Emir Sader: A Argentina sob ataque especulativo
O capital especulativo se volta concentradamente sobre as economias do Sul do mundo, como resultado das politicas norte-americanas de manobra protecionista a favor da sua moeda. A América Latina é um alvo prioritário dessas operações e a Venezuela e a Argentina, em particular.
Por Emir Sader*, na Carta Maior
Publicado 11/02/2014 13:47
O governo destes dois países, sob forte impacto de ações especulativas, cederam e desvalorizaram de maneira significativa suas moedas. Mas, como sempre, o mercado quer mais sangue, e segue as pressões, buscando maiores concessões, inclusive a continuidade das desvalorizações.
A Argentina sofre, ao mesmo tempo, ainda, as consequências da renegociação das suas dívidas externas, em que os que não aceitaram os seus termos (apenas 8%, mas que apelam para as instituições internacionais a seu favor), mais os que foram objeto de ações posteriores do governo – como a espanhola Repsol, que perdeu a YPF -, pressionam fortemente pela manutenção do isolamento de créditos internacionais para o país.
Como resultado desses fatores, se acelera a inflação – como consequência direta da desvalorização da moeda – e o desabastecimento, conforme o governo tenta mecanismos de controle dos preços. Todo o jogo se faz não apenas em função de aumentar os lucros do capital financeiro, mas também no jogo da sucessão política do próximo ano, buscando sufocar o governo e tirar-lhe bases de apoio. As campanhas salariais que se iniciam agora vão ser outro braço de ferro entre o governo e centrais sindicais opositoras, em condições de aumento da inflação real, que vai de 25% para os cerca de 30% atuais.
Carta Abierta é um movimento, inédito na Argentina, que congrega a intelectuais marxistas e da esquerda peronista, publica periodicamente análises, como essa, que agora revela o grau de alerta na esquerda argentina. Leia abaixo, na íntegra, o documento dos intelectuais argentinos advertindo para o risco de uma restauração oligárquica no país:
Não é sempre que surge a ideia de forte tradição ao longo do tempo, memorável nas grandes jornadas libertárias do século 19 na América Latina e na Europa, que faz parte de um chamado urgente e de uma inevitável vocação de ativismo. Um punhado de grandes empresas (Cargill, Noble Argentina, Bunge Argentina, Dreyfus, Molinos Río de la Plata, Vicentin, Aceitera General Deheza, Nidera e Toepfer) exporta mais de 90% dos grãos, óleo e farinha de soja argentinos. Base histórica da riqueza e da produção do país, organizaram um cerco financeiro sobre o governo, forçando a adoção de medidas difíceis e comprometedoras para o futuro do país, como a desvalorização – apesar de, no momento do xeque-mate, o próprio governo ter deixado passar essa asfixiante pressão do mercado exportador para poder retomar o controle depois de uma desvalorização não desejada.
É grave. Não é mais um simples episódio da história econômica nacional. Todas as grandes organizações agropecuárias têm fortes vínculos internacionais, financeiros, comunicacionais e sempre estão preparadas para produzir a ilusão de que seus interesses coincidem com os de uma grande parte das desconcertadas classes médias argentinas. O certo é que conseguiram forçar e impor uma desvalorização do peso, indesejada pelo governo e inconveniente para a maioria da população, e têm como estratégia aprofundá-la em níveis substancialmente maiores. É preciso reconhecer isso e, em um momento particularmente dramático, repor nossas forças e nossa dignidade para a luta. Isso exigirá grandes esforços para que a desvalorização não recaia sobre os amplos estratos das classes populares, historicamente as mais prejudicadas com este tipo de medida.
A defesa dos “preços cuidados” é, neste sentido, uma tarefa primordial. É frequente ver o exagero ou grandiloquência quando se denuncia que esta situação provoca desestabilização política, mas é certo que, ainda que isto não esteja na tática imediata dos grandes grupos amparados nas novas tecnologias da globalização, em uma sociedade castigada e temerosa, o resultado de suas ações pode ser imprevisível. Esses setores proveem dos primeiros momentos da organização nacional argentina, quando se formava uma oligarquia dócil com relação à divisão internacional do trabalho, ainda que, em seu seio, não deixasse de existir a iniciativa protecionistas e uma aposta em certos modos de intervencionismo estatal no mercado de grãos e carnes, justamente na época do conservadorismo anterior à irrupção do peronismo e no contexto da grande crise.
Velhos e novos grupos, sempre poucos, mas agora com mais espessura e concentração de sua economia e que têm relação com as políticas vinculadas às potências mundiais desta etapa histórica da contemporaneidade, assediam o governo popular liderado pela presidenta Cristina Kirchner, que adotou medidas significativas para democratizar a sociedade avançando em direção à inclusão, à ampliação de direitos e à redistribuição de renda nacional a favor das maiorias nacionais, tanto das classes médias como dos setores mais carentes.
Esse assédio é possível porque ainda não foram fechadas as amplas margens de manobra que esses grupos monopólicos têm. Agora, com novas tecnologias de plantio e o amparo de grandes fábricas de sementes transgênicas – cujo uso e regulamentação devem fazer parte de um amplo debate – reorganizaram socialmente o campo da produção agropecuária, com características tão novas que os velhos produtores e arrendatários (antigamente de cunho genuinamente produtivo) decidiram se associar aos horizontes construídos com a expansão da fronteira produtiva da soja, alterando o perfil das relações econômicas e de classes sociais.
O modo de propriedade que, para muitos, significou, há um século, protestar contra os latifúndios, atualmente se expressa em uma privatização agressiva da renda agrária baseada na hipótese magna da cega rejeição às necessárias intervenções estatais, como poder público democrático representante da nação e seu equilíbrio de interesses a favor da população mais desfavorecida e castigada historicamente por ajustes e teorias sobre as restrições salariais como variáveis compensatórias que tributam o império do capitalismo globalizado. Esses atores, concentrados fundamentalmente nos pampas úmidos da Argentina, se apropriaram de maneira excludente da denominação “campo”, enquanto a maioria dos trabalhadores rurais do país, situados em outras regiões, resistem porque são ameaçados e prejudicados pelo modelo agrário instalado.
É necessário recriar a imaginação histórica de uma série de acontecimentos que precisam novamente de grande apoio popular. Quem se sentiu alguma vez convocado por um conjunto de decisões governamentais, cujos graus de imperfeição ou de erro estão – e devem estar em discussão – mas que tiveram clara vocação de autonomia e soberania nacional e social, e também de justiça emancipatória em todos os âmbitos da vida econômica, pública e cotidiana, devem novamente fazer uma análise de sua vocação política. É esperançoso o resultado dessa análise, feita por homens e mulheres que apoiam o governo, ou que já o apoiaram mas que se sentem frustrados, ou que se guiam por caminhos políticos que podem ser secundários.
Se as questões em jogo são maiores (por isso, socialistas, autonomistas, liberais, nacionalistas, radicais, peronistas, esquerdistas, republicanos são destinatários desta interpelação), devem fazer essa análise aqueles que pensam ser as grandes disjuntivas sociais, mas sem a nebulosa cortina de cinzas que os magnos catecismos da picareta do demolidor ou a pá do enterrador trazem. Uma grande restauração do velho país oligárquico está pronta para mostrar seus dentes de ferro, que seriam suas ferramentas de ajuste, que pretende, em uma transição ensinadora sirva como prólogo, por um governo que soube ter consequência em políticas opostas a essa lógica antipopular. Vêm com seu populismo de turno, seus escritores de estação, seus jornalistas de colheita unânime, ainda que talvez sem suas Juntas Reguladoras do comércio exterior, da forma como seus antepassados souberam constituir.
O que se pede é um novo estilo mobilizador, uma confluência de forças grupais e individuais, novas ideias para a defesa do valor que esta experiência significa, que não é falsa, apesar de estar cercada por grandes descuidos. Este processo transformador, conduzido por Néstor e Cristina Kirchner, tem sido uma recreação das militâncias e do fervor público nacional, ancoradas em uma longa memória popular que não tem donos, com ritualismos que talvez tenham deixado de acompanhar os processos populares, mas não por serem repetitivos. Este projeto, amplo, democrático e plural, possui uma juventude necessária que nenhum momento histórico deve rejeitar, mas sim realocar dentro de suas vastas alianças sociais, atualmente debilitadas.
Agora devemos nos sentir prontos para uma nova mobilização, preparada com responsabilidade e passos precisos que ramifiquem essa convocação. Os temas cruciais que estão nas bocas e nos corações podem se transformar em novos cânticos, deverão se tornar motivo de interesse massivo por medidas e mudanças institucionais transcendentes e necessárias há tempos, para avançar em mecanismos que estabeleçam a administração estatal do comércio exterior.
Nosso país viu ciclicamente seus projetos de desenvolvimento nacional autônomo ameaçados, boicoteados e truncados pela restrição externa, quer dizer, pela insuficiência de divisas. As divisas são o recurso chave para a continuidade e aprofundamento de dinâmicas progressivas. Portanto, é indispensável subtrair a disposição sobre as mesmas da chantagem do monopólio e garantir controle governamental. Será necessário avançar na criação das instituições que tornem isso possível, o que trará uma disputa de interesses que não poupará conflitos, razão por que se impõe a geração de um movimento de opinião e a mobilização social (como aconteceu com a Lei de Meios Audiovisuais) que acompanhe a conquista desse objetivo autenticamente democrático.
A soberania na disposição das divisas vai precisar de avanços em outras áreas para reforçar ou estabelecer o controle estatal e social (por exemplo, nos portos privados), maiores regulações ao capital especulativo e ao sistema financeiro, especialmente aos bancos estrangeiros, entre outros. Estes objetivos não podem ser outra coisa que não as bandeiras de um patriotismo constitucional e social, que perceba as armadilhas e dificuldades, e não se atemorize quando precisar sair diante da esfera pública para destacá-las e conjurá-las.
Neste momento de agudo perigo para as esperanças e para o futuro de milhões de compatriotas, sentimos a necessidade deste chamado que recorre aos ecos de muitas das lutas encarnadas por várias tradições políticas do países. Escutemos todos, escutemos a tempo.
Espaço Carta Abierta
*Emir Sader é sociólogo e cientista político