Antonio Martins: Libertar os animais, reumanizar a vida
Um protesto contra sofrimentos impostos a animais, que começou sábado passado (12), em frente aos portões do laboratório Instituto Royal, em São Roque (Grande São Paulo), tomou proporções inusitadas nessa sexta-feira (18).
Por Antonio Martins, no Outras Palavras
Publicado 18/10/2013 17:31
Dezenas de ativistas invadiram, pela madrugada, o laboratório e libertarem cerca de duzentos cães da raça beagle. A gota d’água que desencadeou a atitude foi da suspeita de que a empresa preparava a retirada e o sacrifício dos animais. A notícia espalhou-se rapidamente pelas midias sociais.
A palavra-chave #institutoroyal tornou-se a mais popular no Twitter. Uma página temática, no Facebook, reuniu mais de 140 mil apoiadores. Os fatos convidam: é preciso intensificar o debate sobre os direitos dos animais.
Ele é indispensável, inclusive, para que o ser humano se livre das brutalidades que comete contra si mesmo (Vinícius Gomes). É o que debate o texto a seguir, publicado no ”Diplô Brasil” em setembro de 2006. Por sua enorme atualidade, “Outras Palavras” o reproduz. (V.G.)
Por Antonio Martins
Um meio-sorriso irônico – parte condescendência, parte desdém – ainda predomina, em alguns ambientes, diante do discurso em favor dos direitos dos animais. Ele soa frívolo, a certos ouvidos: é como se sustentá-lo fosse sinal de futilidade ou escapismo, num mundo em que milhões de crianças passam fome ou padecem nas guerras.
Professor de Direito na Universidade de Rutgers (Nova Jersey), o norte-americano Gary Francione tem uma resposta para esta postura de descaso. Produzido pela redação do Le Monde diplomatique, o texto Manifesto pela Libertação dos Animais (cujo título original é “Pour l’abolition de l’animal-esclave”), que integra a edição de setembro do Le Monde Diplomatique-Brasil, é uma síntese das teorias de Garry Francione sobre a abolição da exploração animal, segundo expostas no colóquio “Théories sur les droits des animaux et le bien-être animal”, na Universidade de Valência (Espanha) em maio de 2006. O texto sugere que o massacre dos animais é também um ato do ser humano contra si próprio. Nós o praticamos porque estamos mergulhados em relações sociais que nos cegam. Enxergar nas outras espécies seres que sentem e sofrem é um enorme passo para nos livrarmos das brutalidades que cometemos entre nós mesmos.
O argumento de Francione é original porque, num aparente paradoxo, associa defesa dos animais a humanismo. Ele não nega o direito da espécie humana a lutar, como todas as outras, por seus “interesses vitais”. Mas demonstra que, na etapa atual de nosso desenvolvimento, continuar confinando, torturando e massacrando outros seres não tem nenhum laço com nossa sobrevivência ou bem-estar – mas com nossa submissão à lógica da propriedade e da mercantilização.
Sim, sustenta o Manifesto: assim como ocorria com os escravos, há três séculos, os animais são considerados mercadorias. E uma sociedade em que a regra essencial de sucesso é a posse de bens materiais torna-se indiferente tanto à crueldade quanto à irracionalidade do massacre. Mais de 8 bilhões de animais são mortos todos os anos (16 mil por minuto), só nos Estados Unidos – o maior consumidor. Na condição de coisas, eles devem ser tão rentáveis quanto possível. Por isso, são confinados, do nascimento ao sacrifício, em celas exíguas, onde muitas vezes os únicos movimentos possíveis são respirar, comer e digerir. Sua execução ocorre quase sempre “em dor e aos gritos, em ambientes fétidos”. Quando destinados a experimentos industriais (em testes de cosméticos, por exemplo), sofrem, vivos, amputações e queimaduras químicas em série. Nas universidades, são freqüentemente utilizados sem necessidade, para “experimentos” repetidos e de resultado óbvio, que poderiam perfeitamente ser substituídos por recursos audiovisuais.
Não precisamos deles para nosso sustento. Ao contrário, mostra o texto: sua criação industrial consome recursos que fazem falta a outros seres humanos e é uma ameaça ao ambiente. “Para cada quilo de proteína fornecida, o animal deve consumir cerca de 6 quilos de proteínas vegetais e forragem; e produzir um quilo de carne exige mais de 100 mil litros de água – enquanto a produção de um quilo de trigo não chega a exigir 900 litros”.
Uma causa que se difunde e obtém vitórias
A indústria da carne animal apóia-se, é claro, num hábito atávico da humanidade. Mas, como tantos outros, ele poderia ser alterado aos poucos, por meio de recursos como a sensibilização e a pesquisa científica voltada para produzir alimentos que imitassem o sabor da carne. No entanto, a mercantilização é um enorme obstáculo, como mostra o Manifesto: “O ’sofrimento’ dos proprietários, por não poder usufruir da ’propriedade’ a seu bel-prazer conta mais do que a dor do animal. (…) Os industriais da carne avaliam que as práticas de mutilar animais, sejam quais forem a dor e o sofrimento suportados por eles, são normais e necessárias. Os tribunais presumem que os proprietários não infligirão intencionalmente atos de crueldade inútil, que diminuiriam o valor monetário do animal”.
Felizmente, as últimas décadas têm sido marcadas pela difusão dos movimentos e organizações que combatem a mercantilização do mundo dedicando-se aos direitos dos animais. Atuam em múltiplas frentes: a defesa das espécies silvestres, a luta contra a caça, a denúncia da experimentação “científica” desnecessária, o combate contra maus-tratos impostos aos bichos domesticados, o resgate dos que são abandonados por seus “donos”. Le Monde Diplomatique tem acompanhado algumas destas ações. Em agosto de 2004, uma reportagem focalizou a Grã-Bretanha – onde tem havido vitórias importantes e onde certos grupos, em nome dos bichos, desafiam leis e agem na clandestinidade. Em agosto de 2002, destacamos o esforço para proteger os elefantes, ameaçados pelo comércio clandestino de marfim. Junto com o ativismo, têm se multiplicado, especialmente na internet, as fontes alternativas de informação sobre o tema. Algumas delas estão relacionadas ao final deste texto.
Nenhuma grande causa merece ser transformada num fundamentalismo. Se você ainda é carnívoro (como o autor destas linhas), deleite-se com seu churrasco, neste fim de semana. Considere a hipótese de substituí-lo por prazeres, digamos, mais humanos… Acompanhe e participe das ações que combatem todos os tipos de maus-tratos. E repare: você tem agora mais um motivo para continuar construindo relações sociais que, livres da ditadura da mercadoria, nos permitam enxergar e enfrentar a crueldade.