Política pública: a extrema pobreza rural
Nos dias 5 e 6 de dezembro ocorreu na capital gaúcha o 4º Seminário Estadual de Sistematização de Experiências de Extensão Rural na sede da Emater, com a apresentação de vários trabalhos realizados, entre os 76 catalogados.
Por Najar Tubino, na Carta Maior
Publicado 25/12/2013 17:57
Ali se destacaram três senhoras afrodescendentes – Maria Sirlei de Souza, Ionete Acosta de Oliveira e Maria Pereira Lima -, moradoras do município de Dom Feliciano, 174 km de POA, o 4.407 município no ranking nacional, o pior IDH do Rio Grande do Sul, onde a maior atividade é a plantação de fumo. Com pouco mais de 14 mil habitantes, 90% de origem polonesa, a apresentação do projeto “da invisibilidade à visibilidade em Dom Feliciano – alguns desafios da extensão rural no RS” emocionou centenas de profissionais da área. Iniciado em outubro de 2012 com objetivo de refletir sobre os programas sociais do governo federal e estadual e o potencial para modificar uma situação de extrema pobreza.
Foram selecionadas 100 famílias que se enquadravam no Programa Brasil Sem Miséria, com renda mensal abaixo de R$70,00. Noventa e oito eram mulheres trabalhadoras e dois homens titulares do Bolsa Família. No Rio Grande do Sul, estado com 11 milhões de habitantes, existem 150 mil famílias rurais nestas condições citadas, segundo informações de Lino de David, presidente da Emater. No estado cerca de 450 mil famílias recebem recursos dos programas federais. Mas 22 mil famílias em extrema pobreza não recebem nenhum tipo de apoio dos programas sociais. Esta era a situação das três senhoras de Dom Feliciano. Uma delas tirava leite em propriedades vizinhas em troca de um litro, como pagamento. Outra era catadora em Porto Alegre.
Casas sem banheiro
O diagnóstico feito pelos extensionistas da Emater, com os dados das condições de vida das 100 famílias apontavam para baixa escolaridade – 88% tinham estudado até a quarta série -, 40% eram afrodescendentes a maioria morava em casas precárias onde 43% não contavam com banheiro e os integrantes do projeto não possuem terras e em geral mudam-se frequentemente. São raras as famílias em que todos os membros têm documentos como carteira de identidade e CPF.
A extensão rural é a parte prática da política pública. A Emater, por exemplo, contratou 500 novos profissionais nos últimos três anos, quando também foi criada no RS a Secretaria de Desenvolvimento Rural, uma determinação do governo Tarso Genro. Dos 2.300 técnicos, 1.300 trabalham no campo em mais de 490 municípios. Em três anos, a nova SDR investiu R$900 milhões em desenvolvimento rural, com objetivo de agregar renda aos trabalhadores e trabalhadoras, aos assentados, quilombolas, comunidades indígenas e agricultores e pecuaristas familiares. Fechará os quatro anos da administração com R$1,450 bilhão investidos, sendo a metade em assistência técnica e extensão rural. No Brasil entre 2004 e 2010 foram formados 143 mil extensionistas. O Plano Nacional de Agroecologia e Produção Orgânica prevê a assistência a 75 mil famílias, direcionadas para a agroecologia. Em novembro deste ano, o Senado aprovou a criação da Agência Nacional de Ater, que contará com R$1,4 bilhão no próximo ano.
Desafio é enfrentar a desigualdade
Mas que tipo de assistência dar aos moradores das áreas rurais, que estão alijados do agronegócio, sofrendo a pressão da expansão da soja, que no próprio RS, onde a leguminosa iniciou o ciclo de crescimento, continua crescendo – 2,7% a previsão para 2014, chegando a 4,855 milhões de hectares. Não é apenas dar suporte para a parte produtiva, como ressalta Lino de David.
“O nosso desafio é enfrentar a desigualdade social no estado. No RS a definição jurídica de assistência técnica e extensão rural inclui o social, que é a parte mais difícil. É muito simples receber a Bolsa Família, o difícil é formar um cidadão, incluindo todas as dimensões da sua vida – econômica, cultural, social e ambiental. É um trabalho longo, demorado e com resultados lentos. Ainda precisamos romper com preconceitos, que enfrentamos até hoje, na própria sociedade, porque estamos trabalhando com pobres”.
Vergonha de se declarar produtora de leite
O trabalho em Dom Feliciano começou pela documentação: 18 fizeram a carteira de identidade, 12 o CPF, 34 encaminharam o Bloco do Produtor Rural, necessário para viabilizar a comercialização e 28 se inscreveram no processo de seleção do Plano Nacional de Habitação Rural. Os moradores das comunidades de Covadeira, Heival e Faxinal participaram de reuniões com os representantes da prefeitura e da câmara de vereadores – em agosto desse ano, o prefeito, o vice e dois vereadores foram cassados por abuso de poder-, onde discutiram as questões de saúde, transporte e comercialização dos produtos. Além disso, fizeram oficinas, trocas de experiências, resgataram sementes crioulas, participaram de feira em Camaquã – polo da região -, e venderam seus produtos na cidade. As 100 famílias estiveram presentes nas reuniões entre outubro de 2012 e maio de 2013. Só registraram três ausências.
A segunda experiência divulgada envolve o município de Santa Clara do Sul, região do Vale do Taquari, a 11 km de Lajeado, com 5.607 habitantes, metade na zona rural. A maioria dos trabalhadores e trabalhadoras da cidade trabalhava numa indústria de calçados, que faliu. Em 2005, a prefeitura local decidiu apoiar a pecuária leiteira. A situação até então era de baixa produtividade, baixa capacitação e sem apoio logístico. Dona Liria, descendente de europeus, é uma representante dessa pecuária familiar. Mora numa região de morros criava seis vacas e tinha vergonha de se declarar produtora de leite.
A produção foi multiplicada por quatro
O objetivo do trabalho foi estabelecido: trazer melhorias na qualidade de vida das famílias, proporcionar incremento de renda às propriedades, fortalecer a pecuária leiteira e romper a forte dependência com o setor rural. Fizeram inventário de 394 propriedade. Os técnicos estabeleceram compromissos com as famílias participantes. Entre eles, participar das oficinas de capacitação, serem multiplicadores de conhecimento, as propriedades abertas à visitação, distribuir pequenas quantidades de mudas e aumentar em 30% a produção de leite na propriedade.
Depois de dezenas de oficinas, tardes de campo, investimentos do Pronaf na aquisição de matrizes, construção de ordenhadeiras e refrigeradores e a implantação de pastagem a produtividade aumentou 59%, a produção do grupo de trabalho subiu 48,5% e a produção de leite em Santa Clara do Sul, que era de dois milhões de litros em 2005 passou para oito milhões em 2012. Dona Liria agora tem 20 vacas, comprou um carro e no final do ano vai visitar o neto na Áustria.
As comunidades do butiazal
O município de Quaraí faz divisa com Artigas, no Uruguai, conta com 23.021 habitantes, sendo 1.663 na zona rural, a maioria pecuaristas familiares. Mas as comunidade do Salsal e Quatepe, no 1º Distrito tem uma vantagem ambiental e tanto: são cinco mil pés de butiás, uma palmeira nativa, que produz excelente palha, além de coco, usado na produção de licores, doces e outras comidas. O trabalho apresentado no Seminário de Sistematização foi “o turismo rural como geração de renda para pecuaristas familiares das comunidades do Butiazal de Quaraí”.
O objetivo: agregar e diversificar a renda dos pecuaristas familiares, utilizando o potencial do butiazal, comercializando a gastronomia e o artesanato. Depois do diagnóstico, da arrumação das propriedades e dos arredores, a construção de um caramanchão (quiosque), como se diz no RS, feito com a palha do butiá, do resgate cultural e ambiental do butiazal, implantaram a ideia do turismo rural. Primeiro realizaram oficinas de artesanato, as mulheres aprenderam a fazer chapéus, bolsas com a palha, depois retomaram as comidas tradicionais, como o café de chaleira, o café campeiro. Realizaram uma apresentação na sede do município – as comunidades estão 40 km distantes -, no clube social da cidade, onde as mulheres não queriam participar por um sentimento não esclarecido de vergonha. Enfim, implantaram uma nova rota turística.
Que é cantada pelo gaudério Rafael, gaiteiro que compôs uma música relatando a história do butiazal e como as famílias estão agregando valor e qualidade aos seus produtos e à vida campeira. Também realizam o Festival Cultural do Butiazal, a prefeitura coloca ônibus gratuito à disposição da população, que pode percorrer as coxilhas do pampa, admirando uma paisagem rara. A região da campanha (pampa), 63% do território gaúcho, além da fronteira oeste e da região sul, são as mais afetadas pela expansão da soja. Em Lavras do Sul, por exemplo, na região da campanha, em 10 anos, a soja ocupava 40 hectares, agora está presente em quase cinco mil hectares. Em Jaguarão, fronteira com o Uruguai, a área saltou de 14 há, no final da década de 1990 para 4.800, em 2006. Em Quaraí, passou de 30 ha para mais de 100. A maioria área comprada ou arrendada por sojicultores do norte do estado.
Pronatec Brasil Sem Miséria
Pelo menos nas comunidades do Butiazal eles já entenderam o valor comercial, cultural, social e ambiental dos cinco mil pés de butiás. O governo estadual lançou o Programa RS Mais Igual, justamente para diminuir as desigualdades sociais e pretende atingir 90 mil famílias em condições de extrema pobreza rural, até o ano que vem. O governo federal também continua buscando a identificação de 600 mil famílias nas mesmas condições espalhadas pelo Brasil. Um dos suportes do programa é o Pronatec Brasil Sem Miséria, que oferece cursos gratuitos, com alimentação, transporte e material escolar garantido, e registra 830 mil matrículas. A meta é fechar 2014 com um milhão de matrículas.
O Brasil mantém o maior programa de transferência de renda do mundo, com 13,8 milhões de famílias atendidas, um mérito reconhecido até mesmo pelo Banco Mundial, que está replicando a experiência brasileira para outros países. E ainda tem 22 milhões de famílias registradas no Cadastro Único, que recebe algum tipo de auxílio de programas sociais.