Matheus Pichonelli: Quem mexeu na minha praça de alimentação?
O recalque despertado pelo "rolezinho" expõe um país dividido entre os que "conhecem" e os que "não conhecem" o seu lugar. A estes, os pontapés.
Por Matheus Pichonelli*, na Carta Capital
Publicado 14/01/2014 16:16
Especialistas trarão mil e uma teorias sobre o fenômeno surgido como novidade no início do ano (as chacinas na periferia da maior cidade do interior paulista ou nos presídios do Nordeste não são fenômenos novos: são déjà vu, ocorrem dia sim, dia não, e, exceto pelas imagens da barbárie, não chocam nem comovem o grosso da opinião púbica).
O rolezinho da periferia, por sua vez, não só choca como divide: o presídio e o beco estão longe, mas a praça de alimentação é quase um quintal vilipendiado. Assim, o fenômeno chama a atenção menos pelo que significa e mais pelo que provoca: de um lado, aplausos de quem vê na mobilização um novo verniz para a luta de classes; de outro, os relinchos dos apavorados de plantão que agora se veem invadidos e a perigo (não bastasse o alargamento das portas nas rodoviárias e aeroportos).
Há, até aqui, muita confusão sobre o evento. Como alertou tempos atrás o meu amigo Leandro Beguoci, há uma periferia dentro do centro e um centro dentro da periferia; logo, o centro que frequenta o shopping na Zona Leste não é o mesmo que circula no shopping da Faria Lima. Da mesma forma, não está em xeque o conceito de espaço público, mas de alargamento de espaço privado: as portas de sensor automático dão a impressão de que o monstro encravado na cidade onde antes havia um lago ou uma praça dão a falsa sensação de que o espaço é aberto a todos, mas a segurança particular nos lembra que “todos” não são “qualquer um”.
Esse é o ponto que liga o presente ao passado. Um estrangeiro que desembarcasse hoje ou há 50 anos a um shopping da capital paulista mal perceberia que estava no Brasil, um país de maioria negra e parda que há séculos mantém espaços cativos nos colégios e universidades de ponta, cafés, centros culturais e as redações – sim, sem exceção. A população com cara de população, quando entra nesses espaços, é para trabalhar ou servir.
Em um shopping center, não se paga pelo produto. Paga-se pela experiência. Pela sensação de ter acesso a uma ordem distinta dos atropelos das ruas ao estilo 25 de Março. A sensação de não passar calor. De estar protegido. De não ser qualquer um. (Para preservar a ideia, ou o fetiche, é necessário desdenhar os barracos na hora de estacionar ou de pegar fila no caixa do shopping).
A história parece nova, mas não é. Mudam-se os nomes e os rótulos, mas não o cinismo, como lembrou a amiga Rosanne D'Agostino, do portal G1, em sua página no Facebook: “Esse 'rolezinho' na minha infância se chamava 'molecada maconheira na esquina da casa da vó'. Na adolescência eram os 'skatistas coçando o saco' ou os 'surfistas metidos a usar Quilhas e Okley'. Na verdade são todos os mesmos caras que só queriam um espaço pra curtir”. Desses tempos, o que surgiu além de bares e igrejas? Praças, clubes, quadras, parques? Não, lembrou ela: “Permitiram centenas de condomínios fechados, prédios comerciais e shoppings” Mas isso era outro mundo – ou, outro muro, erguido para proteger o mundo de seus olhares e intenções.
Alguns se revoltaram. Aprenderam a se expressar. Criaram letras para rap. Para funk. Mas até isso lhes foi tirado: em São Paulo baile funk agora é crime e há uma ordem implícita de que a reunião de dois ou mais adolescentes em determinados lugares dá a eles a pecha de “elementos suspeitos”; a partir daí, tudo é permitido, e nada aliviado. Em uma cidade como São Paulo, a depender de onde se nasce, esta é a única concessão autorizada: nascer. A outra é morrer.
Sem espaços de lazer ou expressão, a migração para uma área de convívio, privada mas de portas aparentemente abertas, chega a ser natural, e essa transposição transformou um recado velado em um grito primitivo: “este não é o seu lugar”. O recado é agora expresso por seguranças privados, autoridades públicas, pela polícia, pelos ofendidos em redes sociais e pelos juízes. Não poderiam ser mais claros.
Na sexta faixa do álbum “Era uma vez um homem e seu tempo”, de 1979, Antonio Carlos Belchior colocou um grande espelho diante de um país dividido não simplesmente entre opressores e oprimidos, mas entre quem “conhece” e quem “não conhece” o seu lugar. Aos que conhecem, afagos e ossos. Aos que não conhecem, os pontapés. É desse país que ele falava em “Conheço o meu lugar”, e é este o país escancarado pelo recalque de quem hoje cita a ordem e a baderna para ter de volta uma praça de alimentação para chamar de sua.
Ao ver as imagem das cacetadas contra os jovens (de dez? Doze? Quatorze anos?) que não entenderam o alerta e as proibições invisíveis de um país intocado, fica impossível não se lembrar dos versos de quem um dia berrou (e depois calou, de tristeza ou por calar) contra tudo isso: “Ninguém é gente! Nordeste é uma ficção! Nordeste nunca houve! Não! Eu não sou do lugar dos esquecidos! Não sou da nação dos condenados! Não sou do sertão dos ofendidos! Você sabe bem: Conheço o meu lugar…”
*Matheus Pichonelli é formado em jornalismo e ciências sociais, é editor-assistente do site de CartaCapital