Betty Almeida: "Meu nome é Honestino Guimarães"
Meu nome é Honestino Monteiro Guimarães. Fui preso em 10 de outubro de 1973, dentro de uma ofensiva de morte da repressão da ditadura contra a Ação Popular Marxista-Leninista, organização política da qual eu era um dos dirigentes. Minha prisão foi, na verdade, um sequestro, organizado e executado, provavelmente, pelo Centro de Informações da Marinha (Cenimar).
Por Betty Almeida*, professora aposentada da UFPB e amiga de infância de Honestino Guimarães
Publicado 11/10/2013 13:38
Desde então, minha família me procurou incansavelmente, sem, em 40 anos, descobrir o que foi feito de mim. Jamais entregaram à minha mãe o meu corpo, para que ela o sepultasse.
Com meus pais, Maria Rosa Leite Monteiro e Benedito Monteiro Guimarães e meus irmãos Luiz Carlos e Norton, tive uma infância feliz em Itaberaí, no Estado de Goiás, onde nasci, em 28 de março de 1947. Estudei em colégio de freiras e fiz primeira comunhão aos 7 anos. Minha mãe lia histórias toda noite para mim e meus irmãos. Eu jogava xadrez com meu pai, fazia piquenique no Rio das Pedras com primos e amigos, nadava, jogava futebol. Meus pais mudaram-se para Brasília no final de 1960, em busca de novas oportunidades e melhores estudos para os filhos.
Estudei no Centro de Ensino Médio Elefante Branco – conhecido como Elefante Vermelho, por causa de seus professores e alunos esquerdistas. Terminei o ensino médio no Centro Integrado de Ensino Médio (Ciem), ligado à Faculdade de Educação da UnB. O Ciem foi uma experiência pedagógica muito marcante e inovadora em Brasília. Ingressei na Universidade de Brasília em 1965, despertando a admiração de todos porque passei em primeiro lugar geral. Eu queria ser geólogo. Mas minhas preocupações sociais foram aumentando e suplantaram as aspirações individuais, com a tomada de consciência da situação do país e das condições de vida do povo brasileiro. Desde 1964, quando fui estudar no Ciem, pude efetivar em manifestações coletivas toda uma consciência política gradual que vinha desde a infância. Inicialmente a minha revolta se evidenciava numa crescente consciência nacionalista e social à qual a partir do golpe de 1964 se somou de forma irrevogável a consciência anti-ditadura (democrática). Descobri também que a política era a maneira de transformar o mundo, vencendo a injustiça e a desigualdade. Para trabalhar por esse ideal, tornei-me militante da Ação Popular, uma organização clandestina, que atuava contra a ditadura e lutava pelo socialismo.
As lições fundamentais do primeiro ano de vida universitária ficaram indeléveis. O terrorismo cultural vivido particularmente e a resistência a ele, de professores, alunos e funcionários. Uma concepção nova de ensino, ainda em caráter experimental, voltado para os reais problemas de nossa terra e nosso povo, com métodos democráticos – não paternalistas e autoritários, não expositivos e magistrais. A existência já efetiva de um real diálogo entre professor e aluno, sem a distância que o sistema catedrático colocava. Depois a imagem de tudo isto calcado por uma bota militar. A demissão coletiva de quase todos os professores, a parada por vários meses e o vazio do reinício. Foram estas as primeiras e fundamentais lições que me deu a Universidade. Foi também o ano da primeira prisão, quando com outros colegas paralisávamos aula de fura-greves. Depois vieram outras, como a da manifestação de massas com que interrompemos uma cerimônia demagógica do embaixador americano, que doava livros à biblioteca da Universidade de Brasília. Um mês antes eu sofrera a primeira prisão mais extensa (para os padrões da época) ao fazer pichações, no início de 1967. Mais tarde, nesse mesmo ano, fui novamente preso sob a acusação de participar de organização clandestina, e apesar de preso foi lançada minha candidatura à presidência da Federação dos Estudantes da Universidade de Brasília. Fui eleito presidente da Feub, trincheira de luta dos estudantes da UnB.
A violência da repressão era tanta que, em 29 de agosto de 1968, a UnB foi invadida por forças policiais e militares, para cumprir mandados de prisão contra mim e outros estudantes da universidade. Fui preso e torturado, e só fui solto no começo de novembro. Durante esta prisão, fui excluído da UnB por razões políticas, a dois meses da minha formatura como geólogo.
Em 13 de dezembro de 1968, com o AI-5, em que suprimiu o direito a habeas corpus, tive de esconder-me e fui forçado a viver clandestinamente, para não sofrer a brutalidade das prisões e as maiores violências na fase dos interrogatórios onde as confissões, forçadas, arrancadas, eram obtidas à custa de cruéis torturas como regra geral e dezenas de mortes como resultado. Já passara pela escola das greves, das manifestações de rua, dos choques com a polícia, das prisões arbitrárias, principalmente quando dos protestos às repressões violentas de 1968 ao Movimento Estudantil.
Fiz parte da diretoria eleita para a União Nacional dos Estudantes, encabeçada por Jean-Marc von der Weid. Com a prisão de Jean-Marc em 1969 assumi a presidência da UNE. A minha situação passou a ser uma vida na clandestinidade forçada, por 5 anos. Neste tempo sofri vários processos. Em processo pela participação nas lutas estudantis de 1968 – onde as decisões eram tomadas coletivamente, em assembleias democráticas, em eleições com voto obrigatório pelo próprio regimento da Universidade, fui condenado, em 1970, a vários anos de prisão. O resultado desses julgamentos marca com clareza o particular ódio e a tenaz perseguição da qual era objeto. Nada menos de vinte e cinco anos em cinco processos. Todos eles, menos um, referentes à minha participação nas lutas estudantis em 1968.
Mesmo assim, nunca abandonei a luta e não quis sair do país, pois não queria deixar de cumprir meu papel na organização da qual me tornei dirigente. E não queria deixar os companheiros que lutavam. Sempre disse que se todos saíssem, não sobraria ninguém para lutar. Em 1971, em meio às duras condições de repressão ao movimento estudantil, houve um congresso clandestino da UNE, no qual fui eleito presidente. Apesar das duríssimas condições da vida clandestina, procurei seguir a consigna de minha organização: era clandestino para a repressão, não para o povo. Tinha uma vida social e nunca me afastei dos amigos.
Casei-me, em 1968, ainda em Brasília, com Isaura, que me deu minha filha Juliana, um Raiozinho de sol em minha vida. Infelizmente, a perseguição, a insegurança e restrições da vida clandestina não me permitiram consolidar uma vida familiar. Foi um conforto constatar que o novo companheiro de Isaura tornou-se um segundo pai para Juliana. Tive outra companheira depois de separar-me de Isaura, com quem convivi amorosamente até ser preso.
A perseguição dos exploradores não me intimidou. Recebi-a como uma evidência de que era justo o caminho que trilhava. Sabia que a luta seria longa e árdua. Mas sempre acreditei firmemente na força da atuação coletiva das massas. Refutei as acusações de “terrorista”, uma vez que os verdadeiros terroristas estavam no poder e usavam do terror para ali se manter. Por diversas vezes, fui ameaçado de morte pelos chamados serviços de segurança militares, desde pelo menos 1971. Por diversas fontes de vários estados, chegou a mim esta ameaça para quando eu fosse apanhado.
A História de nossa terra, infelizmente é repleta desses crimes, de vários exemplos de “tiroteios” simulados e de “atropelamentos” de pessoas após terem sido presas pelos órgãos de repressão política. Além disso, esta mesma ameaça pesava concretamente sobre várias outras pessoas que, como eu, eram consideradas perigosas. Por isso escrevi o Mandado de Segurança Popular, texto-denúncia, em relação às ameaças de morte que as forças da repressão me faziam repetidamente. Esta denúncia à consciência democrática dentro e fora do país era a única arma de que dispunha, mas não deixei de lutar por uma democracia efetiva para a maioria de nosso povo. Vivi por um ideal que sempre se manteve aceso e jamais se apagou – a luta pela causa do povo. Esta foi a lição mais cara que aprendi e se expressa em amor muito profundo à classe operária e ao povo brasileiro, assim como aos povos trabalhadores de todo o mundo.
* doutora em Eletroquímica pelo Institut National Polytechnique de Grenoble, França. Maristela Barbosa de Almeida, sua mãe, e dona Maria Rosa Leite Monteiro, mãe de Honestino, conheceram-se no concurso para a Fundação educacional do Distrito Federal, em 1961. Desde então Betty e Honestino, cujos objetivos políticos eram estrategicamente os mesmos, mas staticamente diferentes, estiveram em contato até 1972. O texto foi escrito especialmente para um vídeo em que um ator faz o papel de Honestino e é baseado no Mandado de Segurança Popular, escrito por Honestino em 1973, diante das ameaças da forças repressivas da ditadura civil-militar; gentilmente cedido por Betty Almeida ao Vermelho.