Salim Lamrani: Venezuela e a Anistia Internacional

Desde fevereiro de 2014, manifestações violentas, limitadas aos bairros ricos de algumas cidades, entre elas Caracas, sacodem a Venezuela.

Por Salim Lamrani, na Opera Mundi

O presidente venezuelano, Nicolás Maduro iniciou na quarta-feira (26) a Conferência Nacional de Paz com um pedido de diálogo "amplo e tolerante" no palácio presidencial de Miraflores, em Caracas. | Foto: Presidencia/AFP

O setor golpista da oposição – que acaba de sofrer quatro derrotas eleitorais em um ano e perdeu 18 de 19 eleições desde 1998 – em escrutínios elogiados por todas as instituições mundiais, desde a OEA (Organização dos Estados Americanos) até a União Europeia, orquestrou esses atos, que custaram a vida de mais de 30 pessoas, entre elas vários membros das forças da ordem [1].

Incapaz de chegar ao poder pela via legal e democrática, a oposição decidiu voltar aos métodos violentos que usou em 2002 e que desembocaram em um golpe de Estado contra o presidente legitimamente eleito Hugo Chávez. A comunidade internacional condenou esses novas ataques contra a ordem constitucional e deu seu apoio ao governo de Nicolás Maduro.

Assim, a OEA expressou, por unanimidade de seus 35 membros, menos 3 (Estados Unidos, Canadá e Panamá) seu “apoio total […] [ao] governo democraticamente eleito da Venezuela” [2]. Da mesma forma, os 12 países da Unasul (União de Nações Sul-americanas) declararam de forma unânime sua “solidariedade” ao “governo democraticamente eleito dessa nação” e condenaram “os recentes atos de violência” da oposição [3].

A Anistia Internacional é uma organização que defende os direitos humanos, a democracia e o Estado de direito no mundo. Seria natural e lógico que denunciasse os atentados contra a democracia venezuelana orquestrados pela extrema direita do país e que desse seu apoio às autoridades legítimas da nação. Não foi o caso.

Pior ainda, no dia 12 de março de 2015, a Anistia Internacional publicou um comunicado sobre a Venezuela em que pede ao governo e à oposição que “garantam o respeito aos direitos humanos [4]”. Situou, assim, em um mesmo plano, as autoridades legítimas, que sofrem violência e que tentam restaurar a ordem dentro da lei, e a extrema direita golpista, cujos atos causaram a morte de 31 pessoas e danos materiais de várias dezenas de milhões de dólares (lojas de alimentos destinadas às classes populares incendiadas, escritórios do canal de televisão pública VTV saqueados, sedes ministeriais atacadas etc.) [5].

Para ilustrar seu comunicado, a Anistia Internacional publicou uma foto de um jovem estudante preso pela Guarda Nacional. A organização poderia ter eleito publicar também uma das numerosas fotos que mostram esses mesmos estudantes, com bombas incendiárias em mãos, destruindo edifícios públicos ou armados com pistolas e desfilando encapuzados pelas ruas, semeando o terror entre os moradores, com a finalidade de dar uma imagem equilibrada da situação na Venezuela. Não foi o caso, e essa escolha partidária lança sombra sobre a imparcialidade da Anistia Internacional, e, por conseguinte, sobre sua credibilidade [6].

A Anistia Internacional, por meio de Guadalupe Marengo, diretora-adjunta do programa Américas, foi inclusive mais longe. Denunciou “as proclamações cada vez mais violentas das autoridades”, as quais “ameaçam acabar com o respeito aos direitos humanos e com o Estado de direito”. Em nenhum momento a Anistia Internacional citou as palavras mencionadas nem nomeou essas autoridades. Há uma razão para isso: a realidade é oposta à imagem que a organização de defesa dos direitos humanos apresenta [7].

Na verdade, todos os dirigente venezuelanos, sem qualquer exceção, desde o presidente Nicolás Maduro, até os ministros e parlamentários, lançaram chamados ao diálogo e à calma e convidaram a oposição a expressar seus desacordos pela via democrática. Assim, Maduro multiplicou os pedidos por harmonia e expressou sua objeção à todas as formas de vioência. “Nossa vitória será a paz e consolidaremos a justiça. Devemos nos manter unidos e vencer com a paz” [8].

A OEA não cometeu erro semelhante e expressou, ao contrário da Anistia Internacional, seu “total apoio e alento às iniciativas e esforços do governo democraticamente eleito da Venezuela […] para que continue […] avançando no processo de diálogo nacional” [9]. A Unasul, por sua vez, expressou seu apoio e decidiu “apoiar os esforços do governo da República Bolivariana da Venezuela em promover o diálogo” [10].

A Anistia Internacional decidiu ignorar todas as declarações do governo legítimo a favor do diálogo e do respeito às instituições e exigiu “das autoridades que indicassem de maneira absolutamente clara que sua prioridade é o respeito aos direitos humanos e ao Estado de direito” [11], trocando os papéis entre os autores dos atos de violência e o presidente Maduro, que tenta restabelecer a ordem dentro da lei, cumprindo assim seu dever executivo. No entanto, além de clamar pela resolução pacífica das diferenças políticas, o governo bolivariano repetiu várias vezes — desde o começo das manifestações — que a Constituição prevaleceria. “Nada nos afastará do caminho da Pátria e da via da democracia”, disse Nicolás Maduro [12]. A Anistia Internacional decidiu ocultar deliberadamente essas declarações.

O comunicado da Anistia Internacional dedica uma frase à oposição com um tom diplomático que contrasta com a virulência usada em relação às autoridades legítimas: “Exortamos, por outro lado, os dirigentes da oposição à lançar um chamado a seus partidários para recomendar-lhes que não usem violência, particularmente contra as pessoas cujas opiniões políticas diferem das suas”. Em nenhum momento, a Anistia Internacional mencionou ou condenou as declarações dos principais dirigentes dessa mesma oposição que, publicamente, fizeram um chamado ao rompimento da ordem constitucional [13].

A organização de defesa dos direitos humanos poderia ter citado as palavras de Leopoldo López, líder do partido Vontade Popular, que participou do golpe de Estado de abril de 2002, e que convocou a insurreição em janeiro de 2014. “Queremos lançar um chamado aos venezuelanos […] que nos levantemos. Convocamos o povo venezuelano a dizer ‘já basta’ […]. Com uma meta a ser discutida: ‘a saída”. Qual é a saída para esse desastre? [14]. Enquanto os atos de violência causaram a morte de 31 pessoas, no dia 19 de março de 2014, López voltou a encorajar seus partidários a cometerem mais violência. “Faço um chamado a todo o país a manter e aumentar a pressão até quebrar a ditadura” [15]. A Anistia Internacional poderia ter condenado essa convocação pública a derrubar um governo democraticamente eleito. Não foi o caso.

A Anistia Internacional poderia ter mencionado as declarações da deputada da oposição Maria Corina Machado, que pediu ao venezuelanos que se revoltassem: “O povo da Venezuela tem uma resposta: ‘rebeldia, rebeldia’. Alguns dizem que devemos esperar eleições em alguns anos. Podem esperar os que não conseguem alimentos para seus filhos? Podem esperar os empregados públicos, os camponeses, os comerciantes, de quem tiram o direito ao trabalho e à propriedade? A Venezuela não pode esperar mais” [16]. Por acaso a Anistia condenou essas declarações? De maneira alguma.

Ao apoiar a oposição golpista venezuelana, ao silenciar os crimes cometidos pela extrema direita, ao manipular a realidade factual, ao se pronunciar abertamente contra o governo legítimo de Nicolás Maduro, contra a democracia venezuelana e contra a vontade majoritária do povo venezuelano expressada nas urnas, a Anistia Internacional ridiculariza seus princípios e sua razão de ser, ou seja, a luta pelos direitos humanos. A organização internacional engana deliberadamente a opinião pública e trai os valores aos quais milhares de militantes da emancipação humana de todo o mundo aderiram.

* Doutor em Estudos Ibéricos e Latino-americanos, Salim Lamrani é professor-titular da Universidade de la Reunión e jornalista, especialista nas relações entre Cuba e Estados Unidos. Seu último livro se chama Cuba. Les médias face au défi de l’impartialité, Paris, Editions Estrella, 2013, com prólogo de Eduardo Galeano.

Notas:

1. Agencia Venezolana de Noticias, "Fallece otro efectivo de la GNB por violencia fascista en Táchira", 19 de março de 2014.
2. Organisation des Etats américains, "Consejo permanente aprobó declaración sobre la situación em Venezuela", 7 de marzo de 2014. http://www.oas.org/es/centro_noticias/comunicado_prensa.asp?sCodigo=C-084/14 (site consultado no dia 18 de março de 2014).
3. Union des nations sud-américaines, "Resolución", 12 de marzo de 2014. http://cancilleria.gob.ec/wp-content/uploads/2014/03/RESOLUCI%C3%93N-UNASUR-MARZO-2014.pdf (site consultado no dia 19 de março de 2014).
4. Amnesty International, "Climat de violence au Venezuela : le gouvernement et l’opposition doivent garantir le respect des droits humains", 12 de março de 2014. http://www.amnesty.fr/AI-en-action/Violences/Armes-et-conflits-armes/Actualites/Venezuela-les-droits-humains-etouffes-11151 (site consultado em 18 de marzo de 2014).
5. Agencia Venezolana de Noticias, "Grupo fascista encapuchado atacó sede del Ministerio del Ambiente en Táchira", 20 de março de 2014.
6. Amnesty International, "Climat de violence au Venezuela : le gouvernement et l’opposition doivent garantir le respect des droits humains", op. cit.
7. Ibid.
8. Agencia Venezolana de Noticias, "Maduro: Nuestra victoria será la paz", 19 de março de 2014.
9. Organisation des Etats américains, "Consejo permanente aprobó declaración sobre la situación en Venezuela", op. cit.
10. Union des nations sud-américaines, "Resolución", op. cit.
11. Amnesty International, "Climat de violence au Venezuela: le gouvernement et l’opposition doivent garantir le respect des droits humains", op. cit.
12. Salim Lamrani, "25 verdades sobre as manifestações na Venezuela", Opera Mundi, 23 de fevereiro de 2014.
13. Amnesty International, "Climat de violence au Venezuela: le gouvernement et l’opposition doivent garantir le respect des droits humains", op. cit.
14. Salim Lamrani, "25 verdades sobre as manifestações na Venezuela", Opera Mundi, op. cit.
15. EFE, "Opositor Leopoldo López pide a venezolanos aumentar presión ‘hasta quebrar la dictadura'", 19 de março de 2014.
16. Salim Lamrani, "25 verdades sobre as manifestações na Venezuela", Opera Mundi, op. cit.