Nepomuceno: Papéis do terrorismo de Estado aparecem na Argentina
Pouco antes da uma da tarde da quinta-feira [31], último dia de outubro, o ministro argentino da Defesa, Agustin Rossi, recebeu um telefonema do brigadeiro Mario Callejo, chefe do Estado Maior da Força Aérea. Parecia um telefonema de rotina entre o ministro e um de seus subordinados fardados. Mas, não: foi um telefonema revelador.
Publicado 06/11/2013 11:43
Callejo disse ao ministro que nos porões do prédio onde está instalada a Força Aérea Argentina, batizado de Edifício Condor, tinham sido encontrados, durante uma limpeza de rotina, ‘documentos que podem ser muito sensíveis’, relacionados à ditadura sangrenta que sufocou o país entre março de 1976 e dezembro de 1983.
Não se sabe durante quanto tempo essa documentação, que começou a ser escrita há 37 anos e se encerrou há 30, adormeceu em dois cofres, dois armários e uma estante no porão do prédio que um dia foi ministério. São pelo menos 280 atas secretas de reuniões das cúpulas máximas do Exército, Marinha e Força Aérea, que integravam as juntas militares, abrigadas em seis pastas.
Nessas atas, onde foram registrados os debates sobre os sequestrados que foram depois ‘desaparecidos’, também há vasto material sobre o conflito com o Chile pelo Canal de Beagle, e que quase desatou uma guerra entre os dois países, e a sequencia de debates que levaram à prisão da família de David Graiver, que era o dono da Papel Prensa, única fábrica de papel do país.
E há muito mais: outras 1,5 mil pastas com documentação da Comissão de Assessoria Legislativa, cuja função era dar sustentação aos planos, trazem programas e projetos do governo, e os registros de todos os pedidos que chegavam à Junta Militar enviados por familiares das vítimas da repressão. Há um sem-fim de marcas dos desatinos daqueles tempos bárbaros. Lá estão as chamadas ‘listas negras’ com os nomes de intelectuais, artistas, jornalistas, advogados, militantes de direitos humanos, cada um deles com a respectiva classificação, que ia de ‘f1’ a ‘f4’ indicando o grau de perigo que representavam. Tudo muito ordenado, muito organizado.
A primeira ata é de 24 de março de 1976, dia do golpe que liquidou o governo errático e bizarro da viúva de Perón. A última, de 10 de dezembro de 1983, quando começa o governo de Raúl Alfonsin.
O material será estudado de forma minuciosa. O ministro da Defesa disse que, em seis meses, depois que tudo tiver sido examinado, seu conteúdo será divulgado.
Além da lista de ‘elementos perigosos’, que vai de Julio Cortázar a Mercedes Sosa, reunindo a maior constelação das artes e do pensamento do país, Agustín Rossi revelou que há abundante material sobre o caso Papel Prensa.
Isso talvez explique o escasso espaço dedicado ao achado pelos dois maiores jornais argentinos, o La Nación e o Clarín. Afinal, estão diretamente vinculados ao caso.
Até agora, seus proprietários e controladores puderam negar, com o cinismo gélido dos que se consideram acima da verdade, que a única fábrica argentina de papel tenha chegado às suas mãos como parte de uma trama sangrenta.
Essa trama incluiu a prisão, a tortura e a vexação da viúva de David Gravier, antigo proprietário da Papel Prensa, e o compromisso de cumplicidade dos jornais com o regime genocida encabeçado pelos militares. Apesar de depoimentos, testemunhos, indícios, negaram, negaram e negam.
Desde 1983, com a retomada da democracia, cada vez que um governo tentou desmontar esse oligopólio, explodiram protestos denunciando atentados contra a liberdade de expressão. E, atenção: essas tentativas começaram com Raúl Alfonsín, que pode ser acusado de muitas coisas, menos de ser esquerdista, populista ou rancoroso.
Do pouco que foi revelado da documentação encontrada, já se sabe que pelo menos treze atas da Junta Militar tratam da situação da empresa.
Entre setembro de 1976 e dezembro de 1977, o assunto Papel Prensa foi discutido em doze reuniões. Detalhe: David Graiver, o financista vinculado à esquerda peronista, acusado de ser o responsável pelos fundos da organização armada Montoneros, morreu num jamais explicado acidente aéreo no México, no dia 7 de agosto de 1976. Um mês depois, a parte mais visível de seu espólio – a Papel Prensa – foi tema de uma reunião da Junta Militar encabeçada pelo general Jorge Rafael Videla.
Em abril de 1977, em outra reunião, foi determinada a prisão ‘de familiares e envolvidos no caso Graiver’. Pouco antes, debaixo das ameaças e pressões não só dos militares, mas do próprio Héctor Magnetto, o todo-poderoso do grupo Clarín, Lidia Papaleo de Graiver, viúva de David, havia capitulado: o controle da Papel Prensa passou ao grupo, ao jornal La Nación e ao extinto La Razón.
Ela sempre disse que apoderar-se da Papel Prensa para pagar a cumplicidade e a omissão dos jornais era prioridade para a ditadura.
Os donos do La Nación e do Clarín sempre negaram. O que talvez não soubessem é que os genocidas, seus protetores, registravam tudo. Por alguma razão, alguém esqueceu de destruir esses registros.
O governo de Cristina Fernández de Kirchner fez o que pôde, na justiça, para liquidar o monopólio privado do papel de jornal no país. Esbarrou sempre na falta de provas de que a ditadura tenha favorecido intencionalmente os grupos que controlam a empresa (o Clarín tem 49%, o estado argentino 27,5% e o La Nación, 22,5%, e o 1% restante está diluído entre um sem-fim de acionistas anônimos; de fato, Clarín e La Nación controlam a fábrica). E enfrentou sempre, na Argentina e no exterior, denúncias de tentar sufocar a liberdade de expressão ao pretender reservar ao Estado argentino o controle da única fábrica de papel existente no país.
Pois agora mesmo, qualquer um pode ler – eu li – parte de uma ‘ata reservada’ de uma das reuniões dos genocidas.
O título diz tudo: “Medidas a adoptar con respecto a Papel Prensa, S.A.”. Eram precavidos, os militares: no ponto 4 dessas medidas, fica estabelecido que os novos donos aceitam o ‘compromiso de asumir los riesgos y consecuencias de las posibles acciones judiciales que pudieran ocasionarse con motivo de la compra de las acciones de Papel Prensa, S.A.’
Espertos, os ditadores: anotavam tudo. Bobos, os compradores: se achavam acima do bem e do mal. Foram traídos pelos registros, pela memória.
Agora, é com eles e com a Justiça: afinal, aceitaram o compromisso, achando que jamais teriam de responder pelo que assinaram.
* Eric Nepomuceno é jornalista
Fonte: Carta Maior