O que os rolezinhos e a ida às lojas na Venezuela têm em comum?
No final do ano passado, multidões de venezuelanos lotaram lojas do país depois de o presidente Nicolás Maduro ordenar o controle dos preços de bens de consumo. Segundo o governo, alguns empresários hiperinflacionavam o valor dos produtos em até 1.200%, aproveitando-se da disparidade entre o dólar no câmbio oficial e paralelo.
Por Mariana Terra*, na Opera Mundi
Publicado 15/01/2014 14:05
O que se viu foram filas quilométricas de consumidores que, após horas de espera, saíam abraçados a caixas contendo micro-ondas, liquidificadores, computadores, além de sapatos e roupas de grifes famosas. O que antes só gente rica conseguia comprar, agora estava ao alcance da maioria.
Mas não há uma revolução socialista em curso na Venezuela? Por que então essas pessoas, que em sua maioria apoiou após seguidas eleições a continuidade desse processo que propõe uma ruptura com o capitalismo, querem tanto comprar, esse ato tão… capitalista?
A resposta para esse paradoxo não é simples, carrega consigo uma complexidade imensa e tem paralelo com o recente fenômeno dos “rolezinhos” em São Paulo. Tudo bem que na cidade o objetivo principal não é comprar, mas há, também, uma ocupação, por meio do rolê, vulgo passeio, pelos shopping centers de São Paulo – do espaço de compras e trocas não apenas econômicas, mas também simbólicas.
Antes da primeira eleição do falecido Hugo Chávez, a Venezuela tinha um dos piores índices sociais da América Latina. Quase 70% da população eram considerados pobres, segundo a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe). Em 2013, o órgão registrou que 23,6% dos venezuelanos permaneceram nessa faixa social. Ou seja, mais de 40% das pessoas na Venezuela passou a ganhar mais. E a consumir mais, o que é uma das razões para as dificuldades de abastecimento do país.
Consumir mais não apenas livros, comida orgânica, móveis de madeira de reflorestamento, em quantidades “corretas”. Não. O que se viu e vê é a busca, sobretudo, por itens como iPhones, tablets, televisão de plasma, laptops. Entrar naquelas lojas, ocupá-las, mesmo que por alguns instantes, foi um ato transformador para muitos, que nunca tinham tido condições de estar ali. Além de levar o produto desejado para casa, havia o ato de conquistar um espaço novo para si, o espaço antes hostil da “loja”.
A reação da imprensa venezuelana – ou seja, da elite – foi de terror. Simples consumidores, mas com “cara de pobre”, foram retratados nos jornais como selvagens, gente descontrolada. Mas houve algo pior: não foram poucos os que se consideram integrantes da esquerda venezuelana que se horrorizaram diante da “falta de consciência de classe” pela escolha do que estava sendo consumido. Boa parte dessa gente nunca sentiu na pele o que é não ter dinheiro para comprar. Gente que não entende como o ato de poder comprar e exercer essa possibilidade era, naquele momento, libertador.
Ocupar
Participar e andar pelos lugares onde o consumo acontece também, como mostram os rolezinhos, é ocupar um espaço antes “exclusive”, “prime”, “special”, “gold” – essas palavras que usam para vender cartão de crédito e plano de saúde. "Só vim aqui encontrar umas mina e dar beijo na boca", disse um dos meninos que participou do encontro no shopping Metrô Itaquera no final de semana. Assim como milhões de paulistanos mais endinheirados fazem há anos nas suas tardes de domingo. E que ainda, de quebra, consomem horrores nesse meio tempo. Mas o dia dos garotos da periferia terminou com bombas de gás e balas de borracha disparadas pela Polícia Militar, uma velha conhecida deles.
Querer que um jovem da periferia paulistana, diariamente violentado pela falta de opções de trabalho, segurança, infraestrutura, saúde, educação, lazer, mas cuja vida financeira melhorou, não queira consumir o que o jovem dos Jardins ou do Morumbi sempre teve – em abundância – é, no mínimo, injusto.
Guardando as devidas diferenças entre Brasil e Venezuela, ainda mais se levadas em conta somente as grandes metrópoles, o cerne da questão é o mesmo. Os mais pobres querem os mesmos iPhones, tablets, televisão de plasma, laptops em seu mundo social. Eles querem consumir e não importa que isso não seja viável ou sustentável. Ou querem apenas chegar perto desses bens sem medo. Que argumento, afinal, vão usar para dizer que ele não pode ou “não deve” fazer isso – porque é pobre, preto, favelado, “não é bom pra ele” chegar perto do que deveria ser inatingível?
Esses jovens querem ocupar espaços onde sua presença é negada – terrenos de onde foram expulsos séculos atrás, para depois serem empurrados para bem longe, para a periferia, para onde não poderiam mais ser vistos e de onde só poderiam sair para trabalhar como faxineiros, cozinheiros e motoristas nos prédios de apartamentos, lojas, restaurantes e cinemas.
Ah, mas ele pode entrar – se provar que é pra trabalhar. E quem checa quem tem “cara de pobre” e deixa passar para o desejado templo de consumo? Outro trabalhador como ele, talvez um vizinho, trajado de capataz moderno.
Em longa entrevista à jornalista Eliane Brum, o professor da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo) Alexandre Barbosa Pereira propõe uma análise das causas e efeitos dos “rolezinhos”. Para ele, “devemos questionar não a ação dos meninos, mas as relações sociais fomentadas na contemporaneidade”, ressaltando que “é preciso conceder aos jovens, e não apenas aos pobres, mas aos de classe média e alta também, outros espaços de reconhecimento e de estabelecimento de relações sociais que não sejam pautados pela afirmação por meio da posse e do consumo de bens”.
Afinal, ele sublinha, citando uma música do grupo de rap Racionais MCs, “quem não quer brilhar, quem não? Mostra quem. Ninguém quer ser coadjuvante de ninguém”.
*Marina Terra é jornalista, editora do site Opera Mundi e membro do coletivo feminista Casa de Lua