Fifa, mas que resultem em novo impulso para instituir a taxação do fluxo de capitais internacionais que pleiteávamos há mais de dez anos, nos primeiros Fóruns Sociais Mundiais, sem a qual jamais será possível controlar a FIFA e nenhum dos centros autônomos de poder assemelhados a ela no âmbito internacional.
E que critiquem a mercantilização do futebol, mas estimulem debate sobre como transformá-lo em patrimônio comum da humanidade, restringindo a possibilidade de que seus talentos e emoções sejam apropriados monopolisticamente por poucos, como a Fifa, a CBF e algumas corporações. E quem sabe assim, nos chamarão liberdade/ como uma bandeira a tremular.
*Fábio de Sá e Silva é PhD em Direito, Política e Sociedade pela Northeastern University e professor substituto de Teoria Geral do Direito na Universidade de Brasília (UnB).