Maria Aparecida: A farsa da justiça burguesa no Teatro Procissão
No ano de 2005, um tribunal fictício feito com bonecos gigantes e um coro de mais de 70 pessoas foi montado em frente ao Congresso Nacional, em Brasília (DF), para julgar um sobrevivente do Massacre de Eldorado dos Carajás, que se fingiu de morto.
Por Maria Aparecida, no Brasil de Fato
Publicado 13/06/2013 15:41

Baseado em fatos reais, o episódio vivido por um militante do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foi transformado na peça teatral A farsa da justiça burguesa, e apresentada junto com outras três partes que completavam o chamado Teatro Procissão, a 12 mil trabalhadores e trabalhadoras rurais que finalizavam, depois de 17 dias de caminhada, a Marcha Nacional por Reforma Agrária, de Goiânia à Brasília.
O Teatro Procissão, que narrou a história da luta pela terra no Brasil desde a colonização portuguesa até os dias atuais pelo ponto de vista dos trabalhadores, foi realizado por 250 artistas-militantes do MST. Recebeu esse nome por se tratar de uma experiência que acontecia em “estações”, onde as pessoas assistiam às cenas a medida em que a marcha passava por cada uma das intervenções.
A farsa da justiça burguesa, quarta e última etapa do Teatro Procissão, narra a acusação, o julgamento e a condenação de um sobrevivente do massacre pelo “crime” de ter se fingido de morto e por sua falta de heroísmo pela recusa de morrer com seus companheiros. É uma tentativa de mostrar o julgamento que a justiça brasileira sempre reservou aos trabalhadores.
A peça foi escrita por Sérgio de Carvalho, da Cia do Latão, a partir das improvisações propostas pelos integrantes do grupo Filhos da Mãe… Terra, do MST, depois de estudos de jornais e outros materiais que noticiaram o massacre, bem como de análises feitas anos depois da tragédia em que 19 integrantes do MST foram assassinados quando realizavam uma manifestação pelo direito à terra.
Engajamento
Sete anos depois, ao final de 2012, um tribunal-açougue (uma metáfora ao Estado sanguinário que comanda a política de extermínio dos pobres) é montado nas ruas da capital paulista. Trata-se da apropriação do texto pela Companhia Estudo de Cena, um grupo que tem como um dos seus objetivos a utilização da arte como arma de questionamento do modo de produção capitalista.
Segundo o diretor Diogo Noventa, “a Companhia Estudo de Cena é um grupo que assume os objetivos da produção artística socialista, entende que a vida da maioria das pessoas foi e ainda é quase completamente desconsiderada por grande parte das artes e meios de comunicação; com isso nosso principal compromisso é com a vida humana ainda hoje calada, fragmentada e mal representada”.
Atuando desde 2006, a Companhia também pesquisa a junção das linguagens artísticas do teatro e do audiovisual. Por esse motivo, integra o Coletivo de Vídeo Popular de São Paulo desde 2008, um grupo de produtores audiovisuais independentes que tem como principal característica as lutas da classe trabalhadora pelo viés de resistência que não é noticiado pelos donos dos meios de produção (e de comunicação).
A escolha da montagem d’A farsa da justiça burguesa está relacionada ao posicionamento político do grupo. Fazendo referência ao texto Cinema e Socialismo, de Raymond Willians, Diogo Noventa acredita que a qualidade de um grupo que opera dentro de uma base socialista “deve ser trabalhar com o contexto histórico das lutas sem entusiasmo ou breve desespero de mero simpatizantes, mas com engajamento com as vidas das trabalhadoras e dos trabalhadores que continuam além das vitórias ou derrotas” e é isso que faz a Estudo de Cena em suas produções.
Exemplo disso é a vídeo-criação Narrativas da Sé, de 2008, em que o grupo partiu da observação, gravação e intervenção dos atores em situações vividas na Praça da Sé, centro de São Paulo, junto à moradores e transeuntes. Seu último trabalho, que resultou na criação do vídeo Fulero Circo, foi apresentado nas ruas de capitais como Brasília (DF) e também em assentamentos rurais do MST.
A peça narrava a viagem do grupo Fulero Circo se apresentando com o espetáculo de rua O mistério do novo, “uma comédia de intervenção que apresenta a destruição do direito dos trabalhadores, a espetacularização da pobreza e a construção do padrão de poder dominante, e tem como pano de fundo a farsa democrática”, como apresentado no blog do grupo.
Em tempos de mobilizações para pedir a prisão do mandante do Massacre de Felisburgo, Adriano Chafik, que assassinou cinco trabalhadores rurais, em Minas Gerais, no ano de 2004, a peça continua mais que atual. Depois de oito anos, a impunidade prevalece e Chafik continua em liberdade. A “justiça” por sua vez continua fazendo seu papel em defesa dos que dominam os meios de produção no Brasil.
O culto ao individualismo e ao heroísmo em detrimento do movimento coletivo, presente o tempo todo no discurso apresentado pela classe dominante em suas várias produções, sejam elas artísticas ou não, faz parte do temário tratado pelo grupo desde sua criação.
Ao realizar apresentações a céu aberto, em locais não convencionais, outra característica do grupo aparece, como a crença de que a arte deva estar acessível a todas as pessoas, dialogando principalmente com a classe trabalhadora.
Confundir
Muitas coisas se distinguem nas duas montagens d’A farsa da justiça burguesa. A primeira delas é em relação ao público e ao espaço de apresentação. Diferente do que foi a primeira, apresentada para um público específico de trabalhadores rurais, num momento também específico, a montagem atual pretende ser uma intervenção política-poética nas ruas e praças da cidade de São Paulo, para um público que pode nunca ter ouvido falar sobre o assunto.
Além disso, se fez necessária a inserção de cenas que contavam sobre o Massacre de Eldorado dos Carajás, de dados de outros massacres e de violência contra trabalhadores. Estes últimos dois aspectos destaca a importância de não individualizar determinados processos, principalmente quando estão baseados no extermínio da pobreza, ironicamente entendido pela classe dominante como extermínio dos pobres.
Mas mesmo com essas diferenciações, o que vale é que tanto numa como na outra montagem, os poderes se confundem quando se trata da justiça burguesa. Na primeira montagem, o fazendeiro chegava para tomar o anel do juiz e pronunciar, junto com o mesmo, a sentença.
Já na montagem proposta pela Estudo de Cena, o fazendeiro está presente desde o início da peça e duas atrizes se “revezam” o tempo todo na interpretação dos personagens dele e do juiz, o que propositalmente faz confundir quem é quem e qual seu papel na execução da farsa.